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O POVO DO TELHADO


Imagine uma menina morena de dois anos de idade que fora abandonada pelos pais em um orfanato de um bairro um pouco afastado do centro da cidade com a única coisa que eles lhe deixaram que era o nome, Creusalinda. As razões de ser abandonada só os pais sabiam e isso significava que uma de suas perguntas nunca teria resposta, pelo menos, decente. A sua vida mal tinha começado e já caíra do cavalo. Tinha que aceitar.


1982

O tempo não pára, jamais. Neste momento, Creusalinda se encontrava com dez anos de idade. E no orfanato "Casa da criança" todos eram alegres como podiam e felizes da maneira possível. Menos Creusalinda.
Aquela menina vivia triste, sempre. Não era raro que perdesse a cabeça com os seus amiguinhos: brigava, batia, dava socos e pontapés. Ninguém sabia de quem era a culpa, diga-se de passagem. A inspetora tinha que enxugar o suor da testa, se tinha! Creusalinda tinha o coração cheio de raiva, mas não era pelo mundo ou das pessoas, apenas sentia raiva. Sabia que não seria adotada por ser velha demais, e só tinha dez anos; abandonou a idéia de ter pais de verdade. Sentia-se sozinha apesar de cercada por pessoas.


O orfanato "Casa da criança" era razoavelmente grande com as suas casinhas brancas onde ficavam as salas, escritório, refeitório e quartos das crianças. Havia pinheiros ao lado da rampa de entrada, à esquerda um pé de castanha portuguesa, do outro lado árvores, mais à direita uma horta e um campinho lá atrás onde as crianças praticavam "Educação Física". As crianças maiores ajudavam a cuidar dos pequenos, ajudavam também em outras tarefas comuns além de serem responsáveis pelo seu próprio "quadrado". Creusalinda reparou em teias de aranha grossas de poeira que surgiam próximas à sua cama, logo teria que limpá-las, esperava não esquecer disso.


E Creusalinda não saía muito dali, claro. Só saía para ir à escola, levava cerca de 15mim para chegar. Estava na primeira série, ainda. O trajeto era feito ao lado de pesados caminhões de carga que circulavam pela rodovia, sempre movimentada, passava em frente a várias fábricas e indústrias também. A poeira sempre entrava-lhe nos olhos na época seca, que perigo. E quando chovia o barro a deixava mais alta e subia-lhe pelas sandálias.
Às vezes, a sua tristeza era tanta que Creusalinda se revoltava, tanto que nem sempre conseguia se explicar. A vida era complicada. A menina órfã sabia que tinha irmãos, isto é, provavelmente, já que fora abandonada era certo que viriam outros filhos para substitui-la, sentia isso. Por que tinha sido abandonada? Esperava encontrar a resposta.
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Creusalinda não fantasiava, nem mesmo no Carnaval. Mas será que tinha irmãos realmente?! Irmãos que nunca conheceria?
Assim era a sua vida pacata, e assim tinha tocado o barco.


Um dia, a noite estrelada lhe trouxera uma surpresa: uma crise de insônia. Era uma surpresa, sem dúvida, nunca tivera problemas para dormir!
Seguia-se a madrugada; o luar clareava a noite e a quietude do quarto. Havia mais colchões do que camas, e Creusalinda sendo uma das mais velhas dormia em uma delas, na verdade, na parte de cima da beliche de madeira, sem detalhes ou adornos, simplesmente reto e liso. Sem conseguir pregar os olhos, a menina se revirava inquieta, e a beliche dava os seus rangidos. Foi durante um olhar perdido que a menina percebeu um movimento fortuito no teto, ou melhor, nas vigas da estrutura da telha-vã. O mundo parecia ter parado por alguns segundos.
A menina não mexia os olhos brilhantes nem ousava piscar com medo que desaparecessem: homens pequenos que iam e vinham pelas vigas, bem, um pouco mais do que pequenos, podia-se dizer. Creusalinda ficou enfeitiçada, mal acreditava no que via. Era fabuloso e insólito! Continuava deitada, não queria assustá-los, por isso não se atrevia a mexer ou emitir qualquer som, respirava o menos possível até; tinha entrado em um transe de contentamento. Entretanto, Creusalinda não notou que alguém a observava de sua cabeceira, acima de seu travesseiro, imóvel e imperceptível, barbado e com um jeito bonachão, alguém também pequenino. Esse alguém levantou o bracinho e o movimentou em espiral fazendo com que a menina adormecesse lentamente enquanto sorria satisfeito; e espiralando se foi com o seu bordão.


Ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa que Creusalinda fez, foi sorrir. E continuou a sorrir enquanto arrumava o seu cabelo pixaim típico, colocando presilhas e prendendo-o com vários grampos. Preparou-se para ir à escola.
Em um certo momento, Creusalinda se viu confusa com o que vira durante a madrugada: verdade ou sonho, se questionava. Não contou nada aos coleguinhas que caminhavam ao seu lado em direção à escola nem a ninguém. Se foi um sonho não era real, portanto, não tinha acontecido, não merecia ser compartilhado; era um ponto de vista seu.


Durante aquela semana, a mente e atenção de Creusalinda ficaram distantes. E o resultado disso foi que levou um pito, um não, mas vários, principalmente, em sala de aula. Conversando com os seus botões viu que aqueles homenzinhos foram uma ilusão, o reflexo de uma doidice, ou seja, um puro sonho. Estava decidido!
Creusalinda ficou desacreditada consigo mesma, mas não o tempo suficiente para que levasse algo a sério. Era uma criança, e ainda achava graça das coisas que lhe aconteciam. Não tinha motivos para complicar.



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Se foram mais alguns dias e Creusalinda aparentemente não se lembrava mais daquela feliz noite de insônia, com aquela monotonia do cotidiano com as mesmas coisas de sempre. Sentia-se mais sozinha do que nunca no momento. Chorou escondida, pois quem lhe entenderia? Ninguém.
Ela estava sozinha. Sempre esteve.


A noite caiu como um véu sobre o orfanato. As pálpebras das crianças caíam e se fechavam, adormeciam mansamente como anjinhos; o que eles eram de certa forma.
Então, ao longo das horas, uma criança abriu os olhos de súbito. Os grandes olhos se mexeram para a esquerda, para a direita e para cima. Piscou. Seria uma outra noite de insônia para Creusalinda?
Ela suspirou, coçou os olhos e se virou para a janela, instintivamente, queria ver como a noite estava. E viu que estava como das outras vezes, a não ser por alguém que a olhava do parapeito da janela, alguém pequenino. Creusalinda sentou-se na cama, surpreendida, mostrou que certas memórias estavam frescas em sua mente como frutas no pé. O seu queixo caiu: eles tinham voltado!
A noite estava escura sem o luar, para a sorte da menina uma leve claridade vinda de um poste mais alto atravessava as vidraças. Conseguiria vê-los, mesmo que mal.


O homenzinho de pé no parapeito da janela fitou Creusalinda por três segundos e, sorriu. A menina também sorriu, tímida. O homenzinho cruzou os braços e repentinamente outros quatro homenzinhos caíram no colo da menina, assustando-a.
__ Olá, pequena dama__ disse um deles.
__ O-Olá__ disse Creusalinda em voz baixa, com um pouco de medo do desconhecido.__ Quem são vocês?!
__ Somos do povo do telhado__ respondeu outro.
__ Eu sou Kon, aquele de amarelo no parapeito é Son, estes são Ton, Run e Bin. Prazer em conhecê-la, pequena dama__ disseram todos ao mesmo tempo, Son chegara num piscar de olhos a tempo de dizer "pequena dama".
__ Prazer em conhecer vocês também__ disse Creusalinda.__ Kon de cabelos lisos, Ton de cabelo amarrado, Run de bochechas coradas e Bin de nariz grande__ Creusalinda encontrou um jeito de se lembrar de tantos nomes.__ Ah, e Son vestido de amarelo como o sol.
Todos trocaram sorrisos entre si. A menina achou os homenzinhos simpáticos e bonitos; ela gostou deles. E entre os cinco, três tinham barba e aparentavam ser mais velhos do que os outros dois de cabelo aparado e rosto limpo: Run e Bin.
__ Por que me chamaram de pequena dama se sou muito maior do que vocês?__ Creusalinda estranhou.
__ Chamamos você de pequena dama porque é jovem__ Son esclareceu.__ Jovem como uma semente à espera da Primavera para germinar.
__ Jovem como uma lagarta que ainda come a folha__ Bin continuou.__ Que em casulo, se espera tornar.
__ Ah, entendi...__ disse a menina coçando a cabeça.
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Os pequeninos se entreolharam e depois, se voltaram para Creusalinda encarando-a com um olhar sério, fazendo-a pensar que fariam algum mal a ela. Creusalinda segurou o cobertor e o apertou entre os dedos. Começou a suar discretamente.


De repente, os olhos dos pequeninos ficaram semicerrados, pareciam que estavam se preparando para dar um bote; mas não, eles apenas sorriram, de novo.
__ Gostaria de passear conosco, pequena dama?__ Ton perguntou.
__ Claro que sim!__ respondeu Creusalinda de imediato, sem pensar.__ Claro que sim!
__ Mas não pode contar para ninguém, não se esqueça disso__ Ton avisou enquanto a menina balançava a cabeça para cima e para baixo.
Run olhou para os seus companheiros, enfiou a mão direita no bolso esquerdo da camisa e tirou uma bolinha que cintilava no escuro do quarto__ um comprimido mágico com certeza__, e o entregou a Creusalinda.
__ Coloque na boca__ disse Run, fazendo os gestos de jogar algo na boca e engolir. E foi o que Creusalinda fez, de uma vez.__ Não dói nada__ alertou Run.
Creusalinda começou a sentir uma leve vertigem, e também uma sensação esquisita e indizível de algo comprimindo-se: a cama, o lençol e o travesseiro ficavam cada vez maiores, o teto cada vez mais alto; levou um tempo para que Creusalinda percebesse o que estava acontecendo, nem ao menos sabia o que aquele comprimido mágico fazia, pois não lhe disseram. Ao se dar conta, ela já estava do tamanho dos pequeninos. Que estranho era olhar para eles cara a cara!
__ Você está ótima__ elogiou Run.
Creusalinda sorriu com satisfação.
__ E para onde nós vamos?__ ela quis saber agitada.
__ Para cima!__ lhe responderam. E um a um, os pequeninos começaram a desaparecer em pleno ar, rápidos como o ato de piscar os olhos; Creusalinda pensou que se esqueceriam dela, afinal, não sabia desaparecer como eles! O último que faltava desaparecer era Kon de cabelos lisos.
__ Venha, pequena dama, me dê a sua mão__ disse ele gentilmente com um sorriso e com o braço estendido.__ Não esqueceríamos a nossa convidada especial. Me dê a sua mão, aposto que os outros já estão nos esperando. Não tenha medo.
__ Não estou com medo!__ Creusalinda esbravejou.__ Nunca tenho medo__ ela esticou o braço lentamente, a sua mão tremia. Quando Kon segurou a sua mão com firmeza, os dois desapareceram num estalar de dedos; e repentinamente se viram sobre as vigas que sustentavam o telhado. Aquilo foi tão inesperado para Creusalinda que a fez cair de joelhos.
__ Por que demoraram tanto?__ perguntou Bin.
__ Pensei que tivesse mudado de idéia, pequena dama__ disse Ton.
__ Não precisam me chamar de pequena dama o tempo todo__ disse Creusalinda ainda de joelhos.__ Tenho um nome que é Creusalinda e... nunca tenho medo.
__ Eu acredito__ disse Son.__ Agora vamos subir um pouco mais e sair daqui__ caminharam pelas vigas depois de fazerem a menina se levantar e se equilibrar, saíram por um vão entre a parede e as telhas, do lado de fora, escalaram as telhas aos trancos e

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barrancos em direção ao topo; era claro e inegável que Creusalinda não tinha a experiência do povo do telhado.


