Na bela capital alencarina havia e ainda há um clube chamado "Country Clube do Ceará", que continua localizado no mesmo endereço, à avenida Barão de Studart com rua Costa Barros. Sim. Ele era e é também um clube agradabilíssimo, mas não é dele que este artigo tratará. Nosso assunto será a inesquecível "SOCIEDADE CEARENSE DE TIRO, CAÇA E PESCA", um verdadeiro clube country construído na foz do Rio Cocó, em 1950, na mesma época em que foi erguida a famosa "Casa do Português", ou Vila de Santo Antônio", na avenida João Pessoa. Infelizmente, será muito difícil escrever um artigo-relato para quem for jovem, ou não tiver vivido os anos de esplendor daquele clube, que deixou profundas saudades nos membros das gerações passadas.

Porém, para quem tiver hoje mais de 45 anos, minhas palavras poderão revisitar um ambiente super aconchegante, em cuja origem havia uma determinada classe de pessoas a quem o clube voltava as suas atenções, já que nasceu como uma comunidade específica, formando uma espécie de fraternidade entre aqueles que gostavam de tiro, caça ou pesca.

Também estou me referindo a toda a ambiência de Fortaleza nos idos da década de 50 e início da de 60, quando a cidade contava nos dedos os automóveis que possuía, as moças indecentes (à época chamadas meretrizes) e os crimes contra a vida, tão raros que deram à Terra da Luz a saudosa fama de uma das cidades mais tranqüilas e seguras do país. Porquanto o estado do Ceará inteiro era muito pouco servido em termos de condições de viagem, uma vez que eram raras as rodovias federais e mais raras ainda as estaduais, de sorte que os viajores precisavam de caminhões, carros de tração das 4 (geralmente rurais e jipes) ou carroças, ainda muito em uso na época. Da mesma forma, as ruas (e muitas avenidas) nem sequer sonhavam com asfaltamentos, o que garantia um estado e uma cidade muito menos quente, até porque havia mais árvores nas ruas e muitos terrenos baldios entre elas. Aliás, era uma cidade dentro de uma floresta (o que ainda vicejava da mata atlântica) e não o contrário, se nos lembrarmos que hoje há pouca vegetação dentro de uma metrópole de pedra e concreto.

Por isso mesmo, a ida ao CLUBE CAÇA E PESCA era uma verdadeira viagem, que durava no mínimo entre 1:30 a 2:00h cansativas, e somente carros 4x4 poderiam arriscar-se a fazê-la. Como o tempo usado para chegar lá hoje, onde funciona o BNB Clube, não passa de 15 minutos (sem trânsito), o leitor pode pensar que o tempo dado de 1:30/2:00h foi um exagero, mas não foi. O problema é que o Caça e Pesca ficava no extremo oposto da cidade, na zona mais selvagem a Leste, bem na foz do Rio Cocó, um rio à época quase virgem. Portanto, era uma região de mata fechada, rios e dunas, com piso de duna em toda a extensão do trajeto, que começava ao final da avenida Santos Dumont, então chegando até o limite entre as avenidas Rui Barbosa e Barão de Studart (na primeira década, na qual ambas eram pavimentadas e curtas). A partir delas, tudo o mais era vida selvagem, sem qualquer pavimentação e servindo apenas para burros e carroças de pescadores, ou moradores humildes do lugar.
Usando um jipe WILLIS de motor americano, a viagem começava ali, na saída da Av. Barão de Studart, e logo no primeiro quarteirão da ruela estreita de carroçal (feita entre matagais à esquerda e à direita), era necessário usar O DIFERENCIAL, que nos carros antigos eram duras alavancas à direita do câmbio principal, e que poucos motoristas sabiam usar bem. Sem isso, era atoleiro na certa.

Muitas eram as "coisas" vistas na viagem. Cansei de ver raposas, guaxinins, macacos e até uma suçuarana, ou aquilo que os caçadores chamavam de onça-vermelha, "parecida com uma puma", cruzando a estrada estreita, sobretudo quando nos arriscávamos a voltar à noitinha. Nunca tivemos qualquer susto, o que provava que os animais estavam bem alimentados e não havia caça predatória. Se ficássemos a olhar as árvores, veríamos todo tipo de ave no percurso, desde os barulhentos "Zé Cariocas" (periquitos verde-amarelos) até garças e urubus, todos livres e felizes em seus habitats.

