O reflexo dos tempos na sociedade através dos autos de Gil Vicente e Sttau Monteiro.
Por Luciana Luiza de França | 16/04/2019 | LiteraturaO REFLEXO DOS TEMPOS NA SOCIEDADE ATRAVÉS DOS AUTOS DE GIL VICENTE E STTAU MONTEIRO
por
LUCIANA LUIZA DE FRANÇA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
2° semestre de 2004.
Agradeço ao Professor Iremar, que me forneceu orientações seguras para a elaboração deste trabalho.
Conceito de Teatro:
A história do teatro se confunde com a história da humanidade. A arte de representar advém das situações vividas pelo ser humano que, por culto, religiosidade, louvor, prestígio, entretenimento, registro, ou simplesmente pela pura expressão artística expressa seus sentimentos num mundo de fantasia muito parecido com um mundo real. O mundo evoluiu, e a arte de se representar acompanha essa evolução.
A etimologia grega de teatro dá ao vocábulo o sentido de miradouro, lugar de onde se vê, teatro correspondia à platéia. Não se dissociava da palavra teatro a idéia de visão. O teatro existe quando o público vê e ouve o ator interpretar um texto, contudo, muitas pessoas preferem ler as peças, para que o prazer estético não fique sujeito à deformação de um mau desempenho ou ao condicionamento inartístico de um ator.
O teatro é uma soma de elementos artísticos dos quais podemos enumerar o diálogo, os trajes dos personagens, a arquitetura, objetos usados, gestos, entre outras coisas mais que ajudaram o público ou o leitor da peça a mergulhar na imaginação. Por este motivo, o diálogo teatral requer um encadeamento próprio, porque deve ser transmitido pelo ator, e pode ser identificado não só pelos diálogos mas também nos gestos, trajes ou no próprio cenário.
O teatro entrou na luta maior para dar um sentido ao lazer e contribuir na tarefa de conscientização coletiva. É como se o mundo não encontrasse uma saída no uso pleno da razão, cujo instrumento próprio é a palavra, o teatro vêm para tentar encontrar uma saída apelando para as práticas mágicas. O teatro não quer reproduzir o mundo realista da televisão, mas sim, um mundo imaginário no palco.
O teatro nada mais é do que o reflexo da vida que na vida afinal se reflete, não é apenas uma literatura, mas uma literatura em ação. Cada época,cada sociedade tem um modo de ser, de sentir e de pensar, e o teatro modifica de acordo com aquilo que reflete o mundo, muda de acordo com as necessidades do povo, de acordo com a sociedade.
Um ponto de partida para uma análise são os signos, ou seja, uma certa classe social, nacionalidade, fé religiosa, idade, vocabulário de uma personagem entre outros, tudo isso poderá nos dar informações precisas para compreendermos melhor uma peça. Um signo objeto pode caracterizar a maneira de um personagem, exemplo:uma casa simples e uma mansão. Signos de pobreza e riqueza. O conteúdo da origem do teatro pode ser subdividido em quatro tipos: tragédia que é a representação de um fato trágico, comédia que é a representação de um fato inspirado na vida e no sentimentalismo, de riso fácil em geral criticando os costumes. Há ainda a tragicomédia que é uma modalidade em que se misturam elementos cômicos e trágicos, e por fim, a farsa que é uma pequena peça teatral de caráter caricatural que crítica a sociedade e seus costumes.
Com tudo, é a partir de uma análise singela de duas peças, ou melhor, de dois autos portugueses que iremos centralizar nosso trabalho de literatura comparada.
O auto é uma designação genérica para textos poéticos, e em sua maioria apresenta caráter predominantemente religioso, embora a obra de Gil Vicente nos ofereça vários exemplos de temáticas profanas e satíricas, ainda sim, percebemos uma certa preocupação com a religião, com a moralidade e os bons costumes. O teatro português reflete a história de um povo com oito séculos de história, saudosos de uma glória ultrapassada, a sombra da qual vive, mas sobretudo esperançosos por um tempo melhor.
O Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente X Humanismo:
5.1 Uma época de transição.
A partir do século XV, em Portugal, surgiram mudanças no clima de intensa religiosidade, típico do período medieval. Ao lado da concepção teocêntrica da vida, em que tudo girava em torno de Deus e dos valores religiosos, desenvolve-se uma outra, o antropocentrismo, que valorizava o homem e suas realizações.