Lá no alto, encontraram um curiango com a sua cauda longa e detalhes na ponta, que os esperava; Creusalinda já tinha visto alguns curiangos antes: pássaros que se alimentam de noite e frequentam as estradas de terra cercadas por árvores e mato, pelo que ela tinha visto e lembrado. Não sabia que um curiango era tão bonito de perto, e como era grande para alguém que tinha o tamanho do povo do telhado.
__ Somos seis__ disse Ton.__ E seis é um número grande para um pássaro só.
__ Tem razão__ os outros concordaram. Run se aprumou como um pássaro e soltou um grito cantado e agudo, sua voz era melodiosa e agradável aos ouvidos. Creusalinda ficou melodiosamente encantada.
Run fez silêncio. Esperaram alguns instantes.
__ Sem muitas nuvens, vento médio, céu estrelado__ Son observou.__ Uma noite linda e favorável para um passeio. Oh, ele está chegando__ todos se voltaram para o curiango que se aproximava. E quando ele pousou próximo à Creusalinda, a fez sentir uma singela alegria.
__ Obrigado por ter vindo__ Run agradeceu.__ Eu irei no curiango número 02, quem virá comigo?
__ Eu! Eu!__ disse Creusalinda, mal conseguindo se conter de tanta ansiedade e expectativa.
__ Está bem, venha pequena dama Creusalinda, ficará na frente, onde terá a melhor visão__ Run a segurou debaixo dos braços e a colocou sobre o curiango número 02. Para a menina a sensação de montar um pássaro era indescritível, podia-se dizer incrível assim como as outras coisas que vinham lhe acontecendo.
No curiango número 02 montaram: Creusalinda, Run e Ton; no curiango número 01 que foi o primeiro a chegar montaram: Bin, Kon e Son. E sem mais demora, os curiangos começaram a bater as asas e levantaram voo, planando pelo bairro adormecido. O vento zunia nas orelhas de Creusalinda; ela arfava com a altitude, e a paisagem que saltava aos olhos tirava-lhe o fôlego: os sítios, as chácaras iluminadas pelas luzes de segurança, os grandes terrenos das indústrias__ tiveram que passar longe das chaminés com a sua densa fumaça tóxica__, voaram também sobre as casas com os seus telhados vermelho-terra, passaram até pelo telhado da casa de uma amiga da escola, Judite, as duas eram da mesma sala e às vezes, andavam juntas na hora do recreio.
__ Olha a Judite ali!__ gritou Creusalinda, vendo-a dormir.
__ Segure bem, Run, para que ela não caia!__ disse Ton.
__ Vejam!__ exclamou Creusalinda apontando para o lado, em direção a algo de um amarelo nada discreto.__ É o Son e os outros, estão acenando!
__ Então, vamos acenar também__ disse Run. E acenaram perante uma visão cósmica.
Não havia limites no céu e aquilo era extraordinário; não havia obstáculos que parassem a menina órfã. Continuaram a passear e planar pelo céu escuro enfeitado por estrelas cintilantes. O mundo deixava de ser triste. O seu coração tiquetaqueava forte.


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Creusalinda mostrava uma face serena; continuava a dormir tranqüilamente e só abriu os olhos porque Pedrinho a acordou__ os dois costumavam jogar futebol juntos no campinho, ele era um ano mais novo do que Creusalinda.
__ Creusalinda! Creusalinda, acorde!__ chamou Pedrinho, chacoalhando-a. __ Vai perder a hora de ir para a escola!...
Creusalinda acordou de sobressalto. Olhou para os lados, se viu na cama sob o lençol; se perguntou onde os pequeninos estavam.
__ Se não se apressar vai perder a hora__ repetiu Pedrinho.
__ Pedrinho...__ chamou Creusalinda.__ Quando as outras meninas acordaram, eu estava na cama?!__ perguntou meio confusa.__ Elas me viram na cama?
__ Está doida?! É claro que elas viram você dormindo na cama!__ respondeu Pedrinho irônico.__ Você não caiu da beliche e bateu a cabeça, caiu?! A inspetora achou que estava doente. Está doente?
__ Não, não estou, Pedrinho, e já vou me arrumar para ir à escola. Saia daqui e trate de me esperar, senão vai apanhar depois. Espere aí! Volte aqui, Pedrinho.
O menino obedeceu com uma expressão aborrecida.
__ Que foi?
__ O que aconteceu com o seu dente da frente?
__ Este aqui, de baixo? Quebrei a pontinha quando eu caí.
__ Caiu?!
__ Na verdade, eu fui empurrado, sabe como é que é. Agora está mole, a inspetora disse que é melhor esperar o dente cair sozinho.
Creusalinda fez o sinal para que Pedrinho saísse do quarto, e pouco tempo depois, fez-se o caminho para a escola. Os dois não se atrasaram tanto quanto pensaram, mas tiveram que implorar para que abrissem o portão.


Na hora do recreio, Creusalinda e Judite caminhavam juntas no pátio. E a menina órfã não se conteve:
__ Eu vi você dormindo, Judite__ disse ela com os olhos vidrados.__ Eu estava voando, menina, voei por todo o bairro! E conheci o povo do telhado, quero dizer, alguns deles. Eles eram iguais a gente, só que pequenos e eram bonitos...
__ Ah, é?!__ disse Judite, prestando atenção.
__ É. E foi tão legal! Você tinha que ver.
__ Nossa!
__ Eles disseram que eu não podia contar para ninguém, espera aí, mas eu contei para você!__ Creusalinda percebeu um pouco tarde.__... Ah, deixa para lá. Vamos ao banheiro?
__ Vamos!__ naquela inocência da idade, não se sabe se Judite levou aqueles fatos a sério ou não. Talvez um pouquinho.


De volta ao orfanato, começou a raciocinar se não teria inventado aquela aventura para si. Teria perdido o seu juízo? Não obstante, tinha a certeza de ter aproveitado cada instante como se fosse o último. Verdade ou mentira, era a sua maior dúvida no momento.

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E essa dúvida a consumiu por três dias inteiros. A lua começava a crescer no céu; e os membros do povo do telhado voltaram a aparecer para Creusalinda. Ela deu de ombros.
__ Olá, Creusalinda__ disse Bin animado.__ Não se lembra de nós?
__ Não me amole__ disse Creusalinda, entristecida.__ Sei que vocês não passam de uma mentira. Me deixem dormir__ ela se cobriu até os cabelos.
__ Não somos uma mentira, pequena dama Creusalinda, mentira tem perna curta__ disse Son.__ E nós não temos pernas curtas. Como bem pode ver.
__ É verdade__ Ton concordou. Creusalinda não reagiu, e os três pequeninos ficaram imóveis e mudos. Eles viraram as costas à Creusalinda.
__ Não há muito o que fazer aqui, se não há ninguém para falar conosco__ disse Son para os outros.__ Vamos embora.
__ Sim__ disse Ton.__ Já pegamos o que tínhamos que pegar. Vamos voltar para casa.
__ É uma pena__ disse Bin.__ Que Creusalinda não conhecerá a nossa casa... É uma pena que tenha recusado o convite antes mesmo de recebê-lo. Enfim, adeus, Creusalinda.
__ Adeus__ disse Ton.
__ Adeus, pequena dama__ disse Son.


Creusalinda ouvia a tudo; de fato, era uma despedida para todo o sempre, eles não voltariam e jamais os veria novamente. Mentira ou verdade, a menina não sabia, mas sabia que estava perdendo a chance de viver uma grande aventura. Não faria uma desfeita dessa a si própria. Creusalinda tirou o lençol da cabeça num movimento rápido e abrupto.
__ Esperem!__ disse olhando para os lados, verificando se ninguém tinha acordado.__ Esperem, eu quero ir com vocês!__ sussurrou. Ela os viu sentados no canto da cama, ao fundo, cobertos pelo lençol até a cintura, distraídos e relaxados.__ Quero conhecer a casa de vocês onde o povo do telhado mora. Me desculpe, se fui grosseira... Desculpa...
Os três pequeninos se entreolharam com um sorriso meia-lua.
__ Sabia que viria__ disse Bin, afastando o lençol. Ele chegou perto de Creusalinda e lhe entregou o comprimido mágico que foi engolido.


Logo, já pequenina, Creusalinda se aproximou de Son e Ton e os cumprimentou, apertando-lhes as mãos.
__ Queria pedir desculpas de novo, e dizer que nunca estive tão confusa assim...
__ Tudo bem__ disseram os pequeninos.__ Isso sempre acontece mesmo que não se perceba...
__ Onde estão Kon e Run?__ Creusalinda sentiu a falta dos dois.
__ Estão trabalhando__ disse Son.
__ Vamos voltar para casa__ disse Ton. E espiralando desapareceram todos.


Chegaram ao telhado.
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__ Venha, Creusalinda__ disse Bin.__ O nosso povoado é logo ali.


Creusalinda estranhou que não tinha ficado tonta e mal podia acreditar que caminhava sobre o forro de alguma casa da redondeza. Enquanto iam em direção ao povoado, Creusalinda reparou que Ton carregava algo em suas costas, algo branco e bem-amarrado como uma mochila: um dente. Espantou-se tanto que nem se perguntou o que ele faria com aquilo; reconheceu que era o dente de Pedrinho que estava prestes a cair com a pontinha quebrada, se perguntou quando teria caído. Depois perguntou verbalmente a Ton.
__ Bem, a inspetora jogou no telhado hoje de tarde__ respondeu apenas.


Alcançaram o povoado.
Creusalinda deu breves passos pelo local, ninguém a estranhou lá era como se fosse uma deles. Tudo era pitoresco e lindo para a menina: as casas abobadadas que pareciam tendas, as esculturas brancas com um certo rebuscamento, os pequeninos em si__ o povo do telhado.
__ Isso é mágico__ desabafou.
__ Sim, nós somos mágicos__ Son afirmou.__ Seja bem-vinda ao lugar em que vivemos.
Creusalinda imaginou que se estivesse em seu tamanho normal, estaria caminhando entre miniaturas, que de tão perfeitas e rica em detalhes eram fascinantes e principalmente, surreais. A menina viu um grupo de pequeninos em volta de uma fogueira comum; o que a diferenciava das outras era que o seu fogo não queimava, apenas iluminava. Com a sua curiosidade de criança__ que era grande__, Creusalinda foi chegando mais perto da fogueira e cada vez mais perto; ficou de butuca; viu que não havia lenha sob a bela chama; concluiu que não estava perto o suficiente para sentir o seu calor, de mansinho, colocou-se entre o grupo de pequeninos: sim, o fogo que não queimava a aquecia e muito bem. O povo do telhado era surpreendente em todos os sentidos possíveis.


Em um canto, Creusalinda viu Kon trabalhando em algo, aproximou-se:
__ Olá, Kon__ disse a menina.
__ Olá, pequena dama, é um prazer revê-la__ ele disse.
__ Me chame só de Creusalinda__ pediu.
__ Está bem.
__ O que está fazendo?
__ Estou terminando de lixar este porta-trecos.
__ É lindo!
__ Obrigado.
__ Do que é feito? É tão branco...
__ Este porta-trecos foi feito de um dente de um menino de quatro anos.
__ Dente?!__ a menina nunca adivinharia.


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__Sim. Com os dentes de baixo que as pessoas jogam nos telhados de suas casas para dar sorte, nós construímos os objetos de que precisamos. Este banco que eu estou sentado também foi feito de um dente.
__ Aquelas esculturas que eu vi, então...
__ São dentes, isto é, foram.


