TÍTULO: O PROCESSO DE DESCONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ANGOLANA: desde a chegada dos portugueses até aos dias de hoje.

AUTOR: DAVID LUTANGO

 

INTRODUÇÃO

A solidez da Angola dos dias de hoje é consequência dos períodos conturbados pelos quais o país passou, cujas marcas ainda se notam no seu território e nos seus habitantes. Ademais, para um completo entendimento dos problemas, das dificuldades e das realidades que hoje se mostram no país, é necessário que se conheçam os factos constituintes destes períodos e as implicações que deles surgiram. Esta reflexão permitirá entender a postura com que as estruturas políticas, económicas e socioculturais do país se apresentam no panorama nacional e internacional.

Foi no final do século XV que os primeiros povos de Angola foram obrigados a se adaptarem à nova realidade que lhes era infligida pelos estrangeiros. Durante este percurso, muitas feições económicas, políticas e culturais, intrínsecas à vida destes povos, passaram pelo crivo da transformação e da integração aos costumes que até então lhes eram desconhecidos. É através desde cenário caótico, cuja duração atravessou séculos de violência, que a identidade dos primeiros povos de Angola começou a se modificar até se tornar na identidade que é hoje.

A presente pesquisa resume, de uma maneira muito concisa, este percurso histórico pelo qual a identidade angolana atravessou desde a chegada dos primeiros estrangeiros até aos dias de hoje, tendo como principal objectivo mostrar os caminhos tortuosos que desconstruíram a cultura dos primeiros povos e fizeram surgir a identidade nacional hoje testemunhada por todos os angolanos.

CULTURA E IDENTIDADE

A cultura pode ser entendida como uma forma de intervenção do homem na natureza, ou seja, um conjunto de elementos que o próprio homem constrói e os torna norteadores da sua conduta durante o seu percurso na comunidade em que se encontra. Podemos ainda tomá-la como traços característicos do modo de vida de um indivíduo ou de um povo. Como se pode observar, a cultura engloba elementos como costumes, linguagens, ritos, instrumentos, produtos e modos de agir e de pensar que não estão inscritos no mapa natural, mas que o homem acrescenta na natureza e os torna motivadores do seu proceder no mundo.

Por outro lado, a identidade pode ser concebida como a consequência procedente da relação entre os elementos culturais que decidimos adoptar e seguir. É neste caminho que Santos (2011) define a identidade como a diferenciação em relação aos outros que torna o indivíduo diferente dos outros, ou seja, a união dos elementos culturais que se decide adoptar e seguir molda o comportamento e o proceder de um indivíduo ou de um povo, tornando-o singular e permitindo a sua distinção com relação aos outros que decidem adoptar e seguir elementos culturais diferentes. Vale assim aclarar que a identidade de um indivíduo ou de um povo está extremamente ligada aos seus elementos culturais; ou ainda, uma identidade pressupõe, necessariamente, um conjunto de elementos culturais solidamente relacionados; e são estes elementos culturais que geram a identidade.

Castells (2001, apud Santos, 2011) propõe que cultura e identidade devem ser vistas como fontes de significados e experiências que compõem os costumes de um povo, isto assentados na ideia de eles serem os motores do percurso histórico de qualquer indivíduo ou povo. É com base nesta proposta que a cultura e a identidade geram todo um constructo social e histórico que distingue os indivíduos e os povos.

IDENTIDADE DOS PRIMEIROS POVOS DE ANGOLA

Acredita-se que os primeiros povos do actual território angolano tenham sido povos caçadores-colectores, denominados Khoisan e Pigmeus, cujos restos datam da Idade da Pedra. Anos mais tarde, apareceram outros povos, os chamados Bantu, que logo iniciaram uma empreitada de domínio, escravidão e extermínio aos indefesos Khoisan e Pigmeus. Porém, alguns destes povos haviam resistido à dominação Bantu e se refugiaram em outras regiões. Entende-se também que os povos Khoisan tenham influenciado os povos Bantu, daí que muitos dos seus traços característicos foram assimilados por vários grupos Bantu, nomeadamente, os Xhosas e os Zulus.