A cultura foi invadida lentamente por idéias que acentuavam o valor do homem na terra, que valorizavam suas conquistas, vitórias e sua preocupação em conhecer a natureza humana. O início das grandes navegações, as invenções e o domínio dos mares acentuavam mais ainda este crescente orgulho pelas façanhas humanas. O misticismo religioso que predominava na Idade Média foi cedendo lugar a uma cultura que procurava fazer do homem o centro da vida. Foi um movimento que tinha por objetivo principal a constatação do teocentrismo a favor do antropocentrismo.
E a este período de transição entre a Idade Média e o Renascimento, marcados por diversas transformações, é que denominamos Humanismo. Foi um período muito rico de desenvolvimento da prosa, graças ao trabalho dos cronistas, notadamente Fernão Lopes, considerado o iniciador da historiografia portuguesa. Outra manifestação importantíssima que se desenvolveu no Humanismo, já no século XVI, foi o teatro popular, com a produção de Gil Vicente. A poesia, por outro lado, conheceu um período de decadência nos anos de 1400, estando toda a produção poética do período ligado ao Cancioneiro geral, organizado por Garcia de Resende; essa poesia, por ter sido desenvolvida no ambiente palaciano, é conhecida como poesia palaciana.
Tanto as crônicas históricas quanto o próprio teatro vicentino estão intimamente relacionados com as profundas transformações políticas, econômicas e sócias verificadas em Portugal.
O Humanismo marca toda a transição de um Portugal caracterizado por valores puramente medievais, para uma nova realidade mercantil, em que se percebeu a ascensão dos ideais burgueses.
O Teatro popular de Gil Vicente:
Em 1502, o teatro praticamente não existia em Portugal. Apenas havia representações religiosas nas festas da igreja, onde se encenavam a vida de Cristo com intuito de educar os fiéis. Somente mais tarde surgiu o teatro de Gil Vicente com a sua encenação mais popular: O Monólogo do Vaqueiro. Gil Vicente revela em seus autos e farsas uma boa visão dos problemas do seu tempo. Critica duramente a degradação dos costumes morais do clero, ridiculariza os nobres e fidalgos, satiriza quase todas as classes sociais da época, dando - nos assim um painel bem representativo da sociedade de então, ou seja, bombardeando praticamente todos os setores da sociedade, apenas poupando abstratas noções de instituição.
Portanto, criticou a hipocrisia do clero em nome da fé cristã. Desbancou a tirania da nobreza em nome da justiça social e condenou a corrupção dos burocratas em defesa do bem público. Isto porque, tinha a convicção de que uma das funções sociais da Literatura seria problematizar a realidade para corrigi-la.
Vivendo num momento de transição e de tantas transformações do mundo medieval, o autor revela ainda estar preso aos valores antigos, por isso, procurava através de suas obras exaltar a religião como o único meio de salvação do homem. Daí a crítica a sociedade da época, que vivia cada vez mais distante deste ideal religioso.
Em sua obra, Gil Vicente dedica-se à crítica social, criando uma galeria de tipos que permitem retratar a sociedade portuguesa do seu tempo, ilustrando os seus vícios e os seus dramas. Na maior parte das vezes, os tipos vicentinos assumem caráter simbólico, não sendo identificados por nomes, mas pelas atividades que exercem ou por qualquer outro traço social distintivo: parvo, sapateiro, onzeneiro, juiz, clérigo, frade, bispo, alcoviteira...
Utilizando o teatro como fonte de moralidade, Gil Vicente retratou em suas obras a degradação dos costumes, a alcoviteirice, a infidelidade conjugal, a feitiçaria, a superstição, a usura, a imoralidade dos religiosos, entre outros.
Um dos traços mais originais da obra vicentina, que se socorre de uma estrutura cênica com enredos muito simples, situa - se ao nível a linguagem que emprega, reproduzindo os diferentes registros dos falares dos diferentes tipos sociais do seu tempo: nobres, juízes, médicos, lavradores, nobres, artesãos, pobres, parvos, crianças, africanos.
Aliás, o uso da linguagem é, em Gil Vicente, o principal elemento de produção de efeitos cômicos, ao incorporar trocadilhos, ditos populares e expressões características de cada classe social.