__ Nossa!__ a menina sorriu, eram obras-primas.
Ao se virar para o lado, avistou um grupo de mulheres pequeninas e elas não lembravam em nada as anãs dos contos de fadas. Eram magras, porém, usavam tantas peças de roupa que pareciam gordinhas; também eram belas como flores, diferenciavam-se as jovens das mais velhas pelo fato das jovens terem o cabelo mais escuro e sorrirem o tempo todo; as mais velhas ficavam com o cabelo castanho claro e com uma atitude mais austera, mas não deixavam de sorrir, claro. Sempre. Todas elas usavam botinhas, iguais aos dos homens pequeninos. As pequeninas do grupo se viraram e sorriram para Creusalinda, acenaram; a menina retribuiu o gesto um pouco tímida.


De repente, Run aparecera e avistara Creusalinda. Acenou. Ela acenou de volta.
__ Venha aqui, Creusalinda, aqui!__ chamou.
__ Já vou__ respondeu. Creusalinda olhou para Kon: ele terminava de lixar o porta-trecos e conversava com Son; em seguida, olhou para Ton: ele examinava o dente de Pedrinho, pensava, continuava a examinar; olhou para Bin: ele descansava próximo à uma casa, seria a dele? Por fim, voltou os olhos para Run: ele fazia sinais com a mão para que se aproximasse.
__ O que foi, Run?__ perguntou.
__ Quero que conheça Din e Don, os anciões do nosso povoado__ Run pegou a mão de Creusalinda e a levou até uma casa espaçosa. Entraram, pois a porta estava aberta.
__ Que bonita!__ disse a menina.
__ Agradeço o elogio, pequena dama.
__ Quem é o senhor?__ Creusalinda perguntou.
__ Eu sou Din e você?
__ O meu nome é Creusalinda...
__ Din__ chamou Run.__ Ela é do asilo para órfãos.
O ancião balançou a cabeça positivamente com um jeito bonachão.
__ Seja bem-vinda, Creusalinda, sente-se, por favor.
Creusalinda sentou-se em uma confortável cadeira branca provavelmente feita também de um dente ou mais; reparou que a mesa, as outras cadeiras e bancos e vários outros objetos eram também brancos__ brancos como dentes de leite. A menina imaginou que com tantos dentes assim era até possível fazer uma bela dentadura. Repentinamente, um outro ancião atravessou a porta.
__ Parece que temos uma visita...__ ele disse.__ E isso é ótimo.
__ Sim__ respondeu Din.__ Esta é Creusalinda do asilo para órfãos e acabamos de nos sentar__ Din se virou para Creusalinda.__ Aquele é Don, o meu irmão.
__ Muito prazer, senhor Don. Devo dizer que os dois são realmente parecidos...
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__ É porque somos irmãos, menininha, irmãos gêmeos__ disse Don.
Creusalinda reparou que os dois irmãos além de serem idênticos vestiam-se de uma maneira muito parecida, e com as mesmas cores. Perguntou:
__ São iguaisinhos, são barbados e os dois usam bengalas. Como as pessoas daqui conseguem saber quem é Din e quem é Don?
Os anciões gêmeos se entreolharam.
__ As pessoas conseguem nos diferenciar, por causa disto aqui__ disse Don, sentando-se. Ele levantou o seu casaco que ia até o chão e mostrou a perna direita__ que
não existia. No lugar havia um cone branco invertido.__ Foi um terrível acidente, menininha, que não vem ao caso agora__ contou.
Run cutucou Creusalinda discretamente:
__ Aquilo que eles usam, não são bengalas, são cajados__ disse ele em voz baixa.
__ Cajados?! Não são o mesmo que bengalas?__ Creusalinda refletiu.


Uma pequenina trouxe bebida para todos, o seu nome era Fini.
__ Obrigado, Fini__ disse o senhor Din.
__ Obrigada__ Creusalinda agradeceu; aprendera na escola que sempre deve-se agradecer uma gentileza. E com os copos nas mãos todos beberam com muito gosto.
__ Espero que esteja gostando de visitar o nosso povoado__ disse o senhor Don.
__ Estou sim__ disse Creusalinda animada.__ É lindo e tão diferente de tudo o que eu já vi...
__ Podemos imaginar__ disse o senhor Din.
__ E vocês são mágicos também, aparecem de repente e desaparecem num piscar de olhos! E fazem coisas tão lindas com os dentes também...
__ Sabia que somos invisíveis para a maioria das pessoas?__ Run comentou.__ Apenas as crianças podem nos ver.
__ É mesmo?!__ Creusalinda não sabia.
__ É isso mesmo__ disse o senhor Don.__ Os membros do povo do telhado circulam pelos cômodos das casas, pelos quartos dos pais e irmãos mais velhos, eles nunca nos notaram; quando passamos pelos quartos das crianças a maioria está dormindo, mas os acordados acham que estão sonhando e estes sorriem para nós, e eu lhes digo: é lindo de se ver aqueles dentinhos.
Creusalinda admirou-se. Estava em um outro mundo, mesmo.
__ Não gosto dos dentes com restaurações__ disse o senhor Din.__ Têm um péssimo acabamento.
__ É verdade__ Run concordou.
__ Existem outros como posso dizer... povos do telhado?__ a menina estava curiosa.
__ Oh, sim__ disse o senhor Din.__ Existem povoados nas cidades grandes e cidades pequenas. Se é isso o que pergunta.
__ E de certa forma somos todos parentes__ disse o senhor Don.__ Temos parentes em outros continentes também, e amigos, você ia adorar conhecer o Siro, mãos de cedro...
__ É uma pena que o povo do telhado esteja diminuindo...__ disse o senhor Din. Run e os anciões gêmeos ficaram entristecidos.

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Correram-se alguns minutos.


Percebeu-se durante aqueles breves minutos que um clima sombrio os envolvia. Creusalinda não tinha a menor ideia do que aconteceu ou do que estava acontecendo com o povo do telhado. Seres mágicos sentiam medo? Ficavam assustados ou perdiam as esperanças? O que o povo do telhado temia?
__ Posso saber o que...
__ Menininha__ disse o senhor Don.__ Deve estar sentindo frio com roupas tão finas. Fini!__ chamou.__ Diga a Soni que traga roupas quentes para a nossa convidada, por favor.
__ Sim, está bem__ disse Fini retirando-se. No outro instante, apareceu em seu lugar uma outra pequenina, o seu nome era Soni; e trazia nos braços um singelo vestido para Creusalinda que foi posto sobre a sua fina roupa de dormir.
__ Soni__ chamou o senhor Don.__ Peça a Fini que traga algo para Creusalinda comer, por favor.
__ Sim, agora mesmo__ disse Soni saindo às pressas.
Fini surgiu logo em seguida, trazendo uma grande taça de pudim de leite.
__ Obrigada__ disse a menina. Creusalinda não tinha sentido a fome até que colocou a primeira colherada de pudim de leite na boca. Estava delicioso, do mesmo modo que aquela aventura. Acabou comendo todo o pudim de leite; nunca tinha comido tanto pudim assim, até ficar satisfeita. Adorou.


__ Gostaria de me acompanhar em um breve passeio, Creusalinda?__ o senhor Din convidou.
__ Eu comi muito__ disse Creusalinda.__ É melhor descansar primeiro senão posso passar mal.
__ Tem razão pelo tanto que comeu! Mas não se preocupe, ao meu lado o seu estômago não pesará.
__ Está bem, então__ Creusalinda aceitou, duvidando.
O senhor Din e Creusalinda puseram-se a caminhar pelo povoado. Caminharam lentamente em direção à borda do forro; de lá para o telhado. Pararam. A menina não resistiu e se debruçou sobre a margem, olhou para baixo sem medo: como era alto o lugar em que estavam e como uma pequenina, a altura parecia muito maior.
__ Debrucei-me muitas vezes sobre essa margem também__ disse o senhor Din.
__ O senhor não sentiu medo?__ perguntou Creusalinda.
__ Oh, não. Não__ respondeu o ancião achando graça daquela pergunta.
__ O senhor é muito corajoso!
__ Muito obrigado. Você já viu o mar, Creusalinda?
__ Claro que não!__ a menina se levantou.__ Como poderia conhecer o mar se o único lugar que vou é a escola?
__ Está certa__ disse o ancião.__ Venha, vamos subir naquela antena, dê-me a sua mão__ e rápidos como um sopro os dois apareceram sobre a tal antena. A imagem da televisão da casa abaixo começou a tremer e a piscar de repente.
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__ Olhe para a frente, Creusalinda__ o senhor Din apontou com o braço. A menina obedeceu; olhou para as pequenas luzes que iam até o horizonte. Nunca tinha visto tantas.
__ Este é o nosso mar__ o senhor Din revelou. E era realmente o mar, feito de luzes das cidades intermináveis: pequenas luzes de ouro e prata. Era a primeira vez que Creusalinda reparava no mar de luzes.
__ É tão bonito__ elogiou sem piscar. Ela já imaginava como seria o mar de água salgada.
__ Ainda bem que gostou__ o senhor Din sorriu com o seu jeito bonachão.__ É a segunda vez que eu a vejo, Creusalinda, sabia?!
__ Quem? Eu?!__ a menina estava distraída com o mar de luzes.__ Não me lembro de ter visto o senhor antes, senhor Din.
__ E como poderia?!__ ele riu; e não disse que a fizera dormir em seu primeiro encontro com o povo do telhado. Creusalinda nada entendeu, no entanto, não se importou.__ Vamos descer daqui__ disse o senhor Din.__ Chega de mar.


Novamente à beira do telhado, os dois ficaram um instante em silêncio; o senhor Din estava pensativo.
__ Creusalinda__ chamou o ancião.__ Quer saber o que se passa com o povo do telhado? Por que infelizmente nós estamos diminuindo?
__ Quero!__ respondeu a menina.__ Se não for errado saber...
__ Não, não é errado__ o ancião colocou a mão sobre a cabeça de Creusalinda.__ Não se preocupe.
__ Mas, o senhor Don não gostou quando eu perguntei, aliás, nem deu para perguntar direito...
__ Porque é um assunto que o incomoda, Creusalinda. Vou lhe contar uma história que aconteceu nos tempos idos.
__ Triste ou alegre?__ Creusalinda interrompeu.
__ Pode ser triste para algumas pessoas, entretanto, não é nem um pouco alegre. Sente-se, por favor:


Em uma época distante até do próprio passado, uma singela semente de árvore trazida pelo vento germinou e cresceu. Tornou-se alta, bela e rugosa como muitas outras. Aquela árvore tinha galhos seguros e grossos como braços, e alguns pequeninos decidiram morar ali em sua abundância de galhos acolhedores__ hoje esses pequeninos moram em telhados bem-construídos__; tudo corria bem, a árvore não se importava de abrigar os pequeninos assim como os passarinhos e os seus ninhos, agradecidos, os pequeninos a adoravam e a protegiam dos perigos, então, passou-se muito tempo.
Foi em um dia quente e ensolarado que tudo aconteceu.
Um pequenino decidiu tirar as suas botas douradas__ sabia que não deveria, mas mesmo assim o fez__ achava que não teria problemas. Tirou e as colocou em um canto do grosso galho. Dormiu, e sem querer, deixou que as botas caíssem ao pé da árvore rugosa__ nessa época, a maioria dos pequeninos já tinham se mudado para os telhados das casas das pessoas, e não possuíam mais as botas douradas, pois tinham um poder desnecessário.

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__ E o que foi que aconteceu?!__ Creusalinda perguntou entusiasmada.__ Oh, desculpe!__ disse de repente.__ Pode continuar.


