O QUE É A CONSCIÊNCIA III

A vida de tudo, seja de seres animados ou inanimados, consiste, primordialmente, da luta entre o esfacelamento constante e a alimentação constante, sendo esta última mais forte nos seres animados. Nos dois tipos de seres, há sempre a produção de rejeitos.

Transformadores de alimento são construtores, até de si mesmos. Na linha do tempo há construção, reconstrução e reposição (devido a fatores externos – gravidade, por exemplo, que atrai partículas formadoras, adicionando de um lado e removendo de outro).

Transformação de alimentos é construção. Com o tempo os transformadores precisam, eles próprios, de reconstrução, usando o alimento que eles transformam cada vez mais precariamente, o que atrasa a reconstrução, o que diminui a transformação, o que aumenta o esfacelamento, o que leva à desagregação ou morte.

Enquanto embrião, o esfacelamento é mínimo, a construção é máxima. A vazão de rejeitos é máxima. Quanto mais rápida for a construção, mais rápido virá a desagregação e morte. O que é rejeitado e esfacelado é reabsorvido após uma transformação externa (pela ação de organismos e forças decompositores e transformadores). Estamos em ebulição constantemente. Ao longo de mais ou menos cem anos a ebulição vai diminuindo e cessa. A noção do tempo é dada pela percepção desse processo.

Como essa massa em ebulição tem consciência de si mesma? Se a consciência é física, ela também está em ebulição, no ciclo constrói-reconstrói que se consome. Por que então a consciência de si mesmo fica mantida?

Por causa de herança da célula que se foi para a que fica em seu lugar?

Ou estamos sempre em contato com a célula, mesmo que ela não esteja mais em nós? Isto é, somos uma nuvem infinita de energia onde há um turbilhão central que dá forma ao que chamamos de corpo? Mesmo que uma célula nossa esteja em outra pessoa, e vice-versa, as consciências são individuais? Mas, se é assim, quando o turbilhão se desfaz (morte), a consciência continua!

Mas, nos dois casos, o que é essa “impressão” na célula que chamamos de consciência?

Não existem alternativas físicas para a consciência que sejam melhores do que essas duas. Alternativas não-físicas podem existir.

Talvez nossa consciência seja externa a nós. Talvez nossas células sejam apenas receptores para um transmissor de consciência. Mas, por que “sentimos” que não vem de fora, mas de dentro? Ora, o receptor comum de rádio também diria que vem de dentro (e muita gente ainda acredita nisso – que tem gente dentro do aparelho de rádio!), mas você sabe que a transmissão vem de fora. O que vem de dentro é o efeito, não a causa.

Do mesmo modo que toda a alimentação do corpo vem de fora e é transformada para manter o “efeito corpo” contra o esfacelamento, também a alimentação da mente vem de fora e é transformada dentro para manter o “efeito consciência”.

Altere as peças do receptor de rádio e ele vai refletir essa alteração com novo “comportamento”. Altere as células cerebrais de recepção da consciência e a pessoa vai ter novo comportamento.

Devido o processo natural de alteração de nossas células ser extremamente lento é que mantemos o nosso “eu” pouco alterado, do mesmo modo que o receptor de rádio não mexido mantém a mesma estação sintonizada.

Essa alternativa é extremamente mais lógica do que as outras duas. E não deixou de ser física em seus efeitos. Mas, ainda ficam questões:

  • Como se dá a lembrança que temos das coisas e das pessoas? Será que coisas e pessoas desaparecem mesmo?
  • Qual é a origem da causa da consciência e o que é essa causa?
  • Como esse efeito é percebido pelo dono das células (ou pelo conjunto de células, que seja)?

Existem duas maneiras de lembrar: indo em busca do pensamento ou o pensamento aparecendo "por conta própria". No segundo caso, a lembrança pode ter sido incutida por um agente externo (a vibração da coisa ou pessoa lembrada?). Mas, no primeiro caso nada mais é que rodar o dial de nosso "sintonizador". Mas isso é captar a vibração da coisa ou pessoa lembradas!!!

Não existe uma explicação aceitável que diga que as lembranças vêm de dentro. E assim é, também, com os sonhos pois, quando estamos dormindo nosso "sintonizador" está no estado de maior estabilidade possível. Portanto, não podemos afirmar que as coisas e pessoas desaparecem. Formas desaparecem, pois formas são efeitos e efeitos necessitam de receptores e vários acessórios para serem percebidos.