Em O Auto da Barca do Inferno, temos um exemplo claro disso: um corregedor da justiça que ainda guarda resquícios do latim. Quanto à forma, à utilização de cenários e montagens, Gil Vicente é extremamente simples. Outro aspecto a salientar no teatro vicentino, que é a conseqüência natural de seu momento histórico: ao lado de algumas características tipicamente medievais, como a religiosidade, uso de alegorias e de redondilhas, percebem - se características humanistas, tais como a presença de figuras mitológicas, a condenação à perseguição aos judeus e a critica social.
Análise de O Auto da Barca do Inferno:
Publicado em 1517, foi encenada pela primeira vez na câmera da rainha D. Maria de Castela, na presença do rei D.Manuel I e de sua irmã D. Eleonor. Foi impressa em folhetim avulso, chamado “cordel”. Voltou a aparecer em 1562, na edição da Compilaçam, feita por seu filho Luís Vicente. Definido pelo próprio autor como o auto da moralidade, O Auto da Barca do Inferno tem como cenário fixo duas embarcações, num porto imaginário para onde vão as almas no instante da morte.
Cada barca possui um comandante: a do Paraíso, um Anjo; e a do Inferno, um Diabo, que conta com um companheiro. A ação da peça se desenvolve a partir da chegada das personagens, que um a um desfilarão por este porto imaginário, procurando encontrar a passagem para a vida eterna. Há um desvio no conceito de unidade desta unidade, pois se trata de uma narrativa descontínua, na qual cada personagem trás sua própria história, ou seja, abrindo possibilidade para ser vista isoladamente.
A estrutura da peça teatral é formada por um único auto, subdividido em cenas marcadas pelos diálogos que o Anjo ou o Diabo travam com as personagens secundárias. O cenário é um ancoradouro, no qual estão atracadas duas barcas.Todos os mortos, necessariamente, terão de passar por esta passagem, sendo julgados ou condenados, ou à barca da glória ou à do inferno.
Entretanto, serão julgados pelo que fizeram em vida. O Diabo e o Anjo acusam, mas só o Anjo tem o poder de absolvição. E toda esta composição cênica: rio, porto barcas, Anjo, Diabo, caracteriza o espaço intermediário entre a vida terrena e a vida eterna, é uma religiosidade alegórica que representa uma moldura simbólica.
O Auto da Barca do Inferno, é uma expressão do Humanismo gótico: um teatro poético, com versos redondinhos, rimas, símbolos, metáforas e agudezas.
A obra é escrita em versos heptássilabos, em tom coloquial e com intenção marcante doutrinaria. Cada personagem apresenta, através da fala, traços que denunciam sua condição social. Facilmente, percebemos os trajes que denunciam a condição social do corregedor que por causa dos estudos de direito, ainda guarda resquícios do latim; um parvo que por ser um homem simples lança mão dos xingamentos para se impor.
Domine, memento mei!(___, 1997:36)
Ho! Habeatis clemência e passai – nos como vosso!
(____, 1997: 39)
Nesta peça Gil Vicente criticou desde o frade de aldeia até o alto clero, criticou também aqueles que rezavam mecanicamente que é caso do sapateiro, os que invocavam a Deus para favores pessoais e os que assistiam a missa por obrigação social. Para exemplificar, apresentamos este diálogo entre o Sapateiro e o Diabo:
Sapateiro: Quantas missas eu ouvi,não me hão-de elas prestar?
Diabo: Ouvir missa,então roubar é o caminho para aqui.
(___, 1997: 24)
A primeira cena da peça mostra o Diabo eufórico com a preparação do navio que receberá as almas, vale lembrar, que a época da peça nos reflete o período em que os portugueses descobriram o caminho marítimo, por isso, existe toda uma exaltação das embarcações marítimas. Em oposição a este quadro dinâmico, está a figura do Anjo, sério e calado, quase como uma estátua. As diferenças entre essas personagens são marcantes. Além da oposição conceitual entre o Bem X o Mal, Céu X Inferno, eles também assumem posturas opostas, fazendo com que o Diabo: alegre, simpático e principalmente irônico, praticamente domine a peça.