As botas ficaram ali caídas e abandonadas. A árvore rugosa inapta de qualquer maldade em sua simplicidade, movida apenas por uma curiosidade, calçou as botas douradas. Os passarinhos fugiram assustados, outros pararam de cantar, os pequeninos ficaram atônitos, pois as botas douradas deram à árvore rugosa a imagem de um homem. Foi a primeira vez que aqueles pequeninos viram uma árvore que conseguia andar. E andando, descobriu-se depois, chegou até a cidade que crescia.
O pior estava por vir; com o passar dos dias, o homem no qual a árvore se transformara sentiu fome, uma grande fome que o fez procurar por comida. Comeu comida de gente, mas não funcionou, a fome continuava; experimentou outros tipos de comida: de cachorro, de gato, de passarinho, até capim e lixo, em vão; a fome teimava em continuar.
Era à noite que ele sentia a fome aumentar, que o fazia apertar a barriga com força. Não gostava de sentir fome.
Caído em um beco, o homem que era árvore avistou um pequenino da altura de um bolo recheado; distraído, o pequenino foi agarrado com uma certa facilidade, pois sabia que não podia ser visto por adultos; desconhecia do fato que aquele não era um adulto nem uma pessoa e sim, uma árvore rugosa.


O senhor Din fez uma pausa, depois prosseguiu.


O pequenino foi comido, engolido inteiro pela árvore que sentiu o seu estômago estufar. Finalmente tinha ficado satisfeito.
E a partir daquele dia tem nos procurado e caçado... os pequeninos da altura de um bolo recheado.


__ Isso é horrível, senhor Din!__ esbravejou Creusalinda.
__ Sim, é__ concordou.__ Acho que para ele, devemos ter gosto de chocolate amargo__ o ancião riu.
__ Não gosto de chocolate amargo...__ os pequeninos estavam sempre alegres e sorridentes, no entanto, viviam em uma época de medo. E o maior medo do povo do telhado, muitos não acreditariam, era uma árvore, que ficou conhecida como a Árvore que anda.


O homem que nascera árvore tinha os olhos sombrios terrivelmente diferentes um do outro, seu andar e seus movimentos eram meio quebrados__ talvez porque ele nunca tenha se acostumado a andar__, era alto, suspeito e os lábios meio tortos. Vestia-se com
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farrapos, mas nos pés, nada mais estranho, calçava um par de botas douradas e cintilantes que pareciam não se gastar. A sua sorte era que as pessoas da cidade não reparavam em alguém que se confundia com um mendigo; de vez em quando, era acusado de ter roubado aquelas botas douradas que pareciam caras, e o xingavam sem dó; forçado, fugia amedrontado e confuso, escondia-se. Não entendia porque aquelas pessoas o maltratavam, que mal lhes tinha feito? Ele vivia jogado na floresta de concreto e pedras__ seu ar poluído
o sufocava. Quando a angústia__ um sentimento humano__ se mostrava presente, corria para o parque ou alguma praça, o que estivesse mais próximo, e se enfiava entre as árvores, era o lugar onde sentia-se em casa, onde não se sentia só e era bem-vindo.
Contudo, era obrigado a voltar para as ruas barulhentas e becos quando a fome o apertava.
__ Tanta fome...__ a Árvore que anda murmurou, virando os olhos para cima. Sempre caminhava com os olhos para o alto, onde sabia que encontraria algo para comer, o que mataria a sua fome por dias.


O senhor Din cruzou os braços e permaneceu em silêncio, o olhar distante e perdido; Creusalinda não conseguia decifrar aquela expressão enigmática: sentiu apenas que o ancião tinha ficado tocado com todas aquelas lembranças; ela também.
__ Vamos voltar para o povoado, Creusalinda__ disse o senhor Din.__ Você me parece um tanto cansada__ a menina não negou.
Fizeram o caminho de volta.
Voltaram, e ao atravessarem a porta da casa do senhor Din, encontraram o senhor Don, terminando de beber o seu leite quente; ele moveu os olhos para Creusalinda, o seu olhar era sereno.
__ Espero que tenha gostado do passeio, menininha__ disse o senhor Don.
__ Sim, muito. E o meu estômago não pesou como o senhor Din disse. Nossa!
__ Isso é fascinante...
__ Creusalinda__ chamou o senhor Din.__ Deve descansar um pouco para repor as energias. Venha, vou-lhe mostrar o quarto. Soni, traga cobertores, por favor.
__ Sim, claro__ disse Soni.
E Creusalinda foi levada para um quarto que não era grande nem pequeno, aconchegante e ideal para o seu tamanho. Deitou-se em uma cama branca como marfim, sobre lençóis coloridos como a Primavera. Creusalinda dormiu ligeiro. Pareceu que não pregava os olhos há dias.


A menina descansou brevemente e não sonhou. Saiu da cama e da casa dos anciões gêmeos. Encontrou um jovem pequenino ali perto, agitado, investigando.
__ O que está procurando?__ perguntou.
__ Nada__ o jovem pequenino respondeu bem-humorado.
__ Se é nada, então por que procura?
__ Se eu continuar a procurar nada, uma hora ei de encontrar alguma coisa que me interessará. Existe nada realmente.
Creusalinda pôs-se a pensar: sim, aquilo fazia sentido.

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Um dos anciões gêmeos se aproximou:
__ Descansou bem, Creusalinda?__ perguntou.
__ Muito bem, obrigada, senhor Din.
O ancião achou graça; em seguida, mostrou a sua perna direita.
__ Senhor Don!__ exclamou ela.__ Desculpe, não sabia que era o senhor!
__ Tudo bem, menininha.
__ Onde está o senhor Din?
__ Acho que por aí, visitando outros telhados e forros.
__ Ah... Posso fazer uma pergunta, senhor Don?
__ Sim?!
__ Será que o Saci-pererê existe? E o Curupira? E a Mula-sem-cabeça não tem cabeça mesmo?
__ São três perguntas, Creusalinda, mas vou responder mesmo assim, pois a resposta é a mesma: sim. No entanto, não vou entrar em detalhes, já que se trata de outras histórias.
__ Entendi, senhor Don__ o ancião suspirou.__ O senhor está aborrecido comigo?__ Creusalinda ficou receosa.
__ Não, não estou aborrecido e sim, preocupado.
__ Preocupado?!
__ Sim, com os súbitos desaparecimentos que estão ocorrendo neste povoado. Os desaparecidos são: Fon, Nini, Jan, Lin, Poni e Von, o último a desaparecer. Quatro dias sem notícias de Von...
__ O senhor suspeita de alguma coisa?
__ Temo que tenha sido... a Árvore que anda.
__... Não tem outro suspeito?
__ Definitivamente, não, menininha. Mas, não se preocupe, ainda é muito jovem para isso.
__ O senhor Din me contou a história da Árvore que anda.
__ Eu sabia que ele ia contar. Veja! Estão acenando para você, Creusalinda.
__ São os meus amigos Son e Bin!__ Creusalinda acenou de volta.
__ Parece que estão chamando. Vá até lá.
__ Está bem!__ Creusalinda deu alguns passos e depois, parou.__ E o senhor?
__ Vou ficar aqui com a minha preocupação, menininha, agora vá logo, antes que aqueles dois se cansem de esperar.
Creusalinda correu até os dois, sob o olhar sereno do senhor Don.
__ Aqui estou!__ disse Creusalinda.__ O que querem comigo?
__ Vamos buscar mais dentes__ disse Son.__ Quer vir conosco?
__ Vai ser divertido!__ disse Bin.
__ Vamos?!__ Son perguntou. Creusalinda sorriu com os seus dentes branquíssimos.
__ Claro que vamos!__ decidiu.


Os três foram até o telhado e pegaram uma carona com um curiango. Voaram permeando as árvores e casas.

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__ Todos os pequeninos usam os mesmos pássaros para voar?__ Creusalinda quis saber.
__ Ah, não__ respondeu Bin.__ Alguns pequeninos usam pombos, outros, pardais e até corujas.
__ Os pequeninos da cidade não precisam de pássaros__ disse Son.__ As casas são tão próximas uma da outra que não há necessidade.
Ainda era noite; o mundo parecia ter parado para Creusalinda e ela estranhou.
__ Quando vai amanhecer?__ a menina perguntou.
__ Acabou de anoitecer, então, vai demorar__ disse Son.
__ Acabou de anoitecer?! Como se nem vi o sol nascer?!
__ O sol subiu e desceu enquanto você dormia__ disse Bin. A menina ficou confusa por um tempo, mas não se prendeu, deixou esse assunto de lado. Afinal, como era bom voar! E voaram até as proximidades da cidade; logo, avançaram mais um pouco. Atravessaram uma rua de paralelepípedos e entre tantas casas, uma ao lado da outra, a escolhida foi aquela com o maior jardim.
__ É melhor para um pássaro__ disse Son.
__ O resto do caminho faremos a pé__ disse Bin.
Creusalinda não conseguia se conter de tanta alegria, não parava um instante: olhava para os lados, para baixo, sorria e pulava de satisfação.
__ Venha, Creusalinda__ chamou Son e Bin. Os três começaram a caminhar pelos telhados, sobrepondo sonho e realidade à procura de dentes.
Passaram-se alguns instantes.


Depararam-se com um gato, enorme.
__ Que lindo!__ a menina esbravejou.
__ Estamos apenas de passagem__ disse Son para o gato.__ Já estamos saindo do seu belo telhado. Até.
Bin imitou um gato manso, e Creusalinda perguntou:
__ Posso trocar os meus olhos pelos de um gato?__ ela achava que poderia enxergar no escuro através dos olhos brilhantes do gato tigrado.
__ Não, não pode__ disse Son.__ Seria uma maldade com o gato; lembre-se que deve respeitar os animais, já que eles não têm culpa da maldade dos homens.
Prosseguiram.
__ Olhem! Um dente!__ Bin exclamou.__ Oh! Está cariado, mas não faz mal, é só lixar bem...
__ Posso olhar?__ a menina pediu.
__ Claro, tome aqui__ Bin concordou. Creusalinda teve que segurar o dente com as duas mãos, achou estranhíssimo.
__ Olhe, Bin! Um cachorro pitoco! Adoro cachorros__ disse Creusalinda.
__ Quer vê-lo de perto?__ Bin perguntou.
__ Claro que quero!
__ Então, me dê a sua mão...
__ Tratem de tomar cuidado__ disse Son com seriedade.__ Estamos no local onde a Árvore que anda perambula.

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__ Está bem__ disse Bin espiralando com Creusalinda. Sumiram.


Surgiram próximos ao cachorro pedrês e pitoco.
__ Que bonitinho, é manso__ disse Creusalinda.__ Será que já tem dono?__ o cachorro se sentou em frente aos dois, atencioso, parecia querer participar da conversa.
__ Parece que não__ disse Bin.__ Está magro e sem coleira...
O cachorro pôs-se de pé; de repente, ficara agressivo e saíra correndo em disparada. Ninguém entendeu o que tinha acontecido; até que olharam sobre os seus ombros. Qual foi a surpresa ao verem que havia alguém ali, à espreita.
__ Acho que ele está nos vendo, Bin__ disse Creusalinda, reparando no olhar cobiçoso daquele homem.
__ Vamos fugir como aquele cachorro pitoco, Creusalinda__ sussurrou Bin.
__ Mas, por quê?__ Creusalinda não entendeu.
__ Aquele homem não é um homem comum, é a Árvore que anda__ disse com a voz tremida.__ Olhe bem para ele.
__ Aquele é a Árvore que anda...__ Creusalinda repetiu.


