O que significa cindir um planeta.
Publicado em 22 de fevereiro de 2012 por Eustáquio José
Quando eu coloco este título eu já me comprometo com ele. Eu já nasci num mundo cindido e dividido completamente e, portanto, qualquer coisa dita vai ser dita por mim num destes horizontes de compreensão. Eu fui criado num ambiente socrático-platônico-eclesiástico e ocidental. Destrinchando o palavrão citado: eu, como a maioria dos que me lerão (quiçá a totalidade) são crias de um mundo em que herdamos os ideais Greco-romanos unidos fortemente à moral e conduta de comunidade cristã. Infalivelmente sabemos bem o significado do vocabulário que inclui palavras como moral, pecado, comunhão, religião, sabedoria, prudência entre outras. E não é de hoje que isso nos é conhecido e herdamos isso com o máximo padrão, mas só que só a partir do ingresso da mídia, da imprensa, da globalização real e virtual que estamos conhecendo o outro lado cindido, enfim, estamos conhecendo o outro mundo: o oriental.
Não adianta dizer que muita gente já mora e já foi passar férias nestes países orientais e que existem comunidades deles dentro de nossas metrópoles, mas a verdade é que, assim como água e óleo, nossas culturas não nos permitem misturas muito profundas a não ser a de continente, isto é, a de lugar comum de se estar. Isso não é uma constatação boa de fazer nem sequer o ideal que queria estar dizendo, mas ao decorrer do texto, vocês entenderão o porquê de minha preocupação com essa cisão história e, quiçá, geográfica tão definida.
Só para reforçar: nós somos crias da Grécia e de Roma. Nós somos crias cristãs e muito de nosso inconsciente (num sentido psicanalítico mesmo) está impregnado de símbolos e pedaços desta origem meio platônica e profana e meio cristã e sacra. Nós não conseguimos conceber algo fora destes limites como bom ou ruim. Misturamos política e sociedade com resquícios axiológicos e morais e aí achamos pecaminoso tudo que não for de nossa alçada e de nosso entendimento. Isto é comum de se notar em pessoas mais velhas que acham absurdo alguém ser mulçumano ou budista e entendem estas coisas como vexatórias e demoníacas. Demônio é uma palavra que só nosso vocabulário compreende do jeito que compreende. Assim, caros leitores e leitores, nós estamos a mercê de um veículo poderoso e novo que é a imprensa, principalmente nós brasileiros, que nos mostra a cada dia e a cada hora notícias de países cuja cultura, bem mais antiga que a nossa, nos é totalmente desconhecida e criptografada, isto é, não sabemos sequer decodificar e esmiuçar para entender melhor. Síria proibindo civis de saírem de casa. Notícia que nos chega e também a morte dois “ocidentais” europeus que cobriam a temporada de caça a civis naquilo que sociólogos e pensadores entusiasmados chamaram num começo disperso de “Primavera Árabe”. Será mesmo uma primavera ou um “Outono Árabe”? Será que ali onde vemos uma fila de vinte e sete corpos de pessoas civis que nem sequer protestavam contra o governo estamos vendo uma ação legítima que acharíamos pecaminosa e brutal diferente das ações criminosas e massacres cometidos aqui mesmo no Brasil como se vê quase todos os dias e civis no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e outras metrópoles também morrem impunemente?
A minha questão é simples. Desde que nascemos nos ensinam a ser esquizofrênicos. Temos dois mundos: um real que é o nosso, o ocidental e o outro é o irreal ou surreal, o do surto em plena atividade, que vemos quando ouvimos nomes como Arábia, Síria, Budismo, Islamismo, Afeganistão, Palestina e etc.
É todo um vocabulário alienígena ou de complexa significação que nos arrebata a uma pergunta: seriam eles, os orientais, de que jeito? Vocês não se lembram desta pergunta? Sim é o mesmo tipo de pergunta que se fazia sobre ameríndios em terras da América quando os europeus desbravadores, descobridores e colonizadores além-mar vieram a nossa terra. Não digo por só maldade, mas por curiosidade e extremo desconhecimento que além daquelas cidades conhecidas havia outra coisa, outros povos e outros regimes culturais e como lidar com isso? É isso mesmo que ocorre conosco quando vemos em todos os noticiários e os jornais quando o assunto é quase sempre o outro lado do mundo. A nossa esquizofrenia é tão forte que vemos palavras como ultraje, vergonha, regime totalitário (que mal empregamos mais em nosso dia a dia) serem dirigidas por chefes de estado ocidentais para com países orientais.