A origem das ondas de rádio é uma estação transmissora em um lugar real. Elas são vibrações (denominadas de eletromagnéticas) que imprimem o mesmo balanço em tudo que esteja em seu caminho. Um objeto (receptor) reproduzirá as mesmas vibrações se ele “aceitar” (sincronizar-se) totalmente aquelas vibrações, ou seja, se tornar ressonante com elas. Essa ressonância vai depender do estado dos componentes do rádio-receptor, isto é, de como eles estão arranjados em si e entre si. Mas, ainda assim, falta ao rádio perceber que ele está percebendo. Falta a ele se sentir. Até aí a analogia vale: somos como receptores de rádio. A diferença é que podemos perceber isso, ver essa nossa capacidade, como se saíssemos de nós mesmos e nos víssemos agindo. O efeito é bem esse. É como se o rádio retransmitisse tudo o que ele percebe mais o que ele é e captasse essa retransmissão. Na verdade, ele não faz essa retransmissão, ela está sempre acontecendo, pois tudo vibra. Para ele se perceber, então, ele tem que ser capaz de sintonizar aquelas vibrações que o incluem. Essa capacidade é que nós temos, e com a vantagem de discriminar entre o que nós somos e o que o resto é. O rádio não tem essa capacidade porque ele é muito mais grosseiro do que nós e está incluído em nós assim como um grão de areia está incluído no planeta Terra. É uma questão de sensibilidade. Mas, em termos de sensibilidade, estamos muito aquém de muitos seres, o que implica que somos mais grosseiros que eles neste aspecto.

Mas, essa grosseirice é até uma necessidade. Imagine como você se sentiria se, de repente, passasse a ouvir o que os cães ouvem, ou a perceber os odores que eles percebem. O efeito seria parecido com aquele que aconteceria com o rádio quando ele retransmitisse o ambiente em que ele está incluso, captasse, retransmitisse, captasse novamente. Ele entraria num laço sem fim, como aquele efeito chamado de microfonia. No nosso caso, temos limitadores que impedem que entremos numa situação parecida.

De qualquer maneira, então, há algo especial em nossas células receptoras? Sim, são mais sutis. Mas, ainda assim, falta algo.

Suponhamos que pudéssemos construir um rádio capaz de perceber o ambiente à sua volta, incluindo ele mesmo, e então ele externasse isso, ou seja, retransmitisse isso, que fosse pelo auto-falante ou para uma memória; suponhamos também que ele faz isso há muito tempo e tenha acumulado “experiências”. A questão é: como ele coordenaria a interação com o ambiente? Só percepção e memória não bastam. É preciso algo que processe as duas coisas e derive daí uma terceira que seja uma ação.

Onde está esse algo? Não pode estar na memória, pois ela contém apenas dados estáticos, logo não pode ser físico. Não pode estar no pacote da percepção (aquilo que é recebido) e a percepção, em si, não é física. Pode estar no aparato de recepção? Mas esse aparato, se físico, só pode receber e armazenar... Não tem como ele ser físico, não pode, não existe um lugar para ele no corpo.

Onde está e o que é esta entidade inteligente (porque coordena as interações) que é a força geradora do eu (porque percebe o ambiente, incluindo as próprias interações)? Ela é cada um de nós ou cada um de nós é o efeito dela? Se cada um é o efeito dela, então ela é única e somos apenas receptores inteligentes (pela causa) que retransmitem para ela. Ela recebe de volta (como um sonar) as vibrações de cada um de nós; ela tem a consciência de cada um e, assim, somos, ao mesmo tempo, indivíduos e, num nível mais acima, uma única entidade, ou seja, o que achamos que somos é apenas uma ilusão da entidade única, um pensamento fixo dela.

O pensamento é fixo porque o corpo é individual e está emitindo vibrações constantemente. Quando o corpo se esfacela na morte, aquelas vibrações acabam e o pensamento fixo acaba. Talvez seja relembrado de vez em quando (o que acontece com aquele EU? Se sente acordar? Como se percebe? Onde se percebe?); talvez se perca no fundo da memória da entidade única.

Onde está esta entidade única não nos é possível saber com exatidão. Provavelmente está aqui e agora, envolvendo tudo. O que ela é de verdade também não nos é possível saber, assim como não sabemos sobre as demais forças naturais, aquelas reconhecidas pela Ciência. As forças reconhecidas pela Ciência são aquelas com as quais os cientistas podem fazer experiências e, às vezes, derivar fórmulas matemáticas desses experimentos.