À primeira vista, a Árvore que anda parecia amistosa e até medrosa em sua maneira comedida, não tinha nada de cruel. Naquele ângulo, não passava de um mendigo faminto.
A menina e o mendigo encararam-se. Visivelmente, aquele homem era de dar dó. Era cheio de tristeza. Creusalinda ficou plantada ali, enquanto Bin sentia um frio na espinha. Continuavam a se encarar. Sinceramente, Creusalinda não o achou tão mau quanto a história descrevia; duvidou se ele era mau de verdade. A menina não tinha experiência suficiente para julgar se alguém nascia mau ou se tornava, não que fizesse diferença naquele caso. Ela sabia que existia vários tipos de maldade: pais que abandonam os filhos é uma maldade das grandes, sabia muito bem; mas a necessidade faria o mal? A sua intuição lhe dizia que a Árvore que anda era inocente e que a sua vilania era sentir fome.
Subitamente, a Árvore que anda sorriu de leve para Creusalinda, decerto sabia que não era uma pequenina. Creusalinda sentiu muita pena. Talvez a árvore-homem não soubesse o que era ser mau, talvez não tivesse sentimentos; alguém já conversou com uma árvore antes? Era certo que ninguém compreenderia o "outro lado".


__... Creusalinda__ chamou Bin, puxando-a pela roupa.__É hora de fugir... antes que ele tente nos pegar...
__ É só desaparecer, Bin, como das outras vezes__ disse Creusalinda confiante, segurando-lhe a mão.
__ Os pequeninos não conseguem desaparecer quando estão intimidados ou com medo__ Bin esclareceu.__ E eu estou com muito medo.
__ Essa não__ Creusalinda murmurou e ambos engoliram a seco.


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A Árvore que anda sorriu de súbito de um jeito matreiro; Bin e Creusalinda afastaram-se em dois, três passos. Sabiam que algo ia acontecer logo, e esperavam com ansiedade e medo a reação que teriam.


Nesse tempo, um pesado caminhão de carga passou próximo à rua em que estavam, o que fez o chão estremecer e as janelas vibrar. O mendigo tapou os ouvidos com as mãos, não suportava o barulho da potência do motor do caminhão.
__ Ah, que saudade da época em que não tinha orelhas__ murmurou para si, e como sentia falta do farfalhar de suas folhas verdes.


Bin e Creusalinda aproveitaram para fugir desatinadamente; devido ao tamanho, não conseguiam tomar muita distância da Árvore que anda, que conseguia correr bem rápido. Continuaram a correr pelas ruas vazias da cidade, algumas quase vazias__ os transeuntes estranhavam aquele mendigo correndo de um lado para o outro, contudo, jamais se aproximariam dele com medo de sua loucura. Bin continuava como se nada sentisse, mas pobre Creusalinda sendo apenas uma menina, sofria e não aguentava mais correr, era pouca a energia que sobrava. Continuaram cruzando as esquinas e travessas.
__ Por aqui, Creusalinda!__ Bin a puxava pela mão.__ Vamos dobrar esta esquina e despistá-lo... Oh, não!__ depararam-se com uma rua sem saída. Bin poderia escapar escalando o muro, para ele não havia coisa mais fácil, virou-se para Creusalinda esgotada; nem teria chance de tentar. O pequenino desistiu da ideia, abandonar os amigos não era um feitio do povo do telhado.
__ Fuja, Bin__ disse Creusalinda arquejando.__ Vá embora, sei que pode escapar...
__ A Árvore que anda pode maltratá-la, não posso permitir isso. Nunca!
__ Ele pode me maltratar, mas não vou parar em sua barriga, ele sabe que não sou uma pequenina de verdade.
__ Mesmo assim, não vou deixá-la aqui sozinha.
__ Não quero que morra, Bin! Vá embora...
__ Espere, nós ainda temos uma chance. Posso chamar o curiango; o lado ruim é que a Árvore que anda vai nos encontrar. É muito arriscado...
__ Já disse que é para você... Bin! Atrás de você!
O pequenino olhou de esguelha.
__ Você não vai nos pegar__ disse Bin em um tom sério. E soltou o seu grito cantado, belamente como Run o fizera uma vez.__ Espero que o curiango não demore muito...
__ Oh, Bin, ele está vindo__ disse Creusalinda acuada.__ Fuja enquanto há tempo.
__ Não!
Bin e Creusalinda ficaram imóveis sob o olhar faminto da Árvore que anda. Não faltava muito para o fim.


__ Creusalinda__ chamou Bin.__ Aquele ali não é o...
__ O cachorro pitoco! O que ele está fazendo ali?

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__ Eu não sei__ Bin olhou para cima intrigado. Os olhos brilharam quando avistou o seu amigo Son sobre o muro.
__ Ataque, cachorro pitoco!__ Son ordenou.__ Agora!
O cachorro pitoco rosnou e avançou: mordeu a perna do mendigo com força e se agitou bravo como nunca, e tanto se agitou que derrubou a sua presa que tremia de medo. O cachorro pitoco soltou a perna do mendigo que não sangrava e deixou-o encolhido em um
canto com um olhar assustado, e vitorioso, se aproximou de Bin e Creusalinda. Son deu saltos-mortais e caiu em frente aos dois.
__ Vocês estão bem? Eu disse para tomarem cuidado, ainda bem que ouvi o seu chamado, Bin...
__ E o curiango?__ Bin perguntou.
__ O dono da casa o tocou para longe com uma vassoura, temia que o pássaro riscasse o seu carro. Vamos subir no cachorro pitoco e fugir para longe daqui... Cuidado! A Árvore que anda está voltando!
O cachorro pitoco começou a rosnar, mas o mendigo não recuou e repetia com um certo desespero:
__ Fome, estou com tanta fome, tanta fome...


Creusalinda e Bin montaram às pressas no cachorro pitoco, e Son após olhar para os dois, disse:
__ Fujam daqui e voltem para o povoado. Eu vou depois.
__ Depois?!__ Creusalinda e Bin repetiram atônitos.
__ Sim, depois. Se nós três passarmos perto da Árvore que anda montados no cachorro pitoco, é provável que ele consiga agarrar um de nós; não quero que seja um de vocês, vou ficar para trás, para distrai-lo.
__ Não!__ gritou a menina.__ Os amigos não se abandonam.
__ É verdade, Son__ Bin concordou.__ Deve haver outros...
__ Não, não há__ alguns segundos inócuos de silêncio se passaram.__ O que estão esperando?! Vão logo! Agora... por favor.
__ Son...__ murmuraram Creusalinda e Bin ao mesmo tempo.


__ Pequeninos saborosos...__ disse a Árvore que anda chegando cada vez mais perto daquilo que almejava.
__ Cuidado! Corra, cachorro pitoco, para longe daqui__ Son bradou decidido.__ Corra e cumpra a minha última ordem__ Son deu outros saltos-mortais e parou sobre a cabeça do mendigo, em seguida, escorregou pelos longos cabelos ensebados e se pendurou neles.
O cachorro pitoco disparou num ímpeto no mesmo instante, esquivou-se das longas pernas do mendigo que se fecharam e correu pela calçada desviando-se dos sacos de lixo, dos casais que andavam de mãos dadas e de um bêbado. Fora para longe. Tinha cumprido a sua missão.

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__ Obrigado, cachorro pitoco__ disse Bin.__ Você será recompensado com uma família que o amará muito, mesmo depois de velho, doente e talvez sarnento. Uma família que não repetirá o erro da sua família anterior. Vá, e ao nascer do sol, encontrará eu prometo, aqueles que lhe darão comida, respeito e conforto.
O cachorro pitoco obedeceu e sumiu pela rua escura de postes com lâmpadas quebradas.
__ Estou preocupada com Son__ disse Creusalinda aflita.
__ Eu também__ disse Bin, enchendo os seus pulmões de ar e soltando um lindo grito cantado; notou-se uma certa urgência dessa vez em seu chamado.
__ Lá está o curiango!__ avisou a menina pouco antes do pássaro aterrissar.
__ Agradeço que não tenha demorado, meu amigo. Vamos, Creusalinda!__ ambos montaram no pássaro sem demora.__ Voe, agora! Vamos salvar o nosso amigo Son!__ berrou o pequenino.
O curiango abriu as suas asas e voou em direção à rua sem saída. Chegando lá pousaram sobre o muro que Son estivera. Não desceram do pássaro.
__ Essa não!__ esbravejou Bin inquieto.__ Son!
Creusalinda ficara sem palavras; em frente aos seus olhos, Son se debatia e tentava escapar das grandes mãos do mendigo. E antes que Bin e Creusalinda descessem das costas do pássaro, Son de amarelo como o sol caiu dentro da boca cheia de saliva do mendigo que era a Árvore que anda, e engolido como se fosse uma bala lisa de hortelã. A menina horrorizada abafou um grito e o jovem pequenino, não acreditava no que tinha acabado de presenciar; a menina se agarrou em suas costas.
Bin baixou os olhos e lamentou em silêncio.
__ Vamos voltar para o povoado__ disse.__ Antes que a Árvore que anda nos veja.
Enquanto voavam e se distanciavam, Creusalinda se voltou para baixo e seus olhos cruzaram com os olhos do mendigo, olhos tristes de solidão.


Não demoraram a chegar até o povoado. Bin e Creusalinda foram seguindo por entre as casas e pessoas ocupadas; depararam-se com Run e Ton no caminho. Ficaram parados e estáticos.
__ Como foi o passeio? E os dentes?__ perguntou Run, vendo as mãos vazias de Creusalinda e Bin. Nenhum dos dois respondeu.
__ Onde está Son?__ Ton estranhou.__ Ele ficou para trás?! Vocês foram todos juntos, não foram?
Os lábios de Creusalinda se mexeram, mas nenhum som saiu. O senhor Din apareceu repentinamente e quis saber o que estava acontecendo ali. Bin sofria e demorou a falar.
__ Senhor Din...__ murmurou.
Naquela circunstância, Creusalinda poderia se fazer de forte, porém, não foi o que fez: tombou de joelhos e depois, caiu de quatro. O ancião a consolou preocupado ajoelhando-se ao seu lado. Voltou os olhos para Bin.
__ Conte-me o que aconteceu, Bin__ pediu apreensivo.
E o jovem pequenino o fez tristemente.

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__ As partidas repentinas nos enfraquecem e fazem doer os nossos corações__ disse o senhor Din.__ Sentiremos a falta de Son e não será menos daqueles que já partiram.
Todos ficaram sentidos com aquela notícia fúnebre. Tratava-se de um momento lancinante e em segundos, o povoado notou que a Árvore que anda fizera outra vítima. O pesar fora geral.
O senhor Don se aproximou cabisbaixo.
__ Então, foi Son desta vez...__ lastimou.__ Din, avisaram-me de seu recado. O que foi?
__ Don, sei que muitos estavam preocupados com os desaparecidos e fui atrás de informações; infelizmente, os sinais foram vistos. Eles não voltarão mais.
__ Era algo que eu já suspeitava, Din...
A menina não tinha entendido, que sinais eram esses de que falavam? Acabou perguntando.
E o senhor Don lhe respondeu:
__ Quando alguém do povo morre torna-se uma borboleta branca espontaneamente. Nem todas as borboletas saem dos casulos; é por isso que as pessoas não devem caçar ou matar as borboletas. É assim que descobrimos aqueles que sucumbiram.
__ A culpa é toda da Árvore que anda...__ disse Creusalinda com rancor.
__ O mal foi ter se tornado homem e se corrompido__ disse o senhor Din.
__ Venham__ chamou o senhor Don.__ Vamos fazer uma homenagem aos que partiram.
__ Peguem os seus melhores instrumentos__ disse o senhor Din.__ E vamos tocar com dedos de mel. Os nossos amigos merecem.
__ E cantar com lábios adocicados__ completou Run.
O povoado se juntou à volta de uma grande fogueira que não necessitava de lenha; banquinhos também foram carregados. Creusalinda reparou que os instrumentos musicais eram também brancos, como as esculturas e móveis.
Os pequeninos posicionaram-se com os seus atabaques, sininhos, bandolins, flautas e pífanos. Em um canto da grande roda um pequeno grupo de jovens tomou posição__ Creusalinda acenou de leve para Run que estava entre eles__; e o resto dos pequeninos organizaram-se para a homenagem.
Os instrumentos começaram a ser tocados como o senhor Din dissera, com dedos de mel. Em seguida, o pequeno grupo de jovens começou a cantar, ora a voz das pequeninas se sobrepunham, ora era a voz dos pequeninos: o timbre de suas vozes era melodiosamente melancólico. Creusalinda sentiu vontade de chorar; ficou comovida.