Após os 30 primeiros minutos (tempo necessário para cruzar toda A FUTURA avenida Santos Dumont, até a esquina com a atual rua Prof. Otávio Lobo), a estradinha começava a ficar branca com a chegada das areias de duna, que vinham desde a praia até aquela altura, onde hoje se inicia uma das primeiras entradas para o bairro Cidade 2000. E pior: começava a elevar-se também, precisando que o carro fosse cada vez mais acelerado para vencer as areias na subida das dunas que alcançaríamos em uns 15 minutos. E os riscos não paravam ali. O carroçal era estreito e subia as dunas por uma ladeira ainda mais estreita, ladeada por dois precipícios, ambos com água em época de chuva e uma lagoa perene do lado esquerdo, chamada à época Lagoa do Papipu" pelos antigos índios das redondezas. Cheguei a ver dois carros, em viagens diversas, tombados e abandonados lá embaixo, talvez por terem pegado fogo no acidente.

Com estrada estreita de areia fofa, com dois precipícios ao lado, subida íngreme sem favorecer a tração e sem oferecer vista (de quem viesse por detrás da duna descendo de volta) e sem vivalma, era ali o ápice da aventura arriscada (em termos), se comparada com os riscos de assaltos e colisões que a modernidade trouxe à região. É claro que alguém poderia pegar o Jipe e ir pela praia, em cuja jornada o único risco era atravessar rios e riachos sem balsa, ou sobre jangadas de coqueiro, quando os canais estavam fundos por efeito de uma temporada chuvosa.

Ultrapassada as dunas mais altas, a longa descida não era plana e, pelo contrário, até à porta do Clube, o carro subia e descia mini-ladeiras sem fim, todas de areia, e sujando os cabelos de quem viajasse em jipe sem capota. Todo o cenário agora era muito mais arenoso que florestal, e havia mesmo grandes extensões de terra virgem e desértica, onde as ventanias bombardeavam as canelas de quem as enfrentava a pé e sem botas longas. Não conto as vezes que vi carros de boi com os eixos quebrados do sobe-e-desce, carroças com seus donos descansando embaixo e carros sem tração (raras vezes) puxados por jipes e rurais para voltar à zona urbana.

O cercado do Clube era todo de madeira na frente e de arame farpado nas laterais e fundos, e a posição em que o "palco dos atiradores" foi instalado era das mais precisas para a prática da "Fossa Olímpica" ("tiro ao prato"), como se um engenheiro de aviação tivesse ensinado sobre direção do vento, caimento da maresia, tempo de escape em dias de chuva e distância segura para o calibre das espingardas, que na época ia de uma 36 (dois canos) até uma 12, que podia ser de um cano ou dois (falei ?distância segura? porque, embora distante da cidade, vez por outra iam para lá banhistas aventureiros, afora os nativos pescadores que dali tiravam seu sustento: nós mesmos, que quase sempre descíamos ao mar para tomar banho, sentimos muitas vezes pequenos encontros de nossa pele com chumbinhos leves, daqueles que o vento não tinha impedido de chegar até à praia, em dias de campeonato de tiro).

Mas tudo era solitário e selvagem demais para qualquer lembrança ruim. Ao caminharmos pela praia "arrodeando" o rio Cocó (que separa o Caça e Pesca da praia da Sabiaguaba, outra possessão indígena que o progresso usurpou), o cenário era cada vez mais paradisíaco e florestal, dando provas viçosas de ausência de exploração, caça abundante, pescaria privilegiada e banho em água limpa, afora as amizades com pescadores que sempre nos vendiam peixes e até bons almoços. Também podíamos atravessar o rio a nado (perigoso) ou a barquinho de toras, se quiséssemos mais aventura. E havia uma ilhota-surpresa na meia-lua da foz, cujas areias eram tão fofas que um homem gordo dificilmente sairia dela sem ajuda (a ilha, que vai e vem conforme as marés, ainda está lá, mas perdeu todo o seu glamour selvagem após a construção da terrível PONTE DA SABIAGUABA, agressão pura ao ecossistema).

Tempos depois o Clube adentrou na "península" que vai até a foz do Cocó e ali construiu casinhas abertas para banhistas e turistas, feitas com 5 colunas de madeira e tetos de palha, posteriormente substituídos por telhas de amianto. Cada coluna tinha um armador, por onde se podia armar várias redes, combinando seus pontos entre si, e ali muitos visitantes dormiam absolutamente sossegados (eu nunca ouvi dizer que alguém fora roubado por lá, enquanto dormia).

Uma vez com 8 anos de idade, meus pais dormindo tranqüilos, fui explorar as redondezas, sem me dar conta da possibilidade de encontrar qualquer coisa diferente, nem mesmo uma raposa ou um cão feroz dos pescadores. Subi a mini-duna mais próxima da entrada lateral do Clube, por onde havia mais uma estrada de terra fofa, armadilha para carros. Ao dobrar à esquerda, em direção ao Rio Cocó, meus pés quase toparam com força numa pedra lisa e pesada, semi-enterrada, pelo que imediatamente olhei, me abaixei e, para minha surpresa, retirei da terra uma "cabeça de machado" antiqüíssima, da era da pedra polida, provavelmente feita pelos primeiros habitantes do lugar, índios ou, quem sabe, raças pré-humanas... Nem sei se é uma cabeça-de-machado. Talvez seja um tipo de instrumento para cortar, adornar ou lapidar alguma coisa. Voltei com ele eufórico, e lembro de correr gritando: "Eureca! Achei um tesouro arqueológico!"... Tempos depois, uns 20 anos à frente, noticiaram que próximo dali acharam restos de uma antiga civilização ameríndia, e eu talvez tenha sido o seu descobridor, no puro lance dos "acasos planejados pelo Além"...

