O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA: RELATIVIZANDO A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO EM CASOS DE ESTUPRO[1]

Natália Cardoso²

Renara Mello

Gabriel Ahid Costa³

RESUMO

Trata do crime de aborto, contemplando o âmbito do princípio da dignidade humana a partir de uma visão diferenciada do tema, pois se voltará aqui o olhar para uma vítima que não é o feto, mas a mulher que pratica ou se submete a um aborto resultante de estupro. Sites na internet, campanhas publicitárias e vídeos chocantes vitimizam todos os dias um feto que tem sua vida interrompida em tão pouco tempo, fazendo com que milhares de mulheres que praticam esse ato sejam julgadas e repreendidas por praticarem conduta "tão desumana". Cabe aqui entender até que ponto um aborto pode ser considerado desumano, levando em consideração as condições emocionais e psíquicas que se encontram uma mulher para tomar tal decisão. Procura-se apontar a preservação e respeito do direito de escolha da mulher que tenha sofrido um estupro que resultou em uma gravidez. O princípio da dignidade humana se preocupará em amparar a vida da mulher e indicar as sequelas e consequências que podem ser deixadas quando o aborto nesses casos se tornam inacessíveis em razão da censura com que o Brasil trata esse tema. Amparados pelo Código Penal, mais especificamente em seu art. 128, procurar-se-á desenvolver tal problemática.

INTRODUÇÃO

É fácil se perceber que o aborto é um dos temas mais polêmicos discutidos na atualidade e isso decorre do elevado índice de incidências dessa prática no Brasil e no mundo. Cabe aqui discutir o aborto dentro das fronteiras brasileiras e suas implicações no Direito Penal. O presente trabalho terá como foco a análise do princípio da dignidade humana quando confrontado pela proibição do aborto em casos de estupro e a necessidade da flexibilização da tipicidade dessa prática em alguns casos.

Essa pesquisa objetivará também expor de que maneira o aborto ocorre com mais frequência e quais são os principais motivos que levam alguém a cometer esse crime, assim como analisar as situações em que o legislador prevê exceções 'a culpabilidade no crime de aborto, ou seja, em quais hipóteses a mulher está autorizada a se submeter a um aborto sem que sua conduta se amolde a um tipo penal - como especificado no parágrafo anterior.

Para que se possa entender melhor acerca do crime de aborto e o princípio da dignidade da pessoa humana, cabe compreender também em que consiste esse princípio e qual conexão é estabelecida entre este e esse tipo penal. A partir desta ideia, procurar-se-á expor como esse princípio garante uma livre escolha a ser exercida tão somente pela gestante - prosseguir ou não com a gravidez -, já que uma opção trará consequências lesivas psicológica e emocionalmente para sua vida quando não tomadas livres de coerção.

O Código Penal brasileiro relata os casos excludentes da penalização do aborto, relatando de forma sucinta os casos citados no artigo 128, dando principal enfoque para o inciso II que regula a legalização do aborto no caso de gravidez resultada de estupro. Isso demonstra que o legislador, apesar de buscar evitar a prática de crimes contra a vida - como é o caso do aborto -, por outro lado enxerga que antes de ser configurada como uma criminosa aquela mulher pode ser vítima, nos casos em que busca se livrar de um fruto traumatizante em sua vida: o estupro que sofreu. Por esse motivo não deve ser penalizada.

1 NOÇÕES ACERCA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E SUA INCIDÊNCIA NO CRIME DE ABORTO

Ingo Wolfgang Sarlet, minuciosamente, define a dignidade da pessoa humana como:

“a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (Sarlet, 2001, p. 60)

O princípio da dignidade humana, preponderante na carta constitucional brasileira, limita diversas ações estatais e privadas, fazendo com que sejam proibidas as condutas que vão de encontro com essa dignidade, preservando assim uma vida digna e com direitos básicos garantidos para todos os seres humanos.

Ao ser coagida pela sociedade para dar a luz a um filho fruto de um aborto, a dignidade não só da gestante é afetada, mas a do próprio filho, que terá que conviver com a lembrança de que é resultado de um ato bárbaro praticado contra sua mãe, aquela que o colocou no mundo.

Por muito tempo se enxergou o aborto tendo como principal vítima e centro das atenções o feto que é abortado. Muitos grupos religiosos se posicionam contra a prática, considerando criminoso aquele que tira a vida de alguém de forma tão prematura, equiparando uma mulher que interrompe uma gravidez resultante de um estupro, por exemplo, a um assassino que mata a sangue frio.