As personagens, em sua maioria, trazem consigo referências do que foram quando vivos, são exemplos do que chamamos de signos. No caso do fidalgo, a cadeira de encosto, o pajem e a rica indumentária formam um conjunto de símbolos indicador de sua alta posição social, o sapateiro que carrega os instrumentos de sua profissão, o frade com o seu capuz típico da religião. Uma noção de hierarquia social que é diluída perante o julgamento final, em favor de um julgamento moral.
Contemporaneidade X o Teatro português:
Para um dramaturgo contemporâneo, “o teatro é o encontro do espectador com o ator”, de forma que isso justificava a invasão do ator para dentro do espaço reservado à platéia, fazendo do público, uma peça chave para os dramas encenados. A idéia de Grotowski de fazer um teatro que refletisse um pouco o mundo contemporâneo, rapidamente ganhou vários admiradores que continuaram a desenvolver a técnica do polonês. Procurou - se estreitar os laços entre o teatro e a vida.
Com a política econômica em alta no Estados Unidos após a crise da Segunda Grande Guerra, o teatro tornou-se uma maneira de enriquecimento, de negócio que, junto com o esmero e o aperfeiçoamento das técnicas de composição de luz e som, se manifestou como Show Business.
De certa forma, essa profecia do mestre polonês se realizou, pois no mundo globalizado, a diversidade aumentou demasiadamente o que permitiu a opção por diversas formas de se fazer teatro. Assim, uma vertente hoje em dia pode até não agradar, mas não choca a sociedade da mesma forma que as novas tendências do teatro contemporâneo chocaram os tradicionalistas na segunda metade do século XX.
A arte era o componente orgânico de coesão social, que despertava interesse no ser humano, promovendo educação e divulgando a cultura de um país. Como a cultura é a representação dos hábitos e costumes de toda a sociedade, nada mais natural do que compartilhar as conseqüências benéficas da arte com todas as pessoas dentro do estado.
Com ideais inovadores, os textos Modernos buscaram dar mais veracidade às situações, viabilizando o contato maior com o público, principalmente por causa da verossimilhança das ações das personagens em relação à sociedade. Não havia mais uma personificação da perfeição trabalhada no realismo, tampouco a visão romanceada dos personagens e sim a deflagração do homem imperfeito, ambíguo, com defeitos e qualidades diversas inerentemente de classes sociais. É um grito em favor da moralidade, uma deflagração da imoralidade humana em prol da conscientização da sociedade.
O Teatro Moderno ganha importância nesse aspecto, por expor assuntos polêmicos de maneira aberta, profunda, democrática e com a riqueza de detalhes que permitem o espectador criticar, debater, pensar nas próprias atitudes e posicionar - se diante daquilo que participa e vê. O teatro português, procurou fazer uma denúncia da situação sua contemporânea.
Análise d¢ O Auto da Barca do Motor Fora da Borda:
Como vimos, no teatro contemporâneo há uma recriação como caminho da arte, ou seja, buscam um caminho para a transformação da arte. Sttau Monteiro tenta buscar no passado àquilo que ele precisa para fazer a sua arte. E é a partir de Gil Vicente que ele faz a sua recriação. O autor de O Auto da Barca do Motor Fora da Borda, tenta mostrar que este mundo do Humanismo, ou seja, o mundo das atualidades e da modernidade, na verdade é um mundo de conflitos e de desilusões. Mostra uma ganância humana tão acelerada que se torna desumana. O autor queria fazer com que as pessoas parassem e refletissem sobre os seus próprios erros.
Assim como Gil Vicente, o autor utiliza-se do humor para falar de coisas degradantes do ser humano. No auto de Sttau Monteiro, o homem não modificou, não cresceu com a evolução dos tempos, o que evoluiu para o autor foi o lado ruim do ser, na peça o homem continuou o mesmo ganâncioso, talvez até pior. Como se a sociedade não tivesse evoluído espiritualmente, ou pelo menos não tivesse dado a devida importância para o lado espiritual. Para o escritor, as coisas evoluíram, a sociedade evoluiu, mas os erros, a má fé, a ganância entre outras coisas só pioraram com o passar do tempo.
