O QUE É A EXISTÊNCIA

No desenho animado, o Patolino conversa com o Pernalonga, mas nenhum dos dois tem consciência disso, porque suas consciências não existem. Eles são apenas uma forma de escrita. É uma estória contada pelo autor. Ela poderia muito bem ser contada em forma de palavras, mas o autor quis deixar claro como ele imaginava os personagens, em vez de deixar a imaginação por conta do leitor, que é o que sempre acontece nos livros não ilustrados. Assim, o leitor fica engessado. Dez pessoas que assistem a um mesmo filme são guiadas pela mesma estória, mas essas dez pessoas lendo cópias do mesmo livro, de certa maneira, guiarão a estória.

De qualquer maneira, para o “leitor”, os personagens em desenhos animados estão mais vivos que os de estórias em quadrinhos, e esses mais vivos que os de estórias apenas escritas.

Por outro lado, teatro e cinema apresentam personagens e personificadores. Os personagens continuam não tendo consciência um do outro, mas os personificadores sim. Estes têm consciência um do outro e têm consciência do personagem que o outro encarna. Esta última é importante para que ele possa fazer com que seu personagem interaja com o do outro da mesmíssima forma que no desenho animado, onde o autor faz o papel de todos os personagens, enquanto que no cinema e teatro cada personagem tem um autor, no sentido de animar o personagem, porque, na verdade, atrás deles tem o autor único, que garante que o script seja seguido.

Se o ator não tiver consciência do personagem do outro para que possa interagir, ele vai procurar interagir com o personificador daquele personagem, o que vai estragar a peça (ele vai fugir do script).

No caso do autor de HQ, se ele não interagir com o outro personagem, aquele não vai existir, mesmo que seu desenho apareça, será apenas um ruído para o leitor.

Então:

Estória Escrita:

O leitor cria uma imagem para os personagens, mas é o autor que cria as interações entre os personagens, suas consciências. Se um dos personagens sumir sem mais nem menos, o leitor vai perceber, porque ele já formou uma teia de personagens. Um deles só pode sumir por morte ou viagem. O leitor pode criar cenários ou até modificá-los.

Estória Ilustrada:

O leitor só pode imaginar gestos ou completá-los a seu modo. Também, um personagem não pode desaparecer sem explicação. Cenários podem ser modificados pela imaginação do leitor.

Desenho Animado:

Ao “leitor” só resta assistir e, muitas vezes, interpretar a seu modo as emoções dos personagens.

Cinema e Teatro:

Também, só resta assistir e, em muitos casos, ser influenciado pelas emoções dos personagens.

O cinema é um teatro com palco ilimitado. O desenho animado é um cinema sem personificadores visíveis (atores). Do mesmo modo é a HQ. A estória escrita é um desenho animado sem personagens visíveis.

O que haveria de anterior à estória escrita e posterior ao cinema/teatro?

Em todos os casos, o leitor não é importante para a existência da “peça”. O autor é importante. Os personagens são importantes. Quando não existem personagens, então temos uma peça científica ou do conhecimento humano, como um tratado de Matemática.

Então, o público não é importante na peça para que ela possa existir.

O que seria uma peça de teatro em que os atores só tivessem consciência dos personificadores, ou seja, um do outro? Seria a vida real!

E se só tivessem consciência dos personagens? Seria vida real também! Mas, espere. Quem tem a consciência é o personificador, não seu personagem. Nesse caso ele absorveu seu personagem, se tornou ele. Ali, naquele grupo, todos são “normais”.

Para outros grupos, aqueles que têm controle de si mesmos (como saber isso? como saber se não absorvemos um personagem nosso?), aquele outro grupo pode não ser normal, principalmente se comparados ao contexto em que vivem. O próprio grupo de “anormais” poderá estranhar o contexto, mas acabarão se acostumando e serão absorvidos na vida real.

Portanto, a diferença entre a vida real e o teatro é que, no último, o ator cria uma segunda consciência para si e a mantém sob controle. Ela nunca toma conta dele. Na vida real temos uma consciência que tomou conta de nós em algum momento.

Ser "anormal" é algo que os outros vêem em nós quando temos consciências instáveis, ou seja, ficamos trocando de consciências à maneira de um ator que faz vários filmes diferentes. Para quem não sabe o que é cinema, aquele ator é anormal.