A área ao redor da ilha-fofa era um matagal medonho. Era ali que entravam os grupos de atiradores que também eram caçadores, nos bons tempos em que se podia andar com espingardas sem ser molestado pela polícia e muito menos pela lei, que estressou-se e foi para o papel com a hipertrofia da violência na pós-modernidade. Na época, muitos caçadores voltavam com marrecas, galinhas-d?água, socó-bois, preás, pacas e até bichos maiores, para a alegria de um jantar country. Os outros, os das varas e tarrafas, voltavam com verdadeiros cardumes de tainhas, sauninhas, bagres, tilápias, etc., para outro tipo de jantar. Não havia mansão nenhuma nas redondezas, e muito menos favelas. As casas dos pescadores não tinham o tamanho daquelas e nem a desonra destas, as quais proliferaram como ratos por efeito do crescimento desordenado e a ganância antiecológica do progresso.

Havia dois campos de futebol enormes no clube, um em gramado à esquerda da entrada (onde cresciam carrapichos) e outro de areia para "futebol de poeira", ao fundo, onde o vento também fazia gol. Dentro do clube tinha uma cantina e uma cozinha maravilhosas, que serviam frutos do mar tão bem feitos quanto uma boa comida caseira, afora bebidas à vontade, inclusive estrangeiras. Defronte à sala onde ficavam as mesas do restaurante (feita de mosaico importado e em quadriculado preto e branco), havia um salão de jogos, no qual se podia jogar sinuca, ping-pong, dama, gamão, baralho e até xadrez, com muitas amizades nascendo ali e crescendo com o clube. Mas a atração maior era mesmo os torneios de tiro, que muitas vezes sediaram campeonatos estaduais, dos quais saíam atiradores até para olimpíadas nacionais.

O menino João, que via aquilo tudo e fazia amizades com atiradores, pegou ali o gosto por armas de caça, imitando, durante muitos anos, um velho atirador que cheirava o cano de sua calibre 12, toda vez que acertava um prato. Gostar de caçar não durou muito, e, tão logo a maioridade chegou, comprou 5 espingardas: duas 36 (de um e dois canos), uma 32, uma 28 e uma 12, esta de dois canos. (Foi obrigado a se desfazer de todas elas na época em que o Governo desarmou a população e deixou os bandidos armados, pagando uma mincharia pela paixão de um colecionador e o obrigando a pagar taxas altíssimas para ver as armas na parede de casa). Com tudo isso, acabou formando seu clubinho e aderiu a outros caçadores amadores, tais como Edílson Codorna, Haroldo Ganso, Paulinho Gaivota, Zé Marreca e Nambumarques, com os quais guarda ainda hoje as melhores recordações de sua vida "silvestre" (eles diziam que eu não precisava de apelido porque já tinha sobrenome de caçador!).

A volta do Clube era outra aventura, sobretudo quando se avizinhava a noite. Quando íamos de Rural, o desconforto era menor. Embora não houvesse qualquer lei seca, raras vezes alguém voltou dirigindo "alegre", exceto a alegria pura de um dia feliz.

O que o futuro trouxe à região onde o clube existiu? Favelização, prostituição e criminalidade. Todo o charme de uma área pouco explorada, de areias limpas e água despoluída, foi substituído por um areal fétido, cheio de garrafas de lata e plástico, afora outras coisas que seria até chulo citar. A água do rio também está imunda, a cor da areia mudou e a freqüência é suspeita, com as linhas de ônibus que servem à periferia em que o bairro se transformou.

As finanças do Clube foram escasseando e ele terminou sendo vendido para o BNB Clube, o qual, sem o charme dos tempos dourados, foi obrigado a cortar praticamente todas as lembranças da velha Sociedade "SCTCP", constituindo-se apenas num clube comum, com banhos, playgrounds, toboáguas, shows e restaurante. Pior. Ninguém nunca mais ouviu um tiro por lá, exceto aqueles de cano curto, praticado por marginais que assaltam turistas e banhistas. Triste fim de um sonho. É este o legado da pós-modernidade, sepultando uma época da qual nossos netos jamais terão o prazer de viver, e talvez nem acreditem que um dia houve paz ali.

.........................................Prof. João Valente de Miranda ([email protected])