O objetivo aqui é voltar esse olhar de vitimização para a mulher que por ter sido violentada acaba engravidando e opta por interromper a gestação. É unânime a opinião que o estupro é uma violência que deixa sequelas irreversíveis na vida de uma mulher quando não acompanhada em longo prazo por um profissional qualificado, que a ajudará a reerguer sua vida.

O estupro isoladamente já acarreta sérios traumas. E quando ele é sucedido de gravidez? É justo e viável priorizar a vida de um feto quando isso produzirá uma verdadeira calamidade na vida de uma mulher que sofreu abuso sexual?

Ao sopesar as consequências, chega-se a conclusão de que ninguém será beneficiado se a mulher optar pela continuação da gestação, haja vista que ela conviverá com aquele trauma para sempre, pois agora há um fruto resultante da violência que sofreu. Quanto à criança, quando souber a origem com que foi concebida, não se comportará de forma diferente do exemplo que será apresentado no próximo tópico. Além de não se sentir amada, se sentirá o motivo de tristeza e desgraça na vida de sua mãe.

2 CONSEQUÊNCIAS DO ESTUPRO NA RELAÇÃO ENTRE MÃE E FILHO QUANDO ESTE É FRUTO DE ABUSO SEXUAL

Por diversas vezes a falta de acesso a um aborto seguro pode causar transtornos que atingem mais de uma vida. O tabu com que é tratado o aborto e a hipocrisia existente na sociedade ao condenar os praticantes da interrupção da gravidez com a retirada de um feto indesejado causa uma desestruturação na vida de muitas pessoas, o que não pode ser revertido posteriormente.

Claudia Salgado, 28 anos, gerente de varejo, fala de forma corajosa sobre a ilegalidade do aborto e suas consequências absurdas, exemplificando a origem de sua vida – um abuso sexual sofrido por sua mãe. Claudia expõe sua vida e relata sua indignação com o fato de ter nascido sem ter sido desejada.

"Essa história afetou minha vida e a relação com a minha mãe por muitas razões. Ela não tinha a menor estrutura emocional de ter um filho sob aquelas condições e naquela idade. E eu nunca me senti desejada. Minha infância ficou quebrada e minha vida, incompleta. Só soube dessa história quando tinha 11 anos. (...) Por ser fruto de um estupro, me sinto até mesmo no direito moral de ser a favor do aborto. Eu sei o quanto foi horrível e quantas vezes eu desejei não ter nascido, pois acredito que a vida da minha mãe teria sido muito melhor se isso não tivesse acontecido”.

É certo chegar à conclusão de que Claudia provavelmente nunca terá uma vida normal, livre dos traumas do passado, uma vez que se enxerga como o motivo da infelicidade de sua mãe e a razão pela qual ela não pôde ter sido algo melhor em sua vida. Claudia, em seu blog, ainda desabafa:

"Sempre tive o sentimento de que ela se importava comigo, mas não me amava… E até hoje tenho este sentimento, mas hoje é mais compreensível porque, com o tempo, adquiri maturidade para entender o quanto isso foi danoso e o quanto deve ter sido difícil para ela ter   que conviver com o fantasma de um ato bárbaro. É muito difícil lidar com a dor da rejeição, ela nos deixa realmente miseráveis… E mesmo que você tente se agarrar a seu orgulho, esbravejar que está tudo bem e ser indiferente a situação, não tem como: aquilo está ali, é a realidade da sua vida e você precisa aceitar."

Para os adeptos da proibição da prática do aborto, fácil se torna julgar e incriminar a realização desse ato quando não se possui na prática uma experiência como a de Claudia, fato que inviabiliza por parte dela uma opinião diferente senão da legalização do aborto, que dará a mulher direito de prosseguir ou não com um fantasma de um trauma vivido no passado.

3 O CRIME DE ABORTO E A NECESSIDADE DO DIREITO DE ESCOLHA DA MULHER

De acordo com dados apresentados pela Istoé, a cada ano, o Ministério da Saúde estima que ocorra mais de um milhão de abortos provocados no país, sendo esta a quinta causa de mortalidade materna no Brasil. 173.960 curetagens (procedimento feito após um aborto provocado ou espontâneo) foram registradas no SUS até novembro de 2012. Mais de novecentas mil mulheres foram internadas no SUS por aborto e suas complicações entre 2007 e 2012. O custo desse atendimento foi de R$ 180 milhões.

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