Quando eu coloco este título eu já me comprometo com ele. Eu já nasci num mundo cindido e dividido completamente e, portanto, qualquer coisa dita vai ser dita por mim num destes horizontes de compreensão. Eu fui criado num ambiente socrático-platônico-eclesiástico e ocidental. Destrinchando o palavrão citado: eu, como a maioria dos que me lerão (quiçá a totalidade) são crias de um mundo em que herdamos os ideais Greco-romanos unidos fortemente à moral e conduta de comunidade cristã. Infalivelmente sabemos bem o significado do vocabulário que inclui palavras como moral, pecado, comunhão, religião, sabedoria, prudência entre outras. E não é de hoje que isso nos é conhecido e herdamos isso com o máximo padrão, mas só que só a partir do ingresso da mídia, da imprensa, da globalização real e virtual que estamos conhecendo o outro lado cindido, enfim, estamos conhecendo o outro mundo: o oriental.

Não adianta dizer que muita gente já mora e já foi passar férias nestes países orientais e que existem comunidades deles dentro de nossas metrópoles, mas a verdade é que, assim como água e óleo, nossas culturas não nos permitem misturas muito profundas a não ser a de continente, isto é, a de lugar comum de se estar. Isso não é uma constatação boa de fazer nem sequer o ideal que queria estar dizendo, mas ao decorrer do texto, vocês entenderão o porquê de minha preocupação com essa cisão história e, quiçá, geográfica tão definida.

Só para reforçar: nós somos crias da Grécia e de Roma. Nós somos crias cristãs e muito de nosso inconsciente (num sentido psicanalítico mesmo) está impregnado de símbolos e pedaços desta origem meio platônica e profana e meio cristã e sacra. Nós não conseguimos conceber algo fora destes limites como bom ou ruim. Misturamos política e sociedade com resquícios axiológicos e morais e aí achamos pecaminoso tudo que não for de nossa alçada e de nosso entendimento. Isto é comum de se notar em pessoas mais velhas que acham absurdo alguém ser mulçumano ou budista e entendem estas coisas como vexatórias e demoníacas. Demônio é uma palavra que só nosso vocabulário compreende do jeito que compreende. Assim, caros leitores e leitores, nós estamos a mercê de um veículo poderoso e novo que é a imprensa, principalmente nós brasileiros, que nos mostra a cada dia e a cada hora notícias de países cuja cultura, bem mais antiga que a nossa, nos é totalmente desconhecida e criptografada, isto é, não sabemos sequer decodificar e esmiuçar para entender melhor. Síria proibindo civis de saírem de casa. Notícia que nos chega e também a morte dois “ocidentais” europeus que cobriam a temporada de caça a civis naquilo que sociólogos e pensadores entusiasmados chamaram num começo disperso de “Primavera Árabe”.  Será mesmo uma primavera ou um “Outono Árabe”? Será que ali onde vemos uma fila de vinte e sete corpos de pessoas civis que nem sequer protestavam contra o governo estamos vendo uma ação legítima que acharíamos pecaminosa e brutal diferente das ações criminosas e massacres cometidos aqui mesmo no Brasil como se vê quase todos os dias e civis no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e outras metrópoles também morrem impunemente?

A minha questão é simples. Desde que nascemos nos ensinam a ser esquizofrênicos. Temos dois mundos: um real que é o nosso, o ocidental e o outro é o irreal ou surreal, o do surto em plena atividade, que vemos quando ouvimos nomes como Arábia, Síria, Budismo, Islamismo, Afeganistão, Palestina e etc.

É todo um vocabulário alienígena ou de complexa significação que nos arrebata a uma pergunta: seriam eles, os orientais, de que jeito? Vocês não se lembram desta pergunta? Sim é o mesmo tipo de pergunta que se fazia sobre ameríndios em terras da América quando os europeus desbravadores, descobridores e colonizadores além-mar vieram a nossa terra. Não digo por só maldade, mas por curiosidade e extremo desconhecimento que além daquelas cidades conhecidas havia outra coisa, outros povos e outros regimes culturais e como lidar com isso? É isso mesmo que ocorre conosco quando vemos em todos os noticiários e os jornais quando o assunto é quase sempre o outro lado do mundo. A nossa esquizofrenia é tão forte que vemos palavras como ultraje, vergonha, regime totalitário (que mal empregamos mais em nosso dia a dia) serem dirigidas por chefes de estado ocidentais para com países orientais.

A “Primavera árabe” nada mais é do que uma tentativa de ocidentalizar os povos orientais através da democracia e da luta pela democracia baseados na crença de um W. Churchill de que “A democracia é o melhor entre os ruins modos de se governar”. O que quero dizer com isso? Que a nossa atenção e a de chefes de estado ocidentais para com países orientais é a de passar por cima das culturas e promover uma ocidentalização e transformar em igual com um único intuito: poder compreender como vive e como se pode ser um oriental, principalmente do oriente médio. Que foi sempre um lugar conhecido, porém pouquíssimo compreendido e aceito. A nossa criação não permite aceitar que pensemos por ideais como sábios e pastores e sim por religiosos e filósofos e derivados. A nossa helenicidade (perdoem-me o neologismo, mas se fez necessário) não nos permite abdicar de implementar cracias ao invés de entender como se pode governar sem se ser através de modelos e moldes ocidentais. Isso nos escapa à razão. Razão! Palavra e mandamento construído no apogeu ocidental: a modernidade. A modernidade racional e toda proposta em cima de preceitos de como se ser e se comportar privada e publicamente que derivou em éticas estranhas e imperativos categóricos, uma linguagem lógica que não é “falada” por ninguém, um remendo de sociedade e de sociabilidade que nada mais do que um manual de como se empoleirar numa metrópole que queremos importar (e tem muitas pessoas que aceitam facilmente) para estes países: economia, valores, sistemas morais, formas de pensar e tudo mais porque nós ocidentais, cristianizados e universais não aceitamos em hipótese alguma a diferença que é uma coisa dificílima de lidar quando é ensinado que você é o mundo e tudo tem de se tornar igual por conta de nossa hegemônica maneira de ver as coisas e tudo em nosso redor.

