O PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO JUDICIÁRIO E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Alex Bruno Canela Vilela[1]

Klícia Waléria Leite [2]

RESUMO

Este artigo tem por finalidade tratar sobre o fenômeno do Estado de Coisas Inconstitucional, sob o prisma do Princípio da Inafastabilidade do Judiciário. Para tanto, analisar-se-á o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, bem como posicionamentos doutrinários e o Direito Comparado, enfatizando-se os princípios constitucionais ante a violação dos direitos fundamentais que, portanto, fundamentam um Estado Democrático de Direito. Ressalta-se, em específico, o princípio da inafastabilidade da jurisdição e, por conseguinte, a intervenção do Judiciário ante o Estado de Coisas Inconstitucional, a fim de zelar pelo estrito cumprimento dos princípios.

  • INTRODUÇÃO 

O Estado de Coisas Inconstitucional caracteriza-se pela existência de quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais. Tal violação pode vir a decorrer tanto de atos comissivos quanto omissivos, sejam eles praticados por diferentes autoridades públicas. Tal ‘estado’, no entanto, tem sua situação agravada ao passo em que há a inércia continuada por parte daqueles que deveriam tomar algum posicionamento.

Direcionando a análise a uma perspectiva pautada na concepção de princípios, tem-se que, ante a violação massiva de direitos fundamentais, tem-se, por conseguinte, a violação exorbitante dos princípios constitucionais que devem fundamentar as diretrizes de um Estado Democrático de Direito. Ressalta-se assim, sob o prisma do princípio da inafastabilidade do Judiciário, a aplicação de tal princípio, como forma de eximir a massiva violação de direitos fundamentais, ante o Estado de Coisas Inconstitucional.

Enfatiza-se assim o caráter fundamental que permeia os princípios e direitos, ressaltando a possibilidade de intervenção do Judiciário ante o Estado Inconstitucional. Pautando-se, então, na inafastabilidade da ação e, ainda, no adjetivo que está intimamente atrelado aos princípios constitucionais, tal artigo almeja, sobretudo, à exposição de fatores que evidenciam que o Judiciário pode intervir ante a violação de direitos fundamentais e, por conseguinte, combater a violação massiva de direitos fundamentais.

  • PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 

O advento do positivismo jurídico atrelou à concepção de princípios o caráter jurídico, antes não intrínseco ao conceito jusnaturalista do termo. A partir de então, tem-se os princípios não mais com uma instância supra-legal, mas sim dotados de “dignidade de norma jurídica”, segundo FERNANDES (2011, p. 42).

Sob o viés do pós-positivismo, os princípios destrelam-se do exclusivo caráter normativo e passam a incorporar o significado de regras. Assim sendo, os princípios abandonam o caráter secundário de apenas auxiliar na interpretação/integração e passam então a ter força normativa assemelhando-se às regras.

Ante o supracitado, emana então a necessidade de se diferenciar normas e regras, a fim de melhor compreender a concepção de princípios. Assim, vale mencionar Canotilho (1993), indo ao encontro do pensamento de Dworkin, compreendendo as regras e princípios como duas espécies de normas, ressaltando assim que a distinção entre regras e princípios seria uma distinção entre duas espécies de normas.  Partindo de tal ideia, Canotilho sintetiza os critérios que podem auxiliar a diferenciar, sendo eles: o grau de abstração, de determinabilidade, de fundamentalidade, de proximidade da ideia de direito e da natureza normogenética.

“Saber como distinguir, no âmbito do superconceito norma, entre regras e princípios, é uma tarefa particularmente complexa. Vários são os critérios sugeridos. a) Grau de obstracção: os princípios são normas com um grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida. b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa. c) Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).d) «Proximidade» da ideia de direito [...] e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante”. (CANOTILHO, p.167,1993)

Almejando à concepção de princípios, três teorias merecem destaque. A primeira teoria é aquela que identifica os princípios com normas gerais ou generalíssimas de um sistema. Indo ao encontro de tal teoria, preceitua BOBBIO (1997, p. 158), então, que os princípios seriam “normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais”. “[...] os princípios gerais são normas como todas as outras”. 