Além de caçadores, pescadores, colectores e criadores de aves, os povos Bantu eram, sobretudo, agricultores. Vale destacar que Bantu significa homem ou ser humano; e como características que compunham os elementos culturais e consequente identidade destes povos, destacam-se as línguas, as crenças, os costumes e os rituais. Eram também povos de extrema originalidade estilística, artística e de grande sabedoria empírica. É nesta senda que os Bantu habitavam o solo angolano e fomentavam a sua cultura nos vários lugares por onde passavam. Importa dizer que foram os povos Bantu que chegaram a constituir o Reino do Congo e formam, actualmente, um grupo étnico africano espalhados ao sul do Deserto do Sahara.

Foi então que no ano de 1482, Diogo Cão (explorador português) chegou com o seu exército na grande foz do Rio Zaire. Ao encontrar-se com os povos nativos que habitavam naquela região, viu-se limitado devido ao entrave linguístico que os separava. É assim que o explorador português, curioso para conhecer a terra que lhe parecia abençoada, decidiu regressar com alguns nativos para serem instruídos no português e na civilização europeia, de modo a se tornarem mediadores da viagem que ele faria posteriormente. E foi assim que, em 1485, Diogo Cão regressou ao Congo e trouxe consigo os negros que tinha levado. Vale lembrar que os primeiros contactos entre os portugueses e os nativos foram, inicialmente, amigáveis.

ESTRUTURAS ECONÓMICAS

Com a chegada dos portugueses, a valorização absoluta da agricultura, como uma estrutura económica extremamente importante, não tardou a acontecer. A agricultura passou a ser o principal meio de subsistência destes povos. Cultivavam, sobretudo, plantas, como o sorgo, a melancia, o jiló, o feijão-fradinho, o dendezeiro e o maxixe. O território angolano apresentava-se rico em terras férteis e constituía-se de um ambiente propício para a estabilidade dos povos e suas culturas. Vale esclarecer que, antes da chegada dos portugueses, os povos nativos exerciam uma agricultura tradicional, onde reinava a elevada mão-de-obra e o lento rendimento das actividades, isto devido à falta de recursos agrícolas modernos que mais tarde os portugueses trariam. É neste sentido que se destacam duas estruturas agrícolas que desencadearam todos os episódios dos séculos seguintes, nomeadamente: estrutura agrícola tradicional e estrutura agrícola moderna.

Estrutura agrícola tradicional

A estrutura agrícola tradicional compreende a agricultura exercida pelos povos Bantu, ou seja, apresenta-se como a primeira forma de agricultura praticada pelos povos nativos antes da chegada dos portugueses. É o tipo de agricultura baseada na mão-de-obra e recorre-se a técnicas manuais de cultivo. Ademais, neste tipo de agricultura, os produtos são comercializados em mercados locais e utilizam-se animais como força de trabalho para a realização das tarefas. Isto faz com que o cultivo seja mais lento, demorado e submete os camponeses a produzirem em pequenas quantidades, fazendo com que haja um baixo rendimento.

Vê-se então que o exercício tradicional da agricultura posicionava-se como uma estrutura absoluta ao qual os primeiros povos de Angola eram submetidos a seguir. Foi então que, com a sua chegada no território, os portugueses forçaram os povos nativos a coexistirem com uma outra estrutura agrícola, nomeadamente, a estrutura agrícola moderna. É a partir disso que a tradição económica destes povos tornou-se repartida; de um lado se mantinha a estrutura agrícola tradicional e do outro lado os portugueses instalaram a sua estrutura agrícola moderna. Jorge (1998, p. 41) realça que era preciso criar um sector (agrícola) moderno que tivesse relações estreitas com a metrópole e, por outro lado, relegar para segundo plano o sector tradicional. Com esta política, a sociedade nativa angolana foi obrigada a se adaptar às novas condições de organização económica impostas pelos portugueses.

Estrutura agrícola moderna

A agricultura moderna distingue-se, em grande medida, da tradicional. Neste tipo de sistema agrícola, há uma elevada distribuição de produtos, uma vez que estes produtos são distribuídos não só nos mercados locais, como acontece na tradicional, mas também nos mercados nacionais e internacionais. Ora, para que tudo isso fosse possível, os portugueses, ao verificarem o potencial das aráveis terras angolanas, investiram em recursos agrícolas avançados para que essa agricultura moderna tivesse o impacto que teve.