O que Gil Vicente havia criticado em O Auto da Barca do Inferno, com intenção de educar a sociedade, agora, Sttau Monteiro retoma o tema, por isso volta ao tempo como fonte inspiradora, para tentar novamente criticar com intenção de ajustar e corrigir esta sociedade do seu tempo. Mas o que se percebe em O Auto da Barca do Motor Fora da Borda é a total degradação dos valores morais. Para o autor, o mundo moderno só acelera a ganância desenfreada das pessoas.
O Auto da Barca do Motor Fora da Borda, é o teatro dentro do teatro. Como assim ? Sttau Monteiro mostra um grupo de atores contemporâneos pedindo auxílio aos autores vicentinos, para que estes por serem experiente, os ajudem a resgatar a barca da moralidade (Gil Vicente), para a atualidade.
O conflito da peça inicia - se quando os autores vicentinos percebem que a peça não esta sendo encenada de acordo com a vicentina, e ao perceberem as mudanças entram em conflito. A justificativa para tal mudança é explicada a partir de que os tempos mudaram, o ser humano mudou e por tanto, os erros como só cresceram não poderiam ser abordados como no passado.
Por este motivo, o autor recria sua peça teatral em cima da peça teatral de Gil Vicente, assim, recria também as personagens com os erros de acordo com o que a sua atualidade reflete. Sttau Monteiro quer enfatizar que mesmo com a passagem do tempo, o homem ao invés de ir melhorando, só foi piorando, é uma dura critica a sociedade portuguesa e seus vícios.
A ação se passa dentro do próprio teatro, no palco. Há uma barca imaginária, atracada num porto imaginário, que aparentemente as personagens estão criando para que seja semelhante à de Gil Vicente. As personagens são tipos vicentinos só que, transformadas, recriadas para justamente retratar a contemporaneidade, ou seja, o mundo de Sttau Monteiro. É como se o autor resgatasse todos os tipos passados e os atualizasse de acordo com os novos tempos, de acordo com aquilo que a sua sociedade reflete.
Contudo, os resgata para criticar todo este lado ruim do ser humano, numa tentativa de os fazer refletir, repensar em seus erros. Por isso, a peça exalta a todo o momento a figura de Gil Vicente, como se a barca retornasse do passado para corrigir toda a imoralidade da sociedade. No diálogo da página doze, o personagem burguês exalta a importância de Gil Vicente para o público, o coloca na posição de mestre, por ter feito da literatura um espaço para elevar o nível de vida da sociedade.E é esta proposta que O Auto da Barca do Motor Fora da Borda, vem enfatizar.
O título da peça já nos remete muito do que o autor quer nos falar, se pensarmos em “motor fora da borda”, não ficaria difícil de imaginarmos uma barca que poderia estar fora do seu lugar original, ou seja, que não estaria atracada no mar, por isso fora da borda. É uma barca que está atracada dentro do teatro, ou melhor, no palco do teatro. Não é à toa a rubrica escrita pelo o autor, informando que o Auto inicia alí,no palco. A rubrica tem a função de explicar melhor a peça para que o leito não se perca.
É uma barca imaginária que navega no palco de teatro, mas que navega sem sentido, a deriva, a barca como sentido de reflexo da humanidade.
Sentados os espectadores e antes de abrir o pano,surgem respectivamente pela esquerda e pela direita do palco,um homem em traje contemporâneo e outro em traje vicentino que correm para o centro,estacam junto à ribalta e falam para o público...(Monteiro, s.d: 01)
No diálogo entre o arrais vicentino e contemporâneo da página 01, o autor deixa clara a sua crítica quanto os rumos que tomam esta sociedade. Enfatiza que a barca contemporânea parece não ter porto, não andar, não é pelo aspecto de não estar atracada no mar, mas sim, porque para o autor o mundo não poderá andar, evoluir com tantas coisas erradas, por isso, esta barca só poderia andar à deriva, ou melhor, sem rumo. As personagens contemporâneas querem fazer o público entender que não é uma barca qualquer, mas sim, uma barca imaginária para retratar a ausência dos bons costumes.
E é aí, que começa todo o conflito da peça; os vicentinos que não entendem como esta barca atual poderia navegar sem ter um anjo e um diabo para contestar os mortos que por alí passarem. Por isso, não entendem como o mundo atual funciona, desta forma, são obrigados a permanecerem sentados como meros espectadores.