A “Primavera árabe” nada mais é do que uma tentativa de ocidentalizar os povos orientais através da democracia e da luta pela democracia baseados na crença de um W. Churchill de que “A democracia é o melhor entre os ruins modos de se governar”. O que quero dizer com isso? Que a nossa atenção e a de chefes de estado ocidentais para com países orientais é a de passar por cima das culturas e promover uma ocidentalização e transformar em igual com um único intuito: poder compreender como vive e como se pode ser um oriental, principalmente do oriente médio. Que foi sempre um lugar conhecido, porém pouquíssimo compreendido e aceito. A nossa criação não permite aceitar que pensemos por ideais como sábios e pastores e sim por religiosos e filósofos e derivados. A nossa helenicidade (perdoem-me o neologismo, mas se fez necessário) não nos permite abdicar de implementar cracias ao invés de entender como se pode governar sem se ser através de modelos e moldes ocidentais. Isso nos escapa à razão. Razão! Palavra e mandamento construído no apogeu ocidental: a modernidade. A modernidade racional e toda proposta em cima de preceitos de como se ser e se comportar privada e publicamente que derivou em éticas estranhas e imperativos categóricos, uma linguagem lógica que não é “falada” por ninguém, um remendo de sociedade e de sociabilidade que nada mais do que um manual de como se empoleirar numa metrópole que queremos importar (e tem muitas pessoas que aceitam facilmente) para estes países: economia, valores, sistemas morais, formas de pensar e tudo mais porque nós ocidentais, cristianizados e universais não aceitamos em hipótese alguma a diferença que é uma coisa dificílima de lidar quando é ensinado que você é o mundo e tudo tem de se tornar igual por conta de nossa hegemônica maneira de ver as coisas e tudo em nosso redor.
Não é à toa que olhamos com tanto interesse para o que há com Irã, com Síria, com Líbia, com Arábia Saudita e achamos tão curiosa e medonha a forma com que se indispõem mutuamente. Não é à toa que pensamos que se eles fossem como nós somos e tivessem a nós como espelhos saberiam do Leviatã de T. Hobbes e se safariam facilmente desse problema de inimigo oculto e paranóico que possuem (como se nós não sofrêssemos disso até hoje). A nossa cota curiosidade é daquela curiosidade típica brasileira de “olhar com as mãos” e de mexer naquilo que se quer entender. Por isso vemos tropas e mais tropas estrangeiras atuarem em território de países do Oriente Médio com alegação de proteção e humanitarismo coisa que não permitiríamos que eles fizessem um segundo em nossas terras por considerarmos invasão e desrespeito. É assim que entendemos o “mundo deles”. E como eles entendem o nosso? Não sei. Não há como saber do lado de cá. Mas uma coisa é certa: parece que eles possuem elementos já ocidentais em suas vidas. Muitos parecem adorar a modernidade que nós perguntamos se já chegou de uma vez por lá, mas o pior é que perguntamos de forma pejorativa. Eu tive a oportunidade de ler palavras como progresso, individualismo, oportunidades, democracia, racionalidade que são todas palavras de jogos de linguagem modernos em tablóides e ouvir de pessoas orientais (e médio-orientais em específico, já que sobre povos asiáticos como japoneses e chineses, por exemplo, sabemos muita coisa e eles também nos conhecem bem).
Assim caros amigos e amigas leitores: nós estamos num lugar onde muitos de nós não conhecem (e não adianta passar férias ou temporadas por lá para conhecer o suficiente, porque nunca seremos imersos na cultura e seremos tratados como estrangeiros sempre; não adianta aprender sobre a cultura e os idiomas porque sempre teremos o tratamento desigual, o mesmo que proporcionamos por sinal, com a exceção, por incrível que pareça, de países como o Brasil de alta receptividade cultural) e falando sobre coisas como se fôssemos catedráticos, mas nos esquecemos que usamos nossas categorias que primamos por ser universais para querer entender aquilo que se passa por lá. Será que é certo, ou melhor, justo julgarmos uma lei islâmica pela nossa lei usada implicitamente como parâmetro e alegarmos direitos humanos (criação ocidental e da modernidade ocidental) como via de acesso a isto? E se fôssemos julgados de volta? Como reagiríamos?
Fica clara a minha intenção: é saber como nos liberar clinicamente e socialmente desta esquizofrenia social que se tornou o mundo ocidental e oriental. Como será que saberemos estar num mundo melhor desenvolvido para demarcar mais coisas e não querer impor a ninguém nossas mazelas. Por que o socialismo e o pensamento de esquerda que deu errado no ocidente devem ser importados para lá? A direita daqui precisa ser a de lá? Entendemos mesmo o que é uma teocracia como a iraniana? Há em nossa arrogância ocidental espaço para pensar que não é possível que tenhamos dois hemisférios (tomemos o cérebro como exemplo) exercendo as mesmas funções?
Essa metáfora do cérebro é importante e ilustrativa. Se entendêssemos ao invés de dois mundos como dois lados sairíamos da esquizofrenia para a normalidade rapidamente. Seria assim melhor visto que o que há no oriente médio e norte da África é uma insatisfação com as condições desumanas de tratamento e não um apelo tácito pela democracia. O que há entre nós não é o que há entre eles. Essa sentença parece fácil de proferir, no entanto por que é tão difícil de levar a sério? O que nos impede de levá-la a sério? O mundo, a meu ver, é um só e só precisamos tratá-lo como composto de diferenças inegociáveis culturais e deixarmos ideias como a de “absoluto” e “universal” de lado e partirmos para o irremediável etnocentrismo que só será remediado ou as distâncias diminuídas quando existir o que se pode chamar de “persuasão”, “solidariedade”, “compreensão”. Sem esse esforço estancaremos no ponto zero que estamos e nunca entenderemos o apelo desesperado de civis na Síria pela entrada da ONU para impedir este massacre como também nunca entendemos porque no Pinheirinho a própria justiça foi desrespeitada e denegrida. Ainda temos muito que aprender e acima de tudo a vontade de aprender que é primordial nós temos que adquirir para ontem senão içaremos cada vez mais esquizofrênicos e doentes e o mundo jamais poderá tentar entender-se melhor.
Eustáquio José.