A menina não conseguia mais acatar aquela situação, saiu discretamente de perto da grande fogueira antes que começasse a bufar. Saiu caminhando ouvindo a voz alada de seus amigos ao fundo; se perguntava como alguém poderia fazer mal a um povo tão terno e gentil. Não entendia. E os seus problemas ficaram pequenos.
Creusalinda estava inconsolável, parecia uma criancinha cujo doce lhe fora roubado. Um dos anciões gêmeos apareceu para fazer companhia.
__ Oh, senhor Don...__ murmurou ela.
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__ Não sou o meu irmão__ o ancião sorriu sutilmente.__ Ele está muito ocupado no momento com o seu bandolim.
__ Desculpe, senhor Din__ Creusalinda o fitou por um momento, viu que o ancião também estava comovido.
__ É uma bela música, não é?!__ disse ele, e Creusalinda concordou. Era triste para o ancião ver que o seu povo diminuía. Sendo devorados um a um, de fato, logo deixariam de existir. Mas isso não abalava os pequeninos que continuavam a recolher os dentes dos
telhados, a visitar as crianças e principalmente, a sorrir. Seria isso o que os têm mantido vivos? Creusalinda sabia que a morte dos pequeninos era parar no estômago da Árvore que anda.
__ Queria que ele morresse!__ gritou a menina.
__ Não diga isso, Creusalinda__ pediu o ancião.__ A existência é mais do que isso.
A raiva da menina contrastava com a bonomia daquele povo.


__ Veja, Creusalinda!__ chamou o senhor Din.__ O sinal. Ele veio para a homenagem__ Creusalinda avistou uma borboleta branca que desaparecia e reaparecia seguidamente em questão de segundos, ela deduziu que aquela borboleta era o seu amigo Son e se emocionou. __ Veja, Creusalinda! Os outros também vieram; sabia que viriam__ o ancião sorriu como se encontrasse velhos amigos; e Creusalinda presenciou um show de borboletas que revoavam à volta da grande roda de pequeninos apreciando a música, e, desaparecendo e reaparecendo, centenas de vezes. A menina sentiu o coração apertado. Chorou.
__ Não há um jeito de deter a árvore-homem?__ perguntou.
__ Sim, há um jeito__ respondeu o senhor Din.__ Basta tirar-lhe as botas douradas.
__ Só isso?__ a menina estranhou.
__ Sim. Sei que parece fácil, mas não é. Já foi tentado uma vez, e posso dizer que a tentativa foi dramática.
__ Ele morreu?!
__ Não, felizmente, o pequenino sobreviveu. Lembra-se da história de como a árvore se tornou homem? Lembra-se do pequenino que cochilou e derrubou as suas botas?
Creusalinda balançou a cabeça positivamente.
__... É o meu irmão.
__ O senhor Don?! Não acredito nisso!... O senhor Don?!
__ Ele mesmo. E foi nesta primeira e última tentativa que Don perdeu a sua perna direita. Acredito que para o meu irmão, falhar foi a pior sequela; naquela época, ele se repreendeu muito, chegou ao ponto de sentir uma vertigem. Alguns dias atrás, Don me revelou que o seu maior desejo agora era dar um ponto final em tudo.
Creusalinda compreendeu porque o senhor Don sempre estava preocupado com os outros pequeninos.
__ Temos que acabar com a Árvore que anda, senhor Din.
__ Acabar, não, Creusalinda, apenas parar.
__ Está bem. O único jeito é tirar as botas da árvore-homem. Certo, podemos tirar à força, barganhar com não sei o que, ou enganá-lo. Tem alguma outra ideia, senhor Din?

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__... Não. As suas ideias são boas, interessantes e um tanto difíceis de executar, menina: tirar à força, impossível; barganhar ou enganar, como se nem sequer nos aproximamos? Infelizmente, ainda não conhecemos um ponto fraco.
A menina calou-se pensativa; tinha que encontrar uma maneira de ajudar o povo do telhado, uma saída para tanto sofrimento. Nunca tinha precisado pensar tanto em toda a sua vida. Sentou-se no chão com o decorrer do tempo, cansada, apoiou o rosto sobre as mãos. Suspirou.
__ Acho que encontrei um jeito__ disse finalmente.__ O problema é que não o conhecemos, não sabemos o que ele precisa ou do que gosta, por isso, não podemos barganhar; e se o conhecêssemos bem, conseguiríamos enganá-lo.
__ E assim...?!__ continuou o senhor Din.
__ Eu vou até a árvore-homem e conhecer o seu gosto!__ disse Creusalinda ingenuamente orgulhosa de si por ter tido aquela ideia.
__ Isso sim, é uma péssima saída__ disse o ancião cruzando os braços.
__ É uma ótima saída, senhor Din__ retrucou decidida.__ Entenda, por favor...
__ Espere, Creusalinda__ o senhor Din ficou em alerta. A música parou.__ Está perto daqui... A Árvore que anda.
__ Aqui?! Como?! A Árvore que anda não vive na cidade?
__ De certa forma, sim. Mas qualquer um pode chegar aonde quer com as suas próprias pernas__ o ancião saiu andando apressadamente com a menina ao seu lado.


Chegaram ao limite entre a parede e as telhas. Não foram os primeiros a chegar ali. Encontraram o senhor Don e pela sua expressão a sua visão não era das melhores. Creusalinda se agachou para olhar também; e lá estava ela com a sua imagem hipócrita e aparente esquizofrenia, a Árvore que anda.
Creusalinda sentiu tanta raiva que se tivesse pelos macios como de um gato, os teria eriçado como um cão tentando intimidar o invasor de seu território.
__ Calma, menina__ disse o senhor Din.
__ Já faz muito tempo, e continua com a mesma aparência desde que se transformou em um ser andante__ murmurou o senhor Don.
__ A árvore-homem continua olhando para cima__ Creusalinda comentou.__ Será que sabe que estamos aqui?
__ Provavelmente, não__ disse o senhor Don.__ Mas sabe que moramos nos telhados.
Os anciões gêmeos e Creusalinda permaneceram no local; quanto aos outros, foram embora e se esconderam em suas casas. O silêncio era total. Os três ficaram observando o mendigo andando de um lado para outro com os olhos voltados para cima, como se esperasse que algo caísse do céu. Esperaram até que o mendigo se cansasse e decidisse ir embora. Relaxaram somente após o mendigo ter desaparecido pela estrada de terra.
__ Está cada vez mais próximo...__ comentou o senhor Don preocupado.
__ Acho que devemos contra-atacar__ disse Creusalinda.
__ Como assim, menininha?__ o senhor Don quis saber.
__ Don, espere__ o senhor Din interveio.__ É apenas uma ideia: engenhosa e cheia de riscos.

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__ A nossa vida já é um risco, Din. Não devemos subestimar uma ideia, mesmo sendo perigosa. Sabe que não me importo de tentar uma última vez; conte-me a sua idéia, Creusalinda__ pediu, e ela contou da mesma maneira que contou ao senhor Din.


__ Din tinha razão, é cheia de riscos e até demais__ o senhor Don lamentou.
__ Não, senhor Don. A árvore-homem sabe que não sou uma pequenina de verdade e não vai me devorar. Se bem que pode me bater e jogar para longe...
__ Não queremos que corra perigo, Creusalinda__ disse o senhor Din ao lado de seu irmão.__ Tem razão ao dizer que não conhecemos a Árvore que anda e é por isso que não sabemos o que pode acontecer com você, que não é uma pequenina de verdade.
__Mesmo assim__ Creusalinda retrucou com vontade de bater os pés.__ Eu quero tentar... por favor, só uma vez. Não quero ver mais o sofrimento dos pequeninos e as borboletas brancas, não quero que o povo do telhado desapareça para sempre! Por favor, eu só quero ajudar.
__ Está consciente do que vai fazer?__ o senhor Don perguntou sério.__ Pois haverá um momento em que ninguém poderá ajudá-la.
__... Sim, estou certa do que quero, senhor Don.
Os anciões gêmeos se afastaram e conversaram entre si. Balançaram a cabeça negativamente.
A menina órfã juntou as palmas das mãos e começou a rezar. Ela ficou tão concentrada em sua prece que não ouviu os anciões gêmeos lhe chamarem.
__ Creusalinda?! Creusalinda, está nos ouvindo?__ perguntou o senhor Din.__ Creusalinda?!
A menina saltou de susto.
__ Senhor?! Já decidiram?__ perguntou com o coração acelerado.
Os anciões gêmeos se entreolharam.
__ Sim, nós já decidimos__ responderam.__ Apesar de todos os riscos e perigos, a idéia pode dar certo__ disse o senhor Din.__ Você pode pôr a sua idéia em prática__ disse o senhor Don e a menina sorriu.__ Porque eu vou acompanhá-la.
__ Não, senhor Don__ Creusalinda parou de sorrir.__ O senhor vai ser devorado!
__ Não vou, não__ retrucou o senhor Don bem-humorado.__ Sei me cuidar, menininha, e não vou ir além do que posso.
__ Ainda bem__ disse a menina aliviada.
__ Mas ao invés de descobrir o que a Árvore que anda gosta, tente encontrar uma fraqueza__ o senhor Don aconselhou e a menina consentiu.
__ Creusalinda__ chamou o senhor Din.__ Deve descansar antes da sua missão. Durma um pouco.
__ Está bem__ a menina concordou cansada.__ Senhor Din! Senhor Don!__ exclamou surpresa.__ Está amanhecendo!
__ É verdade__ disse o senhor Din.
__ Os primeiros raios do sol__ disse o senhor Don.
Creusalinda tinha se esquecido de como era belo o nascer do sol e da energia que aquela visão lhe proporcionava.

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__ Que lindeza__ finalizou deslumbrada.


Depois da apreciação da alvorada, a menina se recolheu, foi descansar os músculos estressados e doloridos.


Quando acordou já era noite novamente, era a hora de agir e partir para a missão.


Creusalinda tomou um rápido desjejum e se encaminhou para o telhado junto com os anciões gêmeos. Lá em cima, o senhor Don fez o seu chamado: belamente com a sua voz
cristalina e experiente, intercalando pios agudos. Não tivera piados das outras vezes, a menina achou diferente, porém, foi tocante e encantador. Foi como receber carinho em um coração pequeno.
O chamado foi diferente, pois o pássaro era outro, Creusalinda logo viu: uma coruja de pequeno porte comum nos campos e prados da região.
__ Que bonitinha!__ a menina exclamou alegre.
__ Sim__ o senhor Din concordou.__ É bonitinha...
De repente, Run, Ton, Bin e Kon apareceram.
__ Viemos desejar boa sorte__ disse Run.
__ Não que você precise__ disse Bin.
__ Fique alerta e não se distraia quando estiver perto da Árvore que anda__ Kon recomendou.
__ Se perceber que algo está errado ou estranho, não se esqueça de fugir para longe__ Ton aconselhou.
__ Chego a achar injusto o que está fazendo, Creusalinda__ disse Run cabisbaixo.__ Não há um culpado nesta situação, mas você nem do povoado é.
__ Não é injusto, porque eu quero, Run. Eu quero ajudar e vou conseguir__ disse Creusalinda decidida.__ Fiquem torcendo por mim.
__ É claro que vamos ficar torcendo__ disseram todos ao mesmo tempo.__ E todo o povoado também__ disse o senhor Din.
Creusalinda sorriu acanhada. Depois o senhor Din a pegou pela cintura e a colocou nas costas da coruja, à frente do senhor Don.
__ Quero que vocês três retornem bem__ disse o senhor Din.
__ Nós três?!__ a menina ficou intrigada.
__ Sim, vocês três, a coruja também conta, Creusalinda.
__ É verdade! Desculpe, coruja.
__ Don...__ chamou o senhor Din, sério e preocupado.
__ Não diga nada, Din, eu e Creusalinda não vamos falhar__ o senhor Don baixou os olhos sutilmente, então, o senhor Din se afastou e os outros fizeram o mesmo.
A coruja enfim, abriu as asas e alçou voo.