Como consequência, a estrutura agrícola moderna permitiu um elevado índice de produção e mais rapidez na obtenção de lucros. Todavia, os portugueses não cessavam com o investimento de máquinas, instrumentos e técnicas agrícolas que possibilitavam este rápido desenvolvimento. Aos poucos, a agricultura moderna foi conquistando mais terras aráveis. Este facto trouxe sérias consequências para a agricultura tradicional que já perdia espaço e praticantes. Jorge (1998) conta que diante da hegemonia do sistema agrícola moderno, os camponeses que dependiam da estrutura tradicional constatavam baixas significativas nos seus rendimentos. O sistema agrícola moderno apresentava um constante crescimento de rentabilidade e a população viu no êxodo rural a solução mais adequada, o que derrubou, exponencialmente, a agricultura tradicional.

A modernização da agricultura angolana foi tão rápida quanto brutal. A sua base social era uma mistura, sabiamente doseada, «de angolanos novos», isto é, de pessoas de origem europeia, mas enraizadas na terra angolana (…) de angolanos assimilados, isto é, angolanos que abandonaram a sociedade originária para se integrarem no sistema espiritual e económico europeu, de angolanos mestiços, que são a marca da interacção das raças e, da mesma forma, o traço de união entre as sociedades africanas e europeias. (Jorge, 1998, p.42)

Neste sentido, o crescimento extremo da estrutura agrícola moderna deveu-se, sobretudo, aos recursos providenciados pelos portugueses e à mistura dos portugueses com os “angolanos novos” que abandonaram suas raízes nativas e ingressaram no espírito e na mentalidade europeia. Importa enfatizar que estes “angolanos novos” eram também chamados de Assimilados. Ora, esta miscelânea económica, e a ingressão de muitos angolanos no modo de vida europeu, originou uma mudança radical nos elementos culturais e, consequentemente, na identidade das gerações que se seguiram.

Descaracterização da identidade original

Aos poucos, a sociedade angolana entrava no capitalismo europeu e se tornava num instrumento de manipulação e exploração por parte dos portugueses. Heimer (1975) fundamenta que estes portugueses implementavam métodos que compreendiam: a apropriação de porções maiores ou menores do território; a mobilização de mão-de-obra forçada; a passagem coagida a uma produção agrícola destinada aos mercados europeus; e a extorsão de impostos e de direitos. É a partir daí que começava o processo de descaraterização dos elementos culturais e da identidade dos primeiros povos de Angola.

Recursos Minerais de África distribuídos em seus países. (História Geral da África, vol. I).

Comentário: Como podemos observar nesta imagem, a África é extremamente rica em recursos minerais. Angola possui, sobretudo, o diamante, o petróleo, o manganês, o ferro e o cobre.

Rapidamente, os europeus criaram colonatos nas regiões mais fecundas do território, sobretudo no centro e no sul de Angola. Notaram também a riqueza existente no subsolo, o que despertou o interesse pela exploração e controlo das riquezas minerais. Porém, diante da falta de recursos para o efeito, os europeus viram-se obrigados a solicitarem auxílio de outros países europeus. Estes países foram aos poucos entrando no território nacional e, consequentemente, trouxeram seus costumes e suas linhas de pensamento, desfraldando a miscelânea entre os elementos culturais dos europeus e as culturas dos povos originários do território angolano.

Jorge (1998) acrescenta que, como consequência desta mistura entre civilizações, já não se identificava uma única raça, etnia ou cultura. Agora, brancos, negros e mestiços, em graus diferenciados, juntos participavam na edificação de uma sociedade moderna que exploraria não apenas a dimensão cultural do território nacional, mas também a economia, a política e a religião. E essa exploração acabaria por desconstruir não só a identidade dos povos nativos, mas também favoreceria a soberania dos portugueses sobre o território e sobre os povos.

Consequências da descaracterização da identidade original 

Até aqui, podemos confirmar que as transformações políticas e económicas não só desmotivaram a prática da agricultura tradicional, mas também transformaram a organização social angolana. A confluência de diversas culturas num único território decompôs os costumes, os hábitos, as crenças e o proceder dos povos originários. Grande parte destes povos foram submetidos a adoptarem os costumes europeus, o que fez com que muitos angolanos fossem instruídos no espírito e na identidade portuguesa.

