O QUE É A VERDADE III

Verdade é aquilo em que o ínfimo se confunde com o supremo. Sim, pois, se for acrescido do mínimo possível ou diminuído do mínimo possível não mais será a verdade. Por isso, não existem meias verdades.

Mas essa questão do ínfimo/supremo se aplica à mentira também, senão ela será outra mentira, diferente da primeira. No sentido de ser algo único, uma mentira é verdadeira.

Então, o dito acima não define a verdade. Precisamos de mais ingredientes.

Em qualquer proposição o ínfimo se confunde com o supremo, senão ela será outra proposição. Não existem duas proposições iguais. Uma proposição é o que ela é e não o que as palavras dizem o que ela é. Pode-se mudar o jeito de falar ou escrever uma proposição sem mudá-la. Ela tem uma essência.

Assim é com a verdade e com a mentira. Não é a descrição do fato que o torna verdadeiro ou falso. Se assim fosse, só existiria um ou outro. Mas a essência nunca muda. Se as palavras definissem a verdade ou a mentira, nenhuma destas teria valor, pois uma guinada de 180 graus continuaria sendo verdade ou mentira. É essa impossibilidade da descrição em mostrar a essência das coisas que permite as definições de falso ou verdadeiro.

Dispa um fato (percebido ou não) de sua descrição e ele não mais existirá, não sendo, assim, falso ou verdadeiro (“Agora mesmo, um meteoro abriu uma grande cratera num planeta distante”. Verdadeiro ou falso?). Capte a sua essência e ela será verdadeira, sempre, porque sua essência é única e, portanto, absoluta.

Adianta eu presenciar o fato, vir e contar? Adianta fotografar, filmar? Adianta eu e mais uma pessoa presenciarmos? Ou tem que ser eu mais duas? Ou eu mais cem? Como confiar em alguém ou num grupo que descreve um fato?

Não existe descrição que se aproxime da essência, pois a linguagem humana é incompleta, principalmente a linguagem escrita.

Uma descrição da verdade na linguagem humana é, na verdade (!), um amontoado de mentiras (relativas àquela verdade), isto é, a verdade aqui é uma aproximação cercada de mentiras por todos os lados.

Senão, vejamos. Pegue uma proposição dita verdadeira. Acrescente-lhe uma ou mais palavras. Para alguns a proposição se tornou falsa, para outros ela continua verdadeira. Tire dela uma ou mais palavras e o efeito será o mesmo.

Veja esta sequência: um, um meteoro, um meteoro caiu, um meteoro caiu num planeta, um meteoro caiu num planeta distante...

Tudo o que se aproxima da verdade não é a verdade, mas pavimenta o caminho para ela. E o que não é verdade, é mentira.

A verdade é sustentada pela mentira? Na linguagem humana, sim. Fica impossível, então, saber-se qual é a “verdadeira verdade”.

Supondo-se que a verdade seja o que a maioria aceitar, então, em torno dessa única verdade, numa dimensão indefinível, existem infinitas mentiras, ou seja, de uma suposta verdade é possível derivar várias mentiras. Basta ir variando o que foi dito e tomado como verdadeiro.

Daí, a descrição de um fato tem muito mais chances de ser uma mentira que uma verdade.

Parece então que o conjunto de mentiras é maior que o conjunto de verdades, pois, em torno de uma verdade pode haver várias mentiras. A verdade (a essência) fica borrada.

Em relação às verdades corriqueiras humanas, sim, o conjunto de mentiras é maior que o das verdades. Porém, em relação à essência das coisas, não. Aliás, aqui, o conjunto das mentiras é vazio. Não há suspeita sobre a essência das coisas, portanto, aqui ela não ficará borrada.

O ser humano consegue perceber alguma coisa de anormal com as descrições. É daí que vem a incredulidade e a incerteza. Esta última gera o medo do desconhecido, do exterior, e pode levar à fé cega (acredito porque temo), enquanto que a primeira gera o medo até do conhecido, do interior, e pode levar ao desinteresse (não tenho condições de saber e nunca vou saber).

Para os seres que conseguem captar a essência das coisas, não existe lugar para a incerteza e nem para a incredulidade. A fé tem base. No lugar do desinteresse, fica o respeito, a aceitação.

É por causa da incerteza e da incredulidade que cada um tem sua própria verdade. E também por causa da linguagem, que é essencialmente exterior e pouco ou nada interior.

Como captar a essência das coisas, ou seja, a verdade?

Quando alguém te pergunta se você ama teu filho, o que você diz? Veja que tanto quem pergunta quanto que vai responder (você) usam linguagem exterior, porque só usamos a interior em poucos casos, até sem saber.