A peça quer expor que no mundo contemporâneo já não existe mais a crença de que os maus iram para o Inferno e os bons para o Paraíso. No entanto, por ter sido dizimado esta crença religiosa, o mundo chegou ao ponto que chegou. As pessoas parecem estar sem freios, por justamente não acreditarem mais na possibilidade de existir uma barca com passaporte para o Inferno e outra para o céu, ou seja, de um castigo ou uma glória na hora do juízo final.
Não!Não!Quem representa somos nós. Vocês limitam – se a assistir, tanto mais que se passaram, desde que representaram o vosso auto pela última vez, muitas coisas que vocês não conhecem! Por exemplo: já ninguém acredita no Inferno... (Os actores Vicentinos mostram grande espanto, como que assustados.) ... e os poucos que acreditam no Paraíso, vivem como se não acreditassem nele ... (Monteiro, s.d: 04)
As personagens barqueiro e o industrial de sapataria são um forte exemplo de como a ganância desenfreada assolava a sociedade.
Entretanto, o autor tenta recordar os tempos em que a instituição religiosa servia como exemplo de bons costumes para o povo, deste modo, cria um personagem fiel aos preceitos religiosos: o padre contemporâneo, que é totalmente o inverso do frade vicentino. A salvação está justamente inserida através desta personagem contemporânea, que demonstra que a passagem do tempo não o corrompeu, e que a instituição religiosa não poderia pagar pelos erros cometidos de um homem: o frade vicentino.
Em contra partida a este pensamento, o autor retoma a personagem do corregedor, só que desta vez, acentuando mais a corrupção do corregedor contemporâneo, é como se tempo degradasse o ser humano e os bons costumes. Os que ainda restam bons, como o parvo que foi salvo na barca do Inferno; neste tempo foi enforcado, por não saber se impor perante as maldades da imoralidade humana .
Quando se menciona “um ambiente de feira”, o autor quer mostrar que é peça foi criada para o povo, portanto, do povo irá falar. Como se quisesse chamar a atenção dos espectadores e da sociedade em defesa da moral e dos bons costumes.
CONCLUSÃO
Este trabalho se propôs a estudar a passagem do tempo através da sociedade nos Auto de Gil Vicente e Sttau Monteiro. O que percebemos nesta singela análise comparativa das transformações sociais refletidas nos dois Autos acima, é que a sociedade deixou – se levar pelo lado imoral do homem. Percebemos a tentativa de se educar a sociedade, mesmo que para isso, os autores tenham que criticar toda a imoralidade da classe baixa a alta, em favor dos bons costumes.
A literatura é utilizada como instrumento de transformação social e nacional. Cada Auto reflete aquilo que a sua sociedade reflete. Como se fosse o espelho mal de cada tempo do ser humano.São dois Autos que aparentemente falam do mesmo tema,mas com abordagens diferentes,cada uma de acordo com o seu momento histórico.
São Autos críticos, satíricos e moralizantes que desempenham um nítido papel de representação do social em todas as suas camadas, com isso, perpetuam o juízo de valores. Contudo, cada peça está ligada ao seu momento histórico, ou seja, ao momento e as transformações sociais vividas em Portugal. E o Teatro português também acompanhou essas transformações do tempo.
O estudo justifica – se por se tratar de um tema de suma relevância para a literatura portuguesa.
Esperamos que este trabalho de conclusão de período, contribua de forma significativa para a divulgação deste gênero literário,levando ao conhecimento do público em geral renomados autores, tais como Gil Vicente e Sttau Monteiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1) BARBOSA, Frederico(org.). O Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Klick, 1997.
2) RABELLO, Luiz Francisco. História do teatro português. Lisboa: Europa - América, 1991.
3) __________. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1985.
4) BOGATLEY, Petr. Os Signos do teatro in O signo Teatral. Porto Alegre: Globo, 1976.
5) INGARDEN, Roman. ”As funções da linguagem Teatral” in O signo Teatral. Porto Alegre: Globo, 1976.
6) Texto fornecido pelo Professor Iremar em sala de aula:
O Auto da Barca do Motor Fora da Borda.
7) MARTINS, Patrícia & LEDO, Teresinha de Oliveira. Manual de Literatura:Guia prático da Língua Portuguesa. São Paulo: DCL, 2001.