Ora, estas transformações fizeram coexistir, no território angolano, duas modalidades de sociedade que constituíam uma clara diferença no que tange à organização social da época. De um lado estavam os povos originais que se embasavam no sistema agrícola tradicional; e do outro lado estavam os portugueses e os angolanos assimilados que também constituíam a comunidade euro-africana. Esta comunidade euro-africana que se instalou no território nacional trouxe duas consequências principais: a Mestiçagem e a Aculturação.

Mestiçagem

A mestiçagem foi o resultado do cruzamento dos povos nativos com os europeus. Os angolanos levados em Portugal, ao se cruzarem com os portugueses, acabam por formar famílias e geravam filhos de aparência mestiça, o que cunhou o termo mestiço. E ao regressarem no solo nacional, estas famílias viviam segundo os costumes europeus. Da mesma forma, os brancos residentes em Angola, vieram a cruzar com os negros oriundos, o que intensificou ainda mais o aparecimento de pessoas mestiças. Estes mestiços eram indivíduos intermediários, pois, por serem resultados do cruzamento de duas civilizações, acabavam por carregar um pouco da identidade das duas civilizações. Foi assim que houve a “angolanização” dos portugueses e “portuguezação” dos angolanos, o que intensificou a “euro-africanização”. Amaral (1960) acrescenta que estes mestiços foram produtos do cruzamento de brancos e negros resultantes da atracção especial que as mulheres de cor exerciam sobre os brancos.

Aculturação

Com a “euro-africanização”, a aculturação não demorou a aparecer. A aculturação foi um esforço que os portugueses fizeram para a assimilação do africano à cultura europeia, uma tentativa de civilizar o angolano baseando-se nas tradições, nos princípios e nos costumes europeus. Jorge (1998) esclarece que o assimilado era o angolano desenraizado da sua cultura africana para adquirir e assimilar os hábitos e os costumes dos europeus. Para isto, era necessário que ele falasse e escrevesse o português correctamente, o que o permitia ter direito a privilégios sociais, bem como a certos trabalhos e rendimentos. Esta realidade foi fundamental para o processo civilizatório português. É assim que o processo educativo português teve uma elevada inserção de angolanos assimilados que adoptavam a cultura trazida pelos europeus em troca de melhores trabalhos e, consequentemente, melhores condições de vida.

PRIMEIROS MOVIMENTOS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL

A partir do século XX, especialmente na década de 1940, surgiu uma geração de intelectuais negros, mestiços e brancos (jornalistas, escritores, nacionalistas) que contestavam e lutavam, de forma pacífica, contra o regime do colonialismo português, sobretudo, através da música e da escrita. Jorge (1998) menciona que esta geração é a geração de literatos que, aproveitando-se da inércia do colonialismo português, ingressaram com coragem para a reivindicação da identidade e da dignidade angolana. É neste clima que apareceu a Revista Mensagem, em 1948, e o movimento Vamos Descobrir Angola, em 1945, cujos integrantes eram escritores e activistas políticos, nomeadamente, Mário Pinto de Andrade, António Jacinto, Agostinho Neto e Viriato da Cruz. No entanto, esta aguerrida tentativa foi condicionada por alguns bloqueios que merecem ser destacados.

O impacto do colonialismo português

É importante admitir que o colonialismo português marcou, de tal forma, a cultura e a identidade dos primeiros povos angolanos e se tornou num poderoso bloqueio para que a recuperação total da identidade originária fosse possível. Ademais, esta nova geração de intelectuais já surgia com traços característicos da cultura europeia, o que dificultou mais ainda a restauração total da identidade nacional.

A imposição da língua portuguesa

Outro bloqueio importantíssimo que impossibilitou a tomada total da identidade originária foi a imposição da língua portuguesa. Ora, se, de um lado, as novas gerações de angolanos que surgiam eram, no regime de Salazar (destituído num golpe de Estado em 1926), submetidos a falar, a ler e a escrever a língua portuguesa, do outro lado, as línguas oriundas dos primeiros povos de Angola, abandonadas no tempo pela feridade colonial, foram perdendo e adquirindo novas expressões, novas consoantes, novas palavras, novas vogais e novas pronúncias, ao mesmo tempo que foram se modificando e se adaptando às novas formas da modernidade. Rego (apud Jorge, 1998, pp. 60-61) completa que:

A língua (...) portuguesa foi o veículo de expressão de todos os milhões de seres humanos empenhados na obra comum a favor da grandeza da pátria comum (...) A língua nacional, adaptando-se a todas as latitudes, adquiriu novas ressonâncias, perdeu consoante, abriu vogais, iniciou novos sons, empobreceu-se, enriqueceu-se (...) para o bem da comunidade.