Não é à toa que olhamos com tanto interesse para o que há com Irã, com Síria, com Líbia, com Arábia Saudita e achamos tão curiosa e medonha a forma com que se indispõem mutuamente. Não é à toa que pensamos que se eles fossem como nós somos e tivessem a nós como espelhos saberiam do Leviatã de T. Hobbes e se safariam facilmente desse problema de inimigo oculto e paranóico que possuem (como se nós não sofrêssemos disso até hoje). A nossa cota curiosidade é daquela curiosidade típica brasileira de “olhar com as mãos” e de mexer naquilo que se quer entender. Por isso vemos tropas e mais tropas estrangeiras atuarem em território de países do Oriente Médio com alegação de proteção e humanitarismo coisa que não permitiríamos que eles fizessem um segundo em nossas terras por considerarmos invasão e desrespeito. É assim que entendemos o “mundo deles”. E como eles entendem o nosso? Não sei. Não há como saber do lado de cá. Mas uma coisa é certa: parece que eles possuem elementos já ocidentais em suas vidas. Muitos parecem adorar a modernidade que nós perguntamos se já chegou de uma vez por lá, mas o pior é que perguntamos de forma pejorativa. Eu tive a oportunidade de ler palavras como progresso, individualismo, oportunidades, democracia, racionalidade que são todas palavras de jogos de linguagem modernos em tablóides e ouvir de pessoas orientais (e médio-orientais em específico, já que sobre povos asiáticos como japoneses e chineses, por exemplo, sabemos muita coisa e eles também nos conhecem bem).

Assim caros amigos e amigas leitores: nós estamos num lugar onde muitos de nós não conhecem (e não adianta passar férias ou temporadas por lá para conhecer o suficiente, porque nunca seremos imersos na cultura e seremos tratados como estrangeiros sempre; não adianta aprender sobre a cultura e os idiomas porque sempre teremos o tratamento desigual, o mesmo que proporcionamos por sinal, com a exceção, por incrível que pareça, de países como o Brasil de alta receptividade cultural) e falando sobre coisas como se fôssemos catedráticos, mas nos esquecemos que usamos nossas categorias que primamos por ser universais para querer entender aquilo que se passa por lá. Será que é certo, ou melhor, justo julgarmos uma lei islâmica pela nossa lei usada implicitamente como parâmetro e alegarmos direitos humanos (criação ocidental e da modernidade ocidental) como via de acesso a isto? E se fôssemos julgados de volta? Como reagiríamos?

Fica clara a minha intenção: é saber como nos liberar clinicamente e socialmente desta esquizofrenia social que se tornou o mundo ocidental e oriental. Como será que saberemos estar num mundo melhor desenvolvido para demarcar mais coisas e não querer impor a ninguém nossas mazelas. Por que o socialismo e o pensamento de esquerda que deu errado no ocidente devem ser importados para lá? A direita daqui precisa ser a de lá? Entendemos mesmo o que é uma teocracia como a iraniana? Há em nossa arrogância ocidental espaço para pensar que não é possível que tenhamos dois hemisférios (tomemos o cérebro como exemplo) exercendo as mesmas funções?

Essa metáfora do cérebro é importante e ilustrativa. Se entendêssemos ao invés de dois mundos como dois lados sairíamos da esquizofrenia para a normalidade rapidamente. Seria assim melhor visto que o que há no oriente médio e norte da África é uma insatisfação com as condições desumanas de tratamento e não um apelo tácito pela democracia. O que há entre nós não é o que há entre eles. Essa sentença parece fácil de proferir, no entanto por que é tão difícil de levar a sério? O que nos impede de levá-la a sério? O mundo, a meu ver, é um só e só precisamos tratá-lo como composto de diferenças inegociáveis culturais e deixarmos ideias como a de “absoluto” e “universal” de lado e partirmos para o irremediável etnocentrismo que só será remediado ou as distâncias diminuídas quando existir o que se pode chamar de “persuasão”, “solidariedade”, “compreensão”.  Sem esse esforço estancaremos no ponto zero que estamos e nunca entenderemos o apelo desesperado de civis na Síria pela entrada da ONU para impedir este massacre como também nunca entendemos porque no Pinheirinho a própria justiça foi desrespeitada e denegrida. Ainda temos muito que aprender e acima de tudo a vontade de aprender que é primordial nós temos que adquirir para ontem senão içaremos cada vez mais esquizofrênicos e doentes e o mundo jamais poderá tentar entender-se melhor.

 

 

 

Eustáquio José.