Então, a vida é um teatro no qual nunca trocamos nossos papéis. Ou sim? Trocamos sim, mas não abruptamente. O fazemos ao longo do tempo, caso contrário não evoluiríamos, da mesma maneira que aquelas peças de teatro que ficam 60 anos em cartaz.

Estória escrita, estória ilustrada, desenho animado, cinema e teatro. Todos têm um autor. Quem é o autor de nossa peça, da nossa vida real? Se temos um autor, então somos manipulados. Mas, para sermos manipulados temos que ser inconscientes do autor. Uma coisa da qual somos inconscientes não existe para nós, mesmo que exista realmente. Com isso, é bem possível que exista um autor de nossa peça da vida real. Quem é esse autor não nos é possível saber, pois, no momento, só podemos achar que existe um. Por outro lado, podemos ser como aquele grupo de atores do teatro que só têm consciência de seus personagens. Eles não precisam de alguém que os dirijam. Podem caminhar com as próprias pernas. São autores de suas próprias peças. Ganharam independência. Afinal, esse é o objetivo do autor de uma peça de teatro. Quando ele conseguir isso, sua peça será um sucesso. Eles devem, então, ir ajustando o script ao longo do tempo para que a peça continue um sucesso ou se transforme numa bagunça ou em peças dentro da peça e se digladiando uns contra os outros. Isso é bem o que acontece hoje na nossa peça da vida real.

Então, não há como sabermos se tivemos um autor ou não.

Aquele grupo que alterou sua consciência e passou a viver uma nova realidade para si, teve um momento de loucura na visão dos demais. Mas, se todo mundo estivesse no grupo, aquele momento não seria de loucura, seria uma evolução comandada pela interação entre os componentes do grupo.

De qualquer maneira, permanece um elo perdido: como o grupo ganhou a primeira consciência?

Da interação entre bactérias? Da interação atômica? Da interação entre partículas elementares? Da interação da energia consigo mesma? E assim para trás?

Como energia pura pode interagir com energia pura, ou seja, como um elemento individual e uniforme pode interagir consigo mesmo? Só a consciência pode fazer isso. E ela é energia pura e uniforme. Daí para trás não consigo imaginar nada, pois a pequena parte dessa energia que cabe em mim (minha consciência) não é capaz de vislumbrar o seu todo.

Voltemos às "peças".

Na estória escrita temos um autor e personagens sem personificadores, que, então, ficam por conta da consciência do leitor em "desenhar".

Vejamos (o que aparece entre parêntesis é um opcional). Em uma sequência do mais real para o mais irreal, teremos que:

VIDA REAL

(autor), personagens reais e conscientes, história real, sem público (?!)

TEATRO/CINEMA

autor, personagens irreais e inconscientes, atores conscientes, história real, público inativo.

DESENHO ANIMADO

autor, personagens reais e inconscientes, história real, público quase inativo.

HISTÓRIA EM QUADRINHOS

autor, personagens reais e inconscientes, história real, público meio ativo.

ESTÓRIA ESCRITA

autor, personagens imaginados e inconscientes, história real, público ativo.

ESTÓRIA FALADA

autor, personagens imaginados e inconscientes, história volátil, público mais ativo.

ESTÓRIA IMAGINADA

autor, personagens imaginados e inconscientes, história particular, público super ativo.

?

sem autor, nada existe. O que é menos do que imaginado?

O sentido de "história real" é o de que ela pode ser constatada e não algo que aconteceu realmente. O "público" é o leitor, a plateia.

Nada pode existir se não tiver um autor, um causador. A prova disso somos nós mesmos, o público. Se não podemos interagir com algo, ele não existe. Se podemos interagir, existe. Se existe, tem uma causa, um autor. Quanto mais ativos ficamos, mais participamos da estória do autor. Chega um momento em que estamos tão ativos que a estória passa a ser nossa, e aí dispensamos o autor.

Em que momento somos mais ativos? Quando estamos totalmente conscientes.

E que momento é esse? O momento da vida real. A estória é nossa, mas não podemos afirmar que não teve um autor.

Fechamos o círculo.

Brasilio – Abril/2005.