A nova geração de angolanos que surgia era constituída, sobretudo, de indivíduos procedentes da “africanização” e grande parte destes indivíduos desconheciam a cultura e a identidade dos povos nativos. Daí que estes “indivíduos novos”, inclusive, grande parte dos literatos angolanos que reivindicavam a identidade e a cultura original, eram-lhes atribuídos nomes herdados dos portugueses. Nesta altura, a língua portuguesa já era falada por quase todos os habitantes.

É a partir deste dado que podemos cogitar sobre as consequências que surgiriam caso decidamos eliminar por completo a língua portuguesa e voltarmos a ensinar e falar as línguas africanas ou nacionais. Tal substituição, segundo Jorge (1998, p. 170), resultaria num recuo do nível do ensino, o que acarretaria um abaixamento do nível cultural do povo, assim, como resolução desta questão, deve entender-se, no caso específico de Angola, não uma substituição da língua portuguesa pelas outras línguas, mas muito simplesmente uma política de valorização que passe pela sua utilização sempre que isso se mostre possível e necessário. É neste sentido que urge a necessidade de se criar políticas para a “angolanização” do português falado em Angola. Outrossim, a valorização e o ensino das línguas africanas ou nacionais incentivaria não só a prática da cultura angolana, mas daria também uma maior visibilidade e reconhecimento à identidade nacional.

Distribuição das línguas oficiais no continente africano. (História Geral da África, vol. VIII).

A negação dos valores e dos costumes portugueses

Vale admitir que a recuperação total da identidade originária exigia uma maior angariação de recursos humanos e materiais para que isso acontecesse. Assim, além do impacto do colonialismo e da imposição da língua portuguesa, outro bloqueio principal que dificultou os bravos angolanos na tentativa de recuperação total da sua cultura e identidade foi a negação dos valores e dos costumes impostos pelos portugueses.

Os intelectuais angolanos eram submetidos a escolherem a, por um lado, renderem-se ao colonialismo e consequentemente melhorarem suas condições de vida; e, por outro lado, a lutarem contra o colonialismo e consequentemente libertarem todos os angolanos encarcerados pelo domínio português. E na tentativa de persuadi-los a escolherem a rendição, os portugueses elaboraram políticas que também são chamados de princípios do colonialismo. Um destes princípios é mencionado por Vilhena (1955, apud Jorge, 1998, p. 60):  

Para poder aperfeiçoar-se e melhorar as condições materiais e morais da sua vida, o negro deverá abandonar grande parte do que constituía a sua cultura própria e adoptar os valores da nossa civilização, adaptando-se, dentro dos seus limites, a certas funções e obrigações, isto com o fim de demonstrar que estes valores podem ser necessários e proveitosos para o progresso geral da comunidade de que fará, agora, parte.

É neste ambiente de desconstrução da cultura e da identidade originária que a língua portuguesa africanizava-se e o angolano foi, aos poucos, adquirindo novas formas de pensar e de agir, frutos da influência da cultura estrangeira. No entanto, a tentativa de restauração da identidade original, ainda que parcial, continuava a verificar-se no espírito dos angolanos que surgiam e viam em Angola um futuro digno e unitário, mesmo com a variedade de culturas, de raças, de etnias e de ideais que se registrava.

A INDEPENDÊNCIA E O NACIONALISMO ANGOLANO

Como enuncia a história de Angola, o país teve sua independência em 11 de Novembro de 1975. Vale destacar a bravura dos movimentos de libertação nacional que arduamente lutaram para que esta independência se tornasse real. Importa destacar também os nacionalistas angolanos que, após a independência e cientes do impacto colonial português na cultura e na identidade angolana, decidiram escolher a luta contra o colonialismo e a libertação de todos os angolanos.

