O QUE É A MEMÓRIA III

Por que que tudo o que você aprendeu, o que você sabe, não se mantém “fervendo” na memória, de tal modo que você possa usar imediatamente, sem precisar recorrer a anotações ou esforçar-se para lembrar?

A área de memória pode ser considerada como um armazém onde chegam mercadorias (fatos) para serem guardadas (memorizados). Vários caminhões chegam ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, começam os descarregamentos. Na área de recepção das mercadorias só cabe uma caixa do produto. A caixa colocada nessa área é recolhida por um mecanismo de armazenamento que a coloca em uma dada região do armazém. Em seguida, o mecanismo vai buscar outro item para armazenar. Porém, como vários caminhões podem descarregar ao mesmo tempo nessa área, ocorre de as caixas serem empilhadas e o mecanismo de armazenamento as consome num ritmo bem menor do que elas chegam, ou seja, ele fica sobrecarregado. Ele só consegue pegar a caixa que está no topo da pilha. Conforme a pilha cresce, as caixas de baixo são pressionadas de tal modo que ficam inutilizadas, são descartadas. Enquanto isso, a área de armazenamento, apesar de extremamente grande, quase infinita, fica cada vez mais cheia de mercadorias. As mercadorias que chegaram primeiro, quando o armazém ainda estava vazio, foram armazenadas na fronteira da área de recepção. O mecanismo de armazenamento funciona assim para não perder tempo indo até o fundo do armazém. O próximo lote de caixas é armazenado no mesmo local, causando um deslocamento do lote anterior no sentido dos fundos do armazém. E assim vai. Existe um gerente na área de recepção que tem o poder de se concentrar num determinado caminhão. Porém, se o poder de concentração do gerente não for forte o suficiente, outro caminhão poderá tomar a frente e começar a descarregar.

O gerente é único para todo o armazém (contenção de custos!). Ele tem que cuidar do descarregamento e do armazenamento. Como, muitas vezes, ele perde seu poder de concentração, algumas mercadorias entram sem que ele identifique e mesmo assim são armazenadas. Outras, apesar de identificadas, ele não sabe onde foram armazenadas. Outras ainda nem entram, sejam identificadas ou não. Com isso, várias mercadorias diferentes entram para o armazém e muitas de um mesmo tipo entram infinitas vezes.

Praticamente ao lado da área de recepção fica a área de saída de mercadorias. O gerente de recepção e armazenamento é responsável por esta área também. Requisições de mercadorias chegam a qualquer hora do dia ou da noite, vinte e quatro horas por dia, sem parar, apesar de haver intervalos mais ou menos longos entre uma requisição e outra. Elas chegam de todos os lugares, mesmo do próprio gerente e às vezes até sem a vontade dele. Estas que chegam independentemente da vontade do gerente são sempre atendidas, a mercadoria sempre é encontrada no armazém, mesmo que dê a impressão que nunca havia sido armazenada lá. Todas as demais chegam nas mãos do gerente e ele fica responsável por atendê-las, exercendo, assim, a sua vontade.

Não há uma separação, no tempo, entre as mercadorias que saem e as que entram, contribuindo assim para a total falta de controle de estoque. Muitas vezes, chegam requisições de mercadorias que nunca estiveram no estoque e nem estão. Isso dispara no gerente a necessidade de trazer estas mercadorias para o armazém, o que pode acontecer ou não. Depende do gerente ir buscar (o conhecimento de) essas mercadorias. Ele pode obter isso por vontade própria ou, até, acidentalmente.

Uma mercadoria que sai, automaticamente gera uma mercadoria que entra, na forma daquela transação, em que tudo e todos que estavam envolvidos direta ou indiretamente naquela transação fica registrado e passa a fazer parte daquela nova mercadoria. Até mesmo outras mercadorias que, eventualmente, estavam entrando ou saindo naquele instante ficam registrados na nova mercadoria. Igualmente às mercadorias que são descarregadas dos caminhões, essa nova mercadoria passa pela área de recepção.

Quando o gerente recebe uma requisição, venha de onde vier, o mecanismo de busca é acionado. Primeiro, ele verifica na área de depósito mais recente, logo ali onde as mercadorias saíram da área de recepção para o depósito. Se a mercadoria é encontrada ali, ela é imediatamente entregue e toda a transação é registrada como nova mercadoria.