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__ Por que chamou uma coruja, senhor Don?__ Creusalinda estava curiosa.
__ Chamei esta coruja porque é menor do que um curiango, precisamos ser discretos, e fazer o possível para que a Árvore que anda não me veja. Com a coruja poderei ficar mais perto de você, menininha.
__ Entendi, senhor Don.
Do telhado direto para a cidade; planaram sobre os becos, pontos de ônibus e algumas ruas menos movimentadas: procuravam a árvore-homem. O ancião e Creusalinda se enganaram algumas vezes, confundindo a árvore-homem com outros mendigos que infelizmente, tomaram grandes sustos por causa da coruja que surgia do escuro. Finalmente avistaram aquilo que procuravam, atravessando uma esquina sombria; com os seus trapos era simplesmente um mendigo.


A coruja pousou sobre um espaço vago de um alto muro cheio de cacos de vidro. Creusalinda rancorosa viu o mendigo__ causador de tanta dor__, parar em frente à uma
árvore mirrada plantada na calçada; antes que pudesse fazer qualquer pergunta ao ancião, o mendigo correu para abraçar aquela árvore mirrada. Ela o viu chorar: sentiu pena ao invés de soberba.
__ É assim que sempre o imaginei__ disse o senhor Don e pelo seu tom de voz, também estava com pena.


O mendigo pôs-se a caminhar sob os olhares preconceituosos de algumas pessoas. Rejeitado e sozinho, seguiu em direção ao parque mais próximo. Creusalinda e o senhor Don o seguiram cuidadosamente.


O parque em que chegaram não era bem iluminado, as luzes dos postes eram apenas suficientes para evitar que as pessoas trombassem uma nas outras. Mas quem teria coragem de passear à noite em um parque mais escuro do que claro? Ninguém provavelmente.
Creusalinda e o senhor Don pousados em um galho, tiveram uma certa dificuldade em localizar o mendigo naquele lugar; ao prestar atenção, Creusalinda chegou a sentir um pouco de medo.
__ Não consigo vê-lo__ disse Creusalinda com os olhos semicerrados.
__ Está ali__ disse o senhor Don.__ Ali, camuflado entre as folhas auriverdes.
__ Está bem. Então, é a hora de agir, senhor Don.
__ Tome muito cuidado, Creusalinda__ pediu o ancião.__ A coruja a levará até o chão__ o senhor Don se delimitou a ficar ali, no alto, onde pudesse ver e acompanhar os movimentos da menina e do mendigo.


Creusalinda desceu e ao colocar os dois pés no chão, levou um susto: a coruja bateu as asas e se foi, a deixou sozinha. Estremeceu. Ela ficou nervosa, por sorte, conseguiu controlar o seu nervosismo antes que pudesse estragar tudo. A impressão de perigo

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constante permaneceu. Creusalinda deu passos breves e lentos. Avistou a Árvore que anda deitada sobre seixos rolados quase invisível sob as folhagens auriverdes, a não ser pelas chamativas botas douradas que cintilavam e refletiam a luz de um poste próximo. De repente, um inesperado pio de coruja se sobressaiu, fazendo com que Creusalinda levasse as mãos à boca para impedir um grito importuno de susto. Ela suspirou, então, chamou a Árvore que anda respeitosamente:
__ Senhor?! Senhor, eu gostaria de conversar, se não for um incômodo... Senhor?!__ nem um movimento, Creusalinda se viu obrigada a tentar algo menos sutil: apanhou algumas pedras do chão e as atirou com força. Nem um movimento, talvez a Árvore que anda não sentisse dor por causa de sua cerne. Como chamar a sua atenção? Creusalinda cruzou os braços e esperou.


__ Quem é você, menininha?__ o mendigo perguntou sem se mover enquanto Creusalinda procurava por pedras maiores pelo chão. Assustou-se.
__ Senhor?!__ disse Creusalinda temerosa, largando as pedras.
__ Quem é você, menininha?__ tornou a perguntar.
__ O meu nome é Creusalinda e não sou daqui, da cidade__ ela respondeu um pouco menos temerosa.__ Sou órfã e não sou uma pequenina.
__ Eu percebi, menininha, desde o primeiro momento em que a vi__ o mendigo se sentou.__ Percebi que a sua essência era diferente daqueles dos quais eu me alimento.
Creusalinda deu alguns passos largos para trás.
O mendigo poeirento levantou-se com dificuldade dentre as folhagens auriverdes. Fixou os olhos na menina, disse:
__ Você é a primeira que conversa comigo em muitos anos, sem palavrões ou xingamentos. Nunca fiz mal a nenhuma pessoa, mesmo assim, me maltratam e rejeitam. Não entendo.
Creusalinda parou de recuar, e o mendigo caminhou pausadamente, continuou:
__ Envelheci. Sou velho e sei que não pareço, por acaso já viu alguma vez uma árvore grisalha?
__ Não, senhor__ Creusalinda respondeu. O mendigo sorriu, um sorriso triste. Fez-se silêncio.


Creusalinda não deu trela para a razão e se aproximou. O mendigo não era fétido, apesar de sua aparência.
__ Sou velho e é estranho parecer uma coisa que não se é__ o mendigo prosseguiu.__ Estou cansado, menininha, de viver com esta fachada.
__ Então, por que não muda?__ a menina perguntou sensibilizada. Sem saber exatamente o que aquela conversa viria a resultar.
__ Não é tão fácil assim...__ o mendigo piscou vagarosamente.__ Sinto falta do ruído do farfalhar de minhas folhas, o meu cabelo balança com a brisa, mas não ouço nada. Tenho que acalentar a minha saudade com o farfalhar de outras árvores e a inveja que me fazem sentir.
__ O senhor está triste?
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O mendigo refletiu e respondeu:
__ Sim, menininha. Estou triste porque deixei de ser o que eu era. Foi uma tremenda peripécia ter-me tornado o que sou agora; e suponho que tenha a mesma opinião.
Creusalinda voltou os olhos para baixo.
__ O senhor tem medo de alguma coisa?
__ Medo?! Como homem não temo nada, mas como árvore temo muitas coisas. A natureza é sábia, porém, frágil.
Creusalinda não entendeu muito bem; e a sua missão rumou para o mau êxito. Começou a transpirar.
__ Deixe os pequeninos em paz, por favor...
__ Não posso, menininha, e você não pode me culpar por estar seguindo a cadeia alimentar.
__ Tire as botas, então!
__ Não é tão fácil assim... Não quero perder o prazer e a liberdade que as botas douradas me proporcionam. Você já sabe qual é a minha vocação, não sabe?
__ Sim, senhor__ Creusalinda respondeu tristemente: já sabia o que teria que fazer logo após; incapaz de pensar em algo melhor ou mais inteligente.
__ Sei que um pequenino a espera, menininha.
__ Como sabe...?!
__ Eu sinto no ar.
Creusalinda surpreendeu-se: o mendigo sabia de tudo desde o início. O mendigo se curvou e esticou o seu longo braço em direção à Creusalinda, que saiu correndo num ímpeto, através das bromélias, azaleias e lírios. Fugiu, tentando se distanciar do mendigo que vinha logo atrás.


Não conseguiu descobrir o ponto fraco da árvore-homem, o que significava que a missão tinha sido um fiasco. O tempo fechou para Creusalinda que continuava a fugir; apesar de tudo, não permitiria que o mendigo a pegasse, sabia que a mataria, ou pior e mais provável, a usaria como isca para apanhar o senhor Don.
O momento que se seguiu foi apenas de desespero__ para Creusalinda__,e expectativa__ para o mendigo faminto. Prosseguiu-se a perseguição: Creusalinda corria de um lado para outro como uma barata tonta, não conhecia nenhum lugar seguro para se esconder, pois o que parecia, era que não existia um lugar seguro. Creusalinda não ia correr para sempre, e era certo que seria encurralada em breve.
Parou.
Pobre menina, sentiu o medo percorrer-lhe todo o corpo, fazendo-a tremer. Não havia um plano B, e Creusalinda bem-entendida, fechou os olhos. Esperou.


Estava demorando para acontecer o que tinha que acontecer; foi quando Creusalinda ouviu um chamamento e abriu os olhos: viu o mendigo em estado de alerta. A menina rezou para que o senhor Don não fizesse nenhuma façanha.
Mas lá estava ele saindo lentamente detrás das flores do canteiro com toda a sua pose de herói.
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__ Venha me pegar__ gritou.__ Não está com fome?!
Foi o suficiente para que o mendigo se esquecesse totalmente de Creusalinda; que ficou abobalhada ao ver a rapidez que o senhor Don corria com o seu cajado e a sua perna feita de dente. Ao se recompor da situação, percebeu que tinha que dar um jeito e salvar o senhor Don e evitar que tivesse o mesmo destino de Son, de amarelo como o sol.


Creusalinda começou a correr de um lado para outro, aflita, procurando pelo chão sujo algo que pudesse usar contra o mendigo. Nada, além de simples lixo: embalagens de doces, casca de bala, garrafa de refrigerante, copos descartáveis amassados, papéis de todos os tipos, palito de sorvete. Era tudo inofensivo, contudo, um pouco ao longe, avistava-se um ponto luminoso. A menina se aproximou: era uma bituca de cigarro acesa.
O que faria com uma bituca de cigarro acesa? Não sabia.
Não havia tempo para pensar, Creusalinda segurou a bituca e a colocou embaixo do braço assim mesmo. De todos os itens do chão, ou lixo, a bituca era o que parecia mais
utilizável, teria uma serventia embora Creusalinda ainda não soubesse. Ela saiu correndo atrás do senhor Don e do mendigo. Quando os encontrou estavam parados, atentos aos movimentos um do outro; uma árvore não muito grossa entre ambos impedia que o mendigo alcançasse o senhor Don, pois enquanto que o mendigo ia para a direita, o ancião se encaminhava também para a direita e o mesmo para o sentido contrário; ficaram ali. Era uma situação delicada, e Creusalinda teria que fazer o seu melhor. Ela pôs-se a caminhar cuidadosamente em direção aos dois que não tiravam os olhos um do outro.
__ Lembro-me de você, velho pequenino__ disse o mendigo.__ Lembro-me do gosto de sua carne.
__ Tenho certeza disso__ o senhor Don retrucou.__ Eu escapei uma vez de você e vou escapar de novo. Não pense que vou deixar que sinta o gosto de minha carne novamente.
__ É o que veremos, velho pequenino...
__ Sim, é o que veremos. E aviso que vou recuperar as minhas botas douradas. Hoje é o dia que você deixará de ser homem e voltará a ser árvore, uma árvore como as outras.
O mendigo suspirou; não queria ficar impedido de se locomover. Gostava de ser árvore, mas aprendeu a gostar de ser homem.
__ Você acabará em minha boca, velho pequenino__ o mendigo estava decidido.__ E será uma refeição inesquecível!
__ Jamais!__ esbravejou o ancião.__ Preciso pôr um ponto final em tudo o que causei! Antes disso, é certo que não acabarei em sua grande boca.
E ambos trocaram olhares raivosos.