Ora, as forças da vida, da consciência, estão em experiências constantes, todos os dias, por cientistas e não-cientistas. Só não nos é possível derivar formulas matemáticas delas. Mas, por que não são reconhecidas? Ninguém explica.

E se cada um for uma força à parte? E se formos como um rádio-receptor para cada estação emissora? Continua valendo a transmissão/recepção que nos dá a sensação de que está dentro, que vem de dentro. Continua valendo a questão do sonar, como se a estação de rádio enviasse um sinal que é captado pelo receptor, depois retransmitido de volta para a estação, que então identifica o receptor. Mas, e os outros receptores pelo caminho, como a estação os identifica? Veja que, nos dois casos, o receptor não passa disso: é um simples receptor sem inteligência, sem vida, mas que vibra por efeito do transmissor. Há um “casamento” de ressonância entre eles. O transmissor consegue captar a presença de todos os receptores, mas só se identifica com um deles:

 
   

Através de seu transmissor (T), cada receptor (R) tem consciência um do outro, se conhecem, mas cada R conhece mais a si mesmo que a outro R qualquer. Cada R tem consciência de seu T porque ele é o próprio T com uma vestimenta R. Mas muitos T acreditam que são R. Acreditam piamente. Isto porque a alma T vibra no corpo R, e é o resultado dessa vibração que T percebe. Ele está atado a R, não consegue perceber além.

 
   

Por não conseguir perceber além, ele não percebe os outros T, mas os percebe, sem saber, quando percebe os outros R. Com tudo isso, T não admite a sua própria existência, a não ser a existência efêmera em R.

E quando o corpo se esfacela (R desaparece)? T continua percebendo os R, mas não se identifica com nenhum deles:

 
   

Para T1, R2 morreu, mas T1 se sente vivo. Para T2, R1 continua vivo. O que T2 pensa de R2 e de si mesmo?

Imagine a estação transmissora de rádio que emitia seu sinal e encontrava um receptor que o emitia de volta, dando à estação a “sensação” de que ela está viva. De repente, aquele sinal não volta mais, não encontra o receptor adequado.

Talvez T2 perca a consciência de si mesmo. Talvez sinta um grande vazio. Como se perceber? Sim, para se perceber é necessário achar um espelho, se separar de si mesmo e se ver. Como algo único, indivisível, pode se perceber?

Mas ele se percebe, porque percebe os outros e sabe disso. T2 ainda percebe R1. Uma câmera te percebe, mas não sabe disso, porque ela não se percebe.

T2 não mais percebe R2, mas se percebe. Se percebe como algo, não como um corpo, mas como algo pensante, invisível a si mesmo, mas palpável conscientemente. Ele pode vagar por aí, até influenciando alguns R, mas não se identifica com nenhum deles. É possível surgir um novo R2 para este T2, pois o material que constitui R é finito e a constituição de R2 pode ressonar com T2 de tal modo que os liguem.

Uma nova borbulha surge no caldeirão da vida. A luta entre a construção e o esfacelamento recomeça. T2 vai moldando R2 até que este desapareça novamente.

No início é muito difícil para T se manifestar totalmente, mas, à medida que vai passando o tempo, fica mais fácil. Talvez ele tenha que passar por vários R antes que consiga se tornar um só com ele. Só neste momento é que ele vai conseguir se perceber como T e não como R. Em seguida vai começar a perceber os outros T também, não apenas R.

Onde está a memória de T? Por que cada R parece ter uma memória única?

Cada R parece ter uma memória única porque seu T tem uma memória única. A memória de T não está num lugar específico, pois ela é a própria ação de T. Memória parece estar num lugar específico porque achamos que ela é algo estático. E achamos que ela é algo estático porque R é estático, e nos vemos com R, não como T. Memória é algo dinâmico, é ação, como um filme “antigo” que tem quer ser rodado novamente (acionado) para a lembrança se tornar viva. Ninguém vai encontrar a memória, seja nas células ou em algum ponto do Universo.

Onde T está? Pode ser que esteja aqui dentro de R, mas não precisa estar. O Sol não precisa estar aqui na Terra para influenciar objetos. Mas o Sol está num lugar real (matéria bruta precisa disso), é possível vê-lo. Sim, mas onde está a força de gravidade? Podemos senti-la, mas não sabemos onde ela se localiza. Podemos nos sentir, mas não sabemos onde nos localizamos.

Brasilio – Junho/Julho/2005.