Se a mercadoria não é encontrada, a busca pode continuar ou não. Isso vai depender também da concentração do gerente. Ele pode, inclusive, obtê-la fora do armazém. Ela pode estar num caminhão. Nesse caso, ela, ao mesmo tempo que entra, sai. Só que uma “cópia” dela, assim como de qualquer outra, vai ficar eternamente no depósito.

O gerente só vai tentar atender uma requisição se o pedido se mantiver constante, como uma luz acesa. De qualquer maneira, uma requisição que chega é também uma mercadoria e como tal será armazenada. Assim, mesmo que o pedido seja suspenso, ele, em si, continua ativo, mesmo que fique com um pouco menos de ênfase. Então, a “luz” continua acesa, mesmo que um pouco mais fraca.

A busca pode falhar por vários motivos:

  • O requisitante suspende o pedido.
  • O gerente perde a concentração.
  • A mercadoria não está no depósito.
  • A mercadoria não foi encontrada no depósito. Provavelmente ele está muito no fundo (memória antiga) e o acúmulo de requisições sobrecarregou o mecanismo de busca, que teve que parar a busca.

Como o gerente pode resolver os casos acima?

Se o pedido é suspenso não há motivo para continuar a busca, mesmo que a mercadoria seja encontrada. Então não há problema aqui. Porém, tudo isso fica registrado como nova mercadoria (o processo dessa busca específica e todos os fatos relacionados a ela).

Se o gerente perde a concentração a mercadoria não será entregue. Porém, ele pode recuperar a concentração ao se deparar com a “mercadoria” que entrou na forma de pedido. A partir daí ele retoma a busca ou não.

É difícil diferenciar entre “a mercadoria não está no depósito” e “a mercadoria não foi encontrada no depósito”. Em termos de resultado final são a mesma coisa.

Mas, podemos diferenciar assim: a mercadoria está ne depósito se existe registro de sua entrada, ou seja, existe uma mercadoria que é o registro de entrada daquela que é inicialmente procurada. Mas, como esse registro é uma mercadoria, ele tem que ser procurado também. Só pelo fato de ele ser procurado significa que a primeira mercadoria e seu registro entraram no depósito. Eles serem encontrados é outra história.

Quando uma mercadoria entra no depósito, primeiro é ela que é armazenada. Em seguida seu registro é armazenado. Então, o registro daquele fato normalmente está mais presente do que o próprio fato.

O não encontrar a mercadoria no depósito é o maior problema do gerente. Ele tem só tem uma alternativa: Fazer uma busca fora do armazém. Com isso, ela pode entrar como uma mercadoria que não estava no depósito, ou até como mais uma cópia da mercadoria, e pode até permitir que ele consiga acessar sua mercadoria-registro no depósito e achá-la ou não. De qualquer maneira, ele já a tem nas mãos.

O fato de ir buscar fora se torna um ato bastante concentrado. O gerente fica focado só naquilo e dificilmente se distrai, o que o leva ao sucesso. Os locais em que essa busca é feita pode ser encarada como depósitos auxiliares do depósito principal (memória auxiliar: anotações, memória das outras pessoas).

Mas, vamos supor que depósitos auxiliares não estejam disponíveis, que seja uma mercadoria criada na própria área do gerente e que ele tem certeza que está no depósito. Vamos supor ainda que nenhum caminhão entregue algo semelhante de tal modo que possa ajudar na localização da mercadoria-registro da primeira. Como acessá-la? Ele teria que continuar verificando o depósito. E para isso, teria que suspender as entradas de novas mercadorias e de requisições. O problema é que ele tem um tempo limitado para isso, pois existem mercadorias especiais cujas entradas não podem ficar suspensas por muito tempo, pois a sobrevivência do depósito e de tudo que há nele, incluindo o próprio gerente, dependem destas mercadorias especiais. Se ele não encontrar a mercadoria procurada dentro do tempo limite, ele será obrigado a reativar as entradas e as requisições. Com isso a busca pode falhar. Ele pode até retomar a busca outras vezes, mas isso requer o uso de recursos que se desgastam e correm o risco de não serem repostos a tempo. A melhor coisa a fazer é parar de forçar a busca dessa maneira, é continuar com as tarefas normais. Eventualmente, ele pode se deparar com a mercadoria que procura.