Ainda almejando expor a diferença entre princípios e regras, autores como Norberto Bobbio e Del Vecchio consideram que os princípios e regras deveriam se discernir pelo grau de abstração (ou de determinabilidade). Essa perspectiva intitulada de critério quantitativo (por colocar em relevo a quantidade de abstração) foi objeto de inúmeras críticas na doutrina, sendo nomeada por Robert Alexy como uma tese fraca. Tal crítica de Alexy faz referência ainda a tese qualitativa desenvolvida pelo autor, que leva em consideração a forma ou modo de aplicação das regras e princípios no caso de colisões (tensões). Tal tese pode ser compreendida como a segunda teoria, defendendo que os princípios não se aplicam integral e plenamente em qualquer situação. Os princípios, não estariam atrelados a exatidão e caráter impetuoso, sendo passíveis de cumprimento em diferentes graus. Na teoria de Alexy, tem-se assim que “os princípios são mandamentos de otimização, ou seja, normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível diante das condições fáticas e jurídicas existentes”.

De acordo com ALEXY (1993, p. 86):

“El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que se realice algo em la mayor medida possible, en relación con las posibilidades jurídicas y fácticas. Los principios son, por consiguiente, mandados de optimización que se caracterizan porque pueden ser cumplidos en diversos grados y porque la medida ordenada de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades fácticas, sino también de las posibilidades jurídicas. El campo de las posibilidades jurídicas está determinado a través de princípios y reglas que juegan en sentido contrário. En cambio, las reglas son normas que exigen un cumplimiento pleno y en na medida, pueden siempre ser sólo o cumplidas o incumplidas. Si una regla es válida, entoces es obligatório hacer precisamente lo que ordena, ni más ni menos. Las reglas contienen por ello determinaciones en el campo de lo posible fáctica e jurídicamente. Lo importante por ello no es si la manera de actuar a que se refiere la regla puede o no ser realizada em distintos grados. Hay por tanto distintos grados de cumplimientos. Si se exige la mayor medida posible de cumplimiento en relación com las posibilidades jurídicas y fácticas, se trata de un principio. Si solo se exige una determinada medida de cumplimento, se trata de uma regla”.

Adotando-se a distinção entre princípios e regras conforme preconiza Alexy, pode-se analisar a estrutura das normas de direitos fundamentais.

Analisando-se o conflito de regras e princípios, tem-se que um conflito de regras só pode ser solucionado através de cláusula de exceção em uma das regras, eliminando, desse modo, o conflito; ou então através da invalidade de uma das regras em conflito. Tal “invalidação” deve-se ao fato de as regras não admitirem graduações em seu cumprimento, uma vez que são garantidoras de deveres definitivos.

Ante a colisão de princípios, por sua vez, tem-se que um deverá ceder perante o outo. No entanto, isso não invalida o outro, mas sim de uma certa “preponderância’. Nesse sentido, avalia-se não a validade do princípio, mas aquele que, na circunstância específica, acaba por ter maior peso.

Dessa forma, tem-se a relação existente entre princípios e direitos fundamentais, justificando assim as inúmeras decisões pautadas no sopesamento de direitos e, por conseguinte, na aplicação daquilo que Robert Alexy já sinalizava em casos de colisão de princípios, isto é, a preponderância de princípio A ante o B.

  • ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL - ECI

 Conceito

O Estado de Coisas Inconstitucional ocorre diante a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem modificar a situação inconstitucional.

O instituto ganhou repercussão com as decisões da Corte Constitucional da Colômbia e tem como principais expoentes no Brasil, a Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), coordenada pelo Professor Daniel Sarmento, e Carlos Alexandre de Azevedo Campos, docente da mesma Universidade. Em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro vive um "Estado de Coisas Inconstitucional", com uma violação generalizada de direitos fundamentais dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios acabam sendo penas cruéis e desumanas.

O Estado de Coisas afirmado pelo Tribunal é direcionado a um amplo de autoridades, abrangendo os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), tanto da União, como dos Estados e do Distrito Federal. A ausência de medidas legislativas, administrativas orçamentárias e judiciais eficazes levou caracteriza o que os defensores do instituto em “falha estrutural”, que tem levado à constante afronta aos direitos dos presos, trazendo repercussões sobre toda sociedade.

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