Naquele momento, Creusalinda continuava a se aproximar. Às vezes, voltava os olhos para aquilo que segurava e se questionava o que fazer. Continuou. Creusalinda chegou bem perto, deu mais um passo apertado. Uma leve brisa começou a soprar e subitamente, sentiu-se o cheiro de queimado. A menina órfã nunca imaginaria ter tanta sorte: o seu vestido começou a chamuscar. Não deveria ter segurado a bituca de cigarro acesa embaixo do braço. Em um rápido reflexo, Creusalinda atirou a bituca para o alto e começou a balançar
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e chacoalhar o vestido com medo que estivesse em chamas. Apesar do cheiro de queimado, o dano no vestido foi leve, o que fez com que a menina respirasse aliviada.
__ E a bituca de cigarro?__ se perguntou.__ Onde foi parar?__ inconscientemente, aquela bituca ganhara importância.


A brisa cessou e voltou a soprar. O ponto luminoso reapareceu, e lá estava a bituca caída aos pés da Árvore que anda. Creusalinda soltou um grito que não parecia em nada aos chamados dos pequeninos. O senhor Don olhou para Creusalinda com preocupação: ela estava bem?
__ Senhor Don! Senhor Don!__ chamou.__ O que faço com uma bituca de cigarro?__ perguntou, sem a menor noção do que fazer.
__ Bituca de cigarro?!__ o ancião se esquivou para a direita.__ Onde?
__ Ali!__ Creusalinda apontou com o dedo. A delicada brisa fazia com que o ponto luminoso ficasse mais forte.
O senhor Don fixou os olhos na bituca, concentrou-se e deixou de piscar. Logo, em seguida, via-se a fumaça da bituca ficar encorpada. Qual era o plano do ancião?
Creusalinda não conseguia descobrir. De repente, o senhor Don foi interrompido; a árvore-homem o agarrara em um momento de vacilo. A menina gritou aflita e o seu grito se misturou com o pio da coruja que surgira para ajudar.
Como a atenção da árvore-homem estava totalmente voltada para o velho pequenino que segurava com firmeza entre os seus dedos nodosos, ele acabou levando um susto daqueles com o voo rasante e repentino da coruja e se encolheu.
__ Creusalinda!__ gritou o ancião.__ Me ajude!
__ Senhor Don!__ a menina gritou perdida.
__ A bituca! Traga-a mais perto__ o ancião pediu; naquela altura, a árvore-homem tinha se afastado um ou dois passos da bituca.
Creusalinda obedeceu nervosa, tremia e batia os dentes. Mas ao se aproximar com a bituca em mãos, foi pega de surpresa com o segundo voo rasante da coruja, o que fez com que a árvore-homem se movesse para trás. A menina não precisou pensar duas vezes, largou o que segurava e saiu correndo da rota dos passos da árvore-homem.
Pios e voos rasantes da coruja, Creusalinda correndo em ziguezague evitando ser pisoteada, os gritos do ancião misturados aos gritos de medo do mendigo, em meio àquela confusão, um pé-de-vento surgiu e fazendo-a rolar, colocou a bituca encostada à bota dourada esquerda. A coruja cessou. Foi o tempo para o senhor Don fazer os seus dedos dançarem, levantando-os lentamente.
Ao ver aquilo, Creusalinda saltou para trás com um susto, a bituca fizera com que a bota se acendesse como um fósforo, logo em seguida, a bota direita também se acendeu. Parecia que as botas douradas eram feitas de um material inflamável, pois pegaram fogo com intensidade formando duas labaredas aos pés do mendigo.
__ Fogo! Fogo!__ o mendigo começou a gritar desesperado.__ O fogo não! Não!__ foi o suficiente para que ele deixasse o senhor Don cair de sua mão.
Creusalinda não se deteve, correu para ajudar o ancião totalmente atordoado pela queda.
__ Senhor Don! Senhor Don__ a menina repetia apreensiva.
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__ Oh, Creusalinda, me ajude a levantar, por favor__ o senhor Don pediu.__ Vamos sair daqui depressa, antes que aquelas labaredas nos alcancem.
Enquanto Creusalinda e o senhor Don se distanciavam, o mendigo ainda de pé se contorcia aterrorizado, ele tapou os olhos com as mãos trêmulas seguidamente ao olhar os seus pés, em chamas. Antes de decidir o que fazer tapou os olhos mais uma vez.
__ Não. Não__ repetiu relutante.__ Não, por favor, eu imploro... Não. Não isso...
Finalmente, ele fez o que tinha em mente: tirar as botas douradas em chamas de seus pés antes que o fogo o consumisse por completo.
Creusalinda e o ancião assistiam a tudo, viram quando o mendigo atirou as botas douradas para o alto. Pareciam dois sóis. Creusalinda foi atrás das botas douradas, não queria que caíssem em pés errados novamente. Ao caírem e tocarem o chão, as botas
douradas quicaram, e as chamas se extinguiram. Os olhos da menina órfã se arregalaram ao ver que as botas douradas tinham se encolhido, contudo, inteiramente intactas. Ela segurou as botas com força entre os braços finos, e os seus olhos se moveram de soslaio. Creusalinda viu o mendigo se encolher e depois se esticar lentamente. O mendigo viu as próprias mãos se transformarem em galhos, e os próprios pés se transformarem em fortes raízes que se fincaram na terra dura, belas folhas verdes brotaram__ a menina acompanhou tudo com espanto. Inerte sem as botas douradas, a árvore-homem disse antes que os seus lábios se selassem para sempre:
__ Menininha, não estou com medo, enfim, sou o que sempre fui.
E Creusalinda e o senhor Don presenciaram o cair de suas pálpebras. Tinha voltado a ser uma árvore grandiosa, estava em paz. Creusalinda correu para perto do senhor Don.
__ Bem-acabado__ comentou o ancião.
__ Sim...__ a menina concordou.__ A árvore é linda, como sempre foi__ e ambos se aproximaram, tocaram-na com carinho.
__ Está perdoada__ disse o senhor Don.__ O povo do telhado a perdoa.
Permaneceram um instante em silêncio.


Em seguida, Creusalinda esticou os braços e entregou as botas douradas ao ancião.
__ Perdi a minha perna direita e muitos amigos por causa destas botas e no final, acabei perdendo o meu cajado também. Tantos problemas...__ desabafou.__ É melhor que desapareçam__ o senhor Don segurou as botas uma em cada mão, então, abriu os braços e bateu uma contra a outra, transformou as botas douradas em uma nuvem cheia de pequeníssimos pontos brilhantes que acabou se dispersando no ar.
__ Uau. E o que acontece agora, senhor Don?__ Creusalinda perguntou.
__ Agora, nós vamos voltar para o povoado e dizer que tudo acabou bem__ respondeu com alívio.
__ Vai chamar a corujinha?
__ Eu acho que não, Creusalinda. Vamos voltar do mesmo modo que as pessoas como você fazem.
__ Como assim, senhor Don?!
__ Andando, Creusalinda, é claro!__ o ancião sorriu.
__ Ah, é.

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E daquela forma, os dois retornaram ao povoado.


Ambos foram recebidos com alegria e surpresa. Receberam abraços seguidos que pareciam intermináveis. Pequeninos e pequeninas, todos estavam ali para saudá-los. Quando chegou a vez de Kon, Run, Bin, Ton e do senhor Din, Creusalinda chorou de alegria; tentou parar as lágrimas, mas não conseguiu. Nunca tinha recebido tanto carinho assim.
__ É bom vê-lo inteiro, Don__ disse o senhor Din brincando.
__ Já esperava ouvir algo assim de você, Din__ os irmãos gêmeos se abraçaram alegremente.
__ No princípio, eu senti que conseguiriam, mas não pude acreditar devido ao meu temor__ o senhor Din contou com franqueza.__ Me perdoe, Don...
O senhor Don nada disse, além de balançar a cabeça positivamente e sorrir com o seu olhar sereno de sempre.


Os anciões gêmeos se voltaram para Creusalinda que continuava a receber abraços.
__ A hora de Creusalinda está se aproximando, Din.
__ Sim, Don, e ela deve tomar uma decisão__ eles esperaram pacientemente que os abraços se acabassem.
O senhor Din se dirigiu à Creusalinda, e segurou a sua mão; estava sério, o que fez com que a menina parasse de sorrir.
__ Senhor Din...?__ murmurou.
__ Acertou desta vez, Creusalinda, estou orgulhoso. Venha comigo, nós precisamos conversar.
Creusalinda consentiu um pouco receosa.


Os dois caminharam até a proximidade de uma casa, sentaram-se em dois banquinhos vagos.
__ O que quer conversar comigo, senhor Din?__ a menina estava curiosa, será que tinha feito algo de errado?
__ Estou aqui para lhe avisar que a hora que as pessoas deixam de agir e sonhar como crianças está chegando, para você.
__ O senhor quer dizer que eu estou crescendo, não é?
__ Sim, Creusalinda. Daqui a pouco, deixará de ser criança e não poderá mais nos ver.
__ E se eu continuar acreditando...?
__ Infelizmente, com o tempo ficará ocupada e tão ocupada que se esquecerá de nós. É o que vai acontecer naturalmente. Ninguém é culpado.
__ Isso é chato e triste também. Muito triste.
__ Sim, e é por isso que deve decidir em breve.
__ Decidir?!

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__ Sim. Decidir se quer ser uma pessoa comum ou uma pequenina como nós, do povo do telhado. Terá a chance de decidir como prova de nosso agradecimento por ter ajudado tanto... Então?
Creusalinda baixou os olhos e ficou pensativa.
__ Eu não sei, senhor Din, ainda não sei__ respondeu.
__ Já esperava por isso. Eu sei que precisa de um tempo para refletir. E está totalmente certa em querer pensar antes de agir, pois a sua decisão não terá volta.
__... Tenho que voltar para o orfanato?
__ Sim.
__ Se eu decidir que sim, como vou avisar o senhor ou os outros?
__ Não se preocupe. Nós, os pequeninos, saberemos.
__ Está bem. E se eu decidir que não, o que acontece?
__ Nada acontece.
__ Puxa... Nada mesmo?! Tem certeza?
__ Sim__ o senhor Din sorriu.__ Vamos esperar que decida, Creusalinda__ a menina se curvou para o lado e olhou por detrás do senhor Din, viu os seus amigos acenando, inclusive o senhor Don já com um novo cajado; Creusalinda retribuiu os acenos e eles desapareceram.
__ É agora que vou voltar para o orfanato...__ a menina deduziu.
__ Sim__ o ancião concordou.
Creusalinda respirou fundo e suspirou.
__ Estou pronta, senhor Din__ ela avisou com um sorriso.
Ambos se olharam nos olhos e o ancião disse:
__ Então, me dê a sua mão...


Ao abrir os olhos de manhã, Creusalinda se viu em sua velha cama beliche com a sua roupa de dormir de sempre com a sensação incrível de ter tido um longo sonho. Viu também que estava atrasada para a escola, pois Pedrinho a chamava aos berros. Era um dia como outro qualquer. Trocou-se às pressas. Tudo como sempre.


Durante o resto do ano letivo, o que no caso não era muito, tudo ocorreu normalmente, era como se nada tivesse acontecido; mas no ano seguinte, Judite não se encontrou mais com Creusalinda na escola nem a avistou mais por aí. Ficou sem saber o que tinha acontecido. Creusalinda tinha sido adotada? Tinha se mudado? Tinha passado de ano?



FIM