Esse depósito tem um mecanismo de busca interessante: ele “sofre” de um transtorno obsessivo compulsivo. Mesmo que ele pare de procurar, ele continua procurando. É como se dele surgissem vários mecanismos harmônicos que continuam a busca. Assim, ela continua de uma maneira mais leve, sem forçar muito os recursos. Então, num momento qualquer, a mercadoria será encontrada e, assim, re-armazenada. Melhor até, nesse momento, armazenar uma cópia dela fora, num depósito auxiliar, de mais fácil acesso.

Com isso, o atendimento, tanto de recepção quanto de entrega vai ficar muito mais eficiente. Aliás, quanto mais áreas auxiliares forem usadas, melhor. Estas áreas podem até ser outras mercadorias que estejam no depósito. Se a mercadoria principal está difícil de ser encontrada, encontrando uma em que ela esteja, de certa forma, “armazenada”, vai, com certeza, levar ao sucesso da busca.

Nossa memória funciona exatamente como o armazém acima, onde somos o gerente. A área de memória não é limitada, mas o mecanismo de busca é. Ele cobre apenas a parte muito recente da memória, desde o momento presente até umas 72 horas antes, dependendo da profundidade da impressão deixada pelo agente do fato memorizado.

Tudo o que você aprendeu e apreendeu está armazenado. Até coisas que você não aprendeu diretamente estão armazenadas. Estas últimas são formadas por pedaços de coisas que você aprendeu diretamente, não importando a origem do agente causador das coisas primárias, seja ele, por exemplo, um simples pensamento ou sonhos.

Do mesmo modo que no armazém, a melhor maneira de buscar uma memória é “rodar” o mecanismo de busca por um tempo, para que seus harmônicos sejam disparados e usar depósitos auxiliares que foram previamente preenchidos com os fatos memorizados. Também, quanto mais memórias auxiliares criarmos, melhor. Assim, quanto mais fatos presenciarmos ao mesmo tempo diante de um fato principal, melhor, pois a memória de um será armazenada com a memória de todos os demais.

Então, para você estudar para uma prova, é melhor estudar no local, ou num local bastante parecido com aquele em que você vai fazer a prova? Sim! E com os mesmos objetos, e com a mesma roupa e, se possível, com os mesmos barulhos que vão fazer no dia da prova. Só que você terá que armazenar todas estas “mercadorias” estando, ao mesmo tempo, concentrado na mercadoria principal: o assunto de tua prova.

Só temos controle sobre o mecanismo principal de busca da memória. E esse controle é tanto mais fraco quanto menos referências tivermos ao longo do caminho de busca da memória principal que queremos buscar.

Quando tentamos buscar uma memória (lembrar de alguma coisa) da qual não temos nenhuma referência, apesar de sabermos que ela está em nossa cabeça, e não conseguimos encontrá-la dentro de um determinado tempo, nós desistimos da procura, seja por vontade própria ou por uma distração. Então, mais tarde, sem que estejamos nem pensando naquilo, a lembrança aparece diante de nossa visão mental. Naquele momento em que paramos de tentar buscá-la, o que parou foi o mecanismo de busca principal, mas os mecanismos harmônicos continuaram a busca. Eles podem levar semanas, anos até, para acharem a lembrança. E quando acham, eles a entregam para você, seja num instante em que você está sozinho e em silêncio ou num tremendo burburinho, num momento em que você esteja acordado ou sonhando. Como dito antes, mesmo em sonho, ocorre o armazenamento de memória e será uma memória tanto mais fresca quanto for a impressão deixada pelo agente do fato.

Assim, não há como manter tudo o que sabemos, o que aprendemos, prontos para serem acessados, como que fervendo na cabeça. E isso nem pode acontecer, pois, certamente causaria um desequilíbrio fisiológico e psíquico. O que pode ser feito é tentar melhorar o mecanismo de busca. E a melhor coisa mesmo é utilizar memórias auxiliares e manter o controle sobre o mecanismo de busca, não deixando que ele aja sozinho, o que vai causar transtornos psicológicos.

Se um dia conseguirmos controlar os mecanismos harmônicos, manteremos as nossas lembranças “fervendo” na memória sem que tenhamos algum tipo de transtorno, e o acesso será instantâneo.

Brasilio – Março/2010.