Para a pergunta, você diz: Sim, eu amo. Mas, por que você diz? Foi porque ele perguntou e o normal é ele esperar uma resposta positiva? Se sim, então você deu mais importância a ele que a teu filho e, assim, mentiu no todo. Se não, então você diz porque você sente. Na verdade, você só sente, nem diz, ou, em linguagem interior, diz para si mesmo, a todo instante.

Mas, se você diz e não sente, então é uma mentira, apesar das palavras estarem dizendo a “verdade”, porque é o que a maioria espera ouvir, pois é o normal.

Captar a essência das coisas, a verdade, é isso. É sentir, é vibrar com a verdade.

A questão é como passar isso para um grupo, para um tribunal. Talvez um dia, um detector de sentimentos seja inventado...

E se alguém te perguntar: “Você odeia tal pessoa?”. Se você nada sente e responde sim ou responde não, você mente, até para si mesmo. Se você sente, não vai importar a resposta, você pode mentir ou não. Só não conseguirá mentir para si mesmo.

Veja que a verdade nada tem a ver com o bem ou com o mal. O verdadeiro não é necessariamente bom ou necessariamente mal.

Como saber se alguém está dizendo a verdade? Não há como saber, pois esta pessoa terá que se expressar pela linguagem. A menos que você seja capaz de captar o que ela diz para si mesma, mas, supondo que ela esteja em seu estado normal, pois assim ela não mentirá conscientemente para si mesma. Caso ela esteja num estado alterado, então, não haverá maneira de você saber se ela está dizendo a verdade, pois nem mesmo ela pode sabê-lo, pois não sente.

E se alguém falar por ela? Isso é o mesmo que perguntar: uma testemunha pode estar falando a verdade? A situação não é muito diferente, pois a própria testemunha terá que usar a linguagem. E mesmo que você consiga senti-la, por mais verdadeira que ela possa lhe parecer, ainda assim ela será menos confiável que a pessoa que “cometeu o delito”.

Dependendo da situação, você pode até começar a achar que a testemunha está envolvida e, talvez, seja até mais culpada que a pessoa acusada. Mas, ainda assim, você não terá prova definitiva. Você terá que ser bastante sensível. Se esta pessoa não estava presente na hora e local do delito, tanto pior; se estava presente, então ela fica na mesma posição do autor.

E o que é pior: mesmo que você descubra a verdade através da sensibilidade, esta verdade será apenas a tua, você se transformará numa testemunha apenas. Para convencer um grupo, todo ele teria que ter sensibilidade. Falo só sensibilidade porque isto é uma virtude absoluta e, portanto, não se aplica a ela os adjetivos verdadeira ou falsa.

De tudo isso, podemos tirar uma conclusão: É a linguagem que permite a mentira. Uma confissão assinada não passa de um sacrifício aos olhos da “assistência” e que o pode ser ou não para o autor.

O problema da verdade é que ela está sempre no passado, principalmente para a “assistência”, enquanto que a mentira pode estar sempre presente. Portanto, não existe esse negócio de descobrir a verdade. Como descobrir algo que está no passado? Descobertas estão no futuro, não no passado: quando eu comecei a andar, depois dos 11 meses de idade, qual perna levei à frente primeiro?

O que se “descobre” são aproximações, que devem ser confirmadas pelo maior número de provas possíveis, mas, se uma delas tiver uma única fonte (a palavra de uma pessoa, por exemplo, que ninguém possa contestar), a aproximação não é boa. Quanto maior for o número de fontes de uma prova e quanto mais independentes forem estas fontes, melhor será a aproximação. A independência é mais importante que a quantidade.

A linguagem não é capaz de descrever a verdade, pois quando ela tenta fazer isso, a verdade já está no passado, mas a linguagem é presente e é como a água fervente que deve cozinhar algo, mas esse algo tem que estar presente, mergulhado na água.

A verdade se mostra (não digo que totalmente, porque essa palavra não se aplica a algo absoluta) no presente e, devido à instantaneidade do presente, a verdade desaparece junto com ele. Tudo o que se fala dela, qualquer tentativa de descrição vem do passado, como um facho de luz cada vez mais fraco vindo do passado para o quase-presente. Quanto mais fraca for essa luz, mais distante da verdade fica qualquer descrição dela. E quanto mais se ajuntam palavras nesta descrição mais elas embaçam aquela luz.

Por isso, mentiras também são construídas no presente e, por isso, são verdades também.

Sim, são verdades no que dizem de si mesmas, mas são mentiras no que dizem daquilo a que se referem. Se digo: toda esfera é cúbica, a frase “toda esfera é cúbica” em si é verdadeira, pois ela, em si, é um fato, mesmo que palavras nada representem. Que fossem apenas alguns rabiscos, passaram a existir, se tornaram um fato, portanto uma verdade. E mais: tiveram uma instantaneidade presente e foram para o passado.