Foi então que, em meados da década de 1950, a luta pela independência e pela libertação nacional começou a crescer intensamente. Lutar contra o colonialismo significava, resumidamente, lutar contra as instituições coloniais portuguesas e contra as suas políticas administrativas. Não obstante, a principal motivação dos nacionalistas angolanos assentava-se na reconquista do território nacional e na reconstrução da identidade angolana. Importa admitir que os países africanos que já haviam conquistado a liberdade, como o Ghana (pelo presidente Kwame Nkrumah em 1957) e o Togo (pelo presidente Sylvanus Olympio em 1960), serviram de grande impulso para que os jovens angolanos também lutassem pela liberdade do seu país. E para isso, foi necessário o controlo dos dispositivos de dominação, de modo que a luta se propagasse em todo o espaço nacional.

Jorge (1998, p. 129) recorda que o controlo dos meios de informação visava um objectivo essencial: pô-los ao serviço da revolução (...). Pode-se dizer que os principais dispositivos de dominação da época eram a rádio, a televisão e, principalmente, os livros, os jornais e as revistas. É com base nisto que Santos (apud Jorge, 1998, p. 129) argumenta que a rádio também coopera para a revolução. E foi neste clima de revoluções que os movimentos anti-colonialistas (MPLA, UPNA, FNLA, UNITA) prontificaram-se para a erradicação total da civilização patrocinada pelo colonialismo português.

Além dos movimentos de libertação, importa referir algumas associações culturais que surgiram e que foram fundamentais para a luta pela defesa e afirmação da identidade nacional, nomeadamente, a Liga Nacional Africana (LNA), a Casa dos Estudantes do Império (CEI), a ANANGOLA e o Clube Marítimo Africano (CMA).

Vale dizer que, entre as associações criadas, uma das mais significativas foi a Junta de Defesa dos Direitos de África (JDDA), cuja condição para se ser membro era ser negro ou filho de negro. Esta associação foi criada em 1912, em Lisboa, por intelectuais angolanos, santomenses e cabo-verdianos. Esta associação era promovida pela Voz de África, um periódico que se extinguiu muito rapidamente. A JDDA defendia, sobretudo, a afirmação da identidade africana e a possibilidade destes mesmos africanos atingirem altos níveis de instrução e conhecimento. Foi assim que a quando da proclamação da independência, as instituições portuguesas já tinham desaparecidas e Angola se erguia como um país independente e livre do domínio colonial.

A LUTA PELA IDENTIDADE NACIONAL

Como pudemos verificar, a luta contra o domínio português foi um acto que prolongou-se até à independência, como confirma Imbamba (2003, p. 77):

A resistência ao domínio português (...) é um facto que se fez sentir desde o século XV e prolongou-se no tempo e no espaço até à conquista da independência. (...) A partir do último quartel do século XIX e início do século XX, vários intelectuais angolanos, usando como armas a literatura e o jornalismo, começaram a elaborar discursos contestatários bem estruturados e bem nutridos ideologicamente a favor da “dignidade ofendida” e da “consciência nativista”. Era o nascer de uma nova forma de interpelar as consciências quer dos dominadores quer dos dominados. 

Com a conquista da independência, estavam criados os caminhos para a reconstrução da identidade nacional. Esta luta, como já se salientou, visava, sobretudo, a erradicação da cultura deixada pelos portugueses e a conquista da liberdade total dos povos angolanos.

 Com base no impacto “irreversível” da cultura deixada pelos portugueses, os intelectuais começaram a se questionar sobre quais seriam as estratégias adequadas para a obtenção dos resultados desejados. Algumas destas questões foram compendiadas por Mário de Andrade (1962, p. 91), resumidamente – Como   assegurar o renascimento cultural nos países antes colonizados; que lugar reserva à tradição; em suma, como elaborar uma cultura africana original que tenha em conta, ao mesmo tempo, a tradição e o adquirido da civilização moderna”? – Os nacionalistas tentaram responder estas questões numa declaração aprovada pela União dos Escritores Angolanos (UEA) em 1975. Estas respostas se exprimem em:

1º. A necessidade e a urgência de defender a dignidade e a especificidade cultural do homem angolano e de salvaguardar, especialmente, as suas tradições culturais historicamente perspectivadas por séculos de resistência popular e as conquistas culturais obtidas ao longo das lutas pela independência nacional; 2º. A necessidade e urgência de activar a partir dessas tradições e conquistas o inventário cultural do país no contexto particular do renascimento cultural africano enquanto contribuição original para um mundo verdadeiramente livre.