São duas coisas aqui: a frase e o que ela descreve. A frase, em si, é verdadeira. O que ela descreve é falso, no sentido em que a palavra esfera denota algo que não pode ser cúbico.

Do mesmo modo, o que alguém diz e o que ele refere com sua descrição podem ser coisas totalmente diferentes, muito mais do que as diferenças entre a frase acima e o que ela refere.

Qual é outra maneira de saber se alguém está dizendo a verdade? Pela entonação de voz? Pelo seu humor? Pelo contexto? A entonação, o humor da pessoa, o contexto, são apenas acessórios dispensáveis.

Algumas verdades nunca serão conhecidas. Não falo aqui coisas do tipo “mas nem por isso serão menos verdade” porque isso não cabe. Uma verdade é absoluta, completa. Não existe verdade menor ou verdade maior.

Outras serão conhecidas por alguém, por um grupo, ou até pelo mundo inteiro.

Então, é possível conhecer uma verdade, mas não é possível conhecer toda as verdades. E para conhecer uma verdade, você tem que vivê-la, caso contrário ela nunca será completa para você e, portanto, não será conhecida. Mas, não basta só você conhecer. Quanto maior for a “assistência”, mais acreditada será a verdade. O problema é que a assistência está sempre mudando, ela tende a diminuir, o que vai diminuindo a verdade, apesar de sua essência permanecer. E aquelas pessoas que agora formam uma assistência potencial para uma nova verdade herdam o problema de confirmar o que pode ter sido verdade em seu passado.

Outro problema da verdade é que esta palavra é usada indiscriminadamente, ao contrário da palavra mentira, a qual não deixa dúvida acerca daquilo a que ela se aplica.

Uma das ciências que mais falam em verdade é a Matemática. Tem até uma entidade chamada Conjunto Verdade.

Ora, os números servem apenas para sintetizar quantidades. No fundo, tudo se resume à unidade. Uma maçã mais uma maçã se sintetiza por 2. Elas não se transformam em uma terceira maçã (desaparecendo as duas anteriores) diferente das primeiras. Matematicamente isso representaria 1 + 1 = 1. Na verdade, continuam sendo 1+1 = 1 e 1.

O valor 25 representa uma unidade de algo aparecendo vinte e cinco vezes. É mais econômico escrever 25 do que 1 vinte e cinco vezes.

A expressão 2 + 3 = 5 é uma verdade? Se representarem quantidades de alguma coisa, sim, é verdade. Mais, é uma verdade reproduzível. Agora, 2 é verdade? 3 é verdade? Falta alguma coisa, né? Falta contexto. Falta relação.

A Matemática não diz verdades absolutas, mas apenas relativas, porque o que ela faz é achar relações entre as coisas.

Outra ciência que faz muito uso da palavra verdade e até se acha dona dela é a Lógica. Ora, uma mentira pode ter bastante lógica e assim mesmo continuar sendo uma mentira.

Vejam estas expressões:

1 - Esta frase não é verdadeira.

2 - Eu não sou verdadeiro

3 - Eu minto

Todas as três frases são bem formadas, lógicas, e verdadeiras em si. Quando começamos a analisar sobre o que elas se referem, as coisas mudam:

1 – Quando concluo que a frase diz a verdade, estarei concordando com o que ela diz: que ela é falsa; se concluo que o que ela diz é falso, então ela é verdadeira, o que implica que ela é o que diz ser: falsa.

2 – Se estou dizendo a verdade, então sou falso, então não estou dizendo a verdade e sou verdadeiro. Se estou mentindo, então sou verdadeiro, então estou dizendo a verdade que sou falso.

3 – Se estou sendo verdadeiro (afirmo que eu minto), então eu minto, e o que eu estou dizendo é falso (eu falo a verdade, então o que eu disse é verdadeiro, o que implica que eu minto...); se estou sendo falso (eu não minto), então estou mentindo e sou verdadeiro (falo a verdade, o que implica que eu minto...).

Estes conflitos são apenas aparentes. Aqui fica claro a diferença entre a frase e o que ela refere. O conflito aparece porque misturamos as duas coisas como se fosse apenas uma.

A primeira frase é verdadeira, pois ela está ali, é um fato. Não tem como ela ser falsa. O que ela diz de si não muda isso. E o que ela diz de si é o que está dito e é uma verdade também.

Eu não sou verdadeiro é uma verdade em si. O fato de eu ser falso não invalida a expressão Eu não sou verdadeiro, apenas a confirma. A mesma coisa se aplica a Eu minto.

A Lógica tem pouco a ver com a verdade, mas a verdade tem tudo a ver com a Lógica. Por isso, a Lógica nem sempre leva à verdade.

Brasilio/2006-2007.