Como se pode verificar, a motivação dos intelectuais angolanos fundava-se na construção de uma nova Angola, onde: 1º. Se pudesse reconstruir a identidade e a dignidade nacional denegridas pelo domínio português; 2º. Se pudesse promover a união dos povos angolanos, de modo a se enaltecer o espírito e a tradição dos seus ancestrais; 3º. Se pudesse integrar a nova identidade angolana no coração de África.

A CONSTRUÇÃO DA ANGOLANIDADE

A noção de angolanidade remete à luta de libertação nacional por parte dos nacionalistas angolanos, cuja determinação se firmava na construção de uma Angola livre do arrojo português. Para um melhor entender, podemos lembrar a definição dada por Alfredo Margarido em 1960/61 (apud Jorge, 1998, p. 157) quando disse que “por angolanidade deve entender-se não só a negritude, mas a perspectiva do homem novo”. Com isto, fica claro, neste conceito, a exaltação dos aspectos intrínsecos ao surgimento de uma Angola reconstruída e ressurgida das cinzas do colonialismo português.

Nesta perspectiva, verifica-se que a angolanidade constitui todos os aspectos ligados à libertação e construção de uma Angola desintegrada do domínio europeu e norteada pela própria cultura. E estes aspectos se abancam, sobretudo, nas questões políticas e culturais, uma vez que o domínio português se enraizou, sobremaneira, na política e na cultura dos povos angolanos. De qualquer forma, os feitos motivados pela ascensão da angolanidade resultou no despertar da consciência angolana e possibilitou a construção da Angola que temos hoje. Ela (a angolanidade) apresenta-se como a receita mágica que conduziria o indígena das trevas da ignorância à luz do saber. Uma forma de passagem do não-ser a ser cultural, para empregar a linguagem hegeliana. (Neto, 1978, p. 14)Todo este pensar é esclarecido por Jorge (1998, pp. 159 - 160), ao afirmar que:

A estratégia proposta visa ao mesmo tempo um regresso às origens (...). No entanto (...) sabe-se em que medida a negritude, enquanto afirmação da realidade cultural africana, é hoje contestada. Da mesma forma, o regresso às origens ou a busca de autenticidade estão perante tais dificuldades que hoje em dia não estão na moda. (...) A angolanidade deve construir-se a partir dos elementos concretos da sua manifestação, e não como um esforço de negação de uma realidade cultural imposta, mas como esforço de afirmação de uma realidade cultural nova, nascida no cruzamento das civilizações e das suas obras (...) é importante verificar e dizer (...) A angolanidade constrói-se com tudo o que a história legou do povo angolano: o substracto negro-africano e os elementos da cultura dominante que através dos séculos penetraram até ao mais fundo do inconsciente popular. 

Vale aceitar que a influência cultural trazida pelos portugueses deixou uma pegada profunda espalhada nas terras e nos povos de Angola. Ora, esta pegada se assentou de tal medida que sua completa erradicação ronda no campo da impossibilidade. Foi nesta constatação que os intelectuais angolanos providenciaram esforços para a construção da identidade nacional que temos hoje: uma identidade construída através da cultura nacional que ainda restava e da apropriação e integração dos aspectos culturais europeus que já se haviam enraizado na essência angolana.

CONCLUSÃO

Consideramos que desde a chegada dos portugueses até à ascensão do século XXI, a sociedade angolana passou por períodos carregados de violência, cujas consequências acabaram por desfazer grande parte da nossa cultura e da nossa identidade. Reconhecemos que o domínio do colonialismo português no território angolano embaraçou e influenciou não só a economia que temos hoje, mas também a política, a cultura, a tradição e a identidade que avigora. Foram nos períodos passados que a exploração, a dominação, a repressão, o massacre e todas as formas de violência fizeram parte da vida dos angolanos, num período onde os angolanos, em busca de melhores condições de vida, viam-se obrigados a abandonarem a identidade que lhes pertencia para adoptarem a identidade do colonizador.

Foi então que, em meio a toda dominação, surgiu a geração que trouxe o despertar de uma consciência libertadora de onde os angolanos extraíram bravura e motivação para juntos lutarem contra o regime opressor em busca da reconstrução da identidade e da retoma do território que lhes pertencia. A independência de Angola foi o resultado claro de toda a luta e de todo o sangue derramado para que os filhos de Angola viessem a ter esperança de um dia voltarem a respirar num país livre e reconstruído, resultando, assim, na constituição da nova Angola que hoje todos testemunhamos.

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