O planeta

Numa nave interestelar, dois extraterrestres conversam:

― Zurk, prepare a arma de extermínio global para aquele planeta que escolhemos para o nosso Grande Mestre.

― Sabe Zank, estive pensando...

― O que foi Zurk?

― Será que não deveríamos esperar mais um pouco ou até, quem sabe, procurar outro planeta?

― O que está dizendo Zurk? Está louco? Já estamos há muito tempo procurando este planeta para o nosso Grande Mestre! Ele já deve estar impaciente!

― Eu sei, Zank. Mas é que não estou bem certo de que esse planeta seja uma boa escolha...

― Como assim, não é uma boa escolha? Você se esqueceu da recomendação de nosso Grande Mestre de procurarmos um planeta que, de preferência, estivesse destinado à autodestruição? Um planeta cujos habitantes estivessem inexoravelmente caminhando para o seu próprio fim devido à falta de bom senso e ao desconhecimento de meios pacíficos de convivência?

― Eu sei disso, Zank. Porém, não tenho certeza de que esse planeta se encaixe nesse perfil...

― Como não tem certeza? Você não viu os relatórios de nossos espiões? – falou, segurando o relatório. Aqui diz que esse planeta está exatamente de acordo com as recomendações de nosso Mestre: ele é relativamente novo, localiza-se a dois milhões de anos-luz de nosso planeta – e olha que estou usando o ano-luz deles, que é quinhentas vezes menor que o nosso ano-luz. Além disso, estamos diante de um planeta na iminência de uma última guerra planetária, pois seus habitantes são extremamente desunidos, hostis a si mesmos.  Dividem-se em grupos rivais, inimigos históricos, sociedades segregacionistas. Defendem seus próprios interesses sem olhar para as necessidades coletivas. Cultivam o ódio irracional baseado em preconceitos, mentalidades ortodoxas engessadas pela falta de respeito e amor ao próximo. São violentos e tentam defender suas ideias na base da força bruta, sem sequer poupar indivíduos desarmados, anciãos, fêmeas e crias. Guerreiam também pela obtenção de riquezas materiais que reforçam seu poder político. São grupos que jamais chegam a um acordo, pois se julgam donos da verdade e de uma norma ética pertinente aos seus interesses. Não dispensam armas de destruição em massa, armas químicas, biológicas e tecnológicas. Estão destruindo seu planeta, seus recursos naturais, as outras espécies viventes, suas águas e todo o seu solo. Seu alimento está permanentemente comprometido, pois usam veneno no processo de cultivo e substâncias estranhas na criação de espécies comestíveis, comprometendo sua própria nutrição, favorecendo o surgimento de doenças. A sujeira e o acúmulo de toneladas de lixo orgânico, químico e nuclear, além de suas aglomerações habitacionais, que reúnem as piores condições de higiene, salubridade e habitabilidade, provocam todo tipo de distúrbios emocionais, psicológicos e comportamentais, além da prática da criminalidade e da violência diariamente. Chegam ao cúmulo de brigar por coisas banais, sob efeito de substâncias embriagantes e narcóticos. Também se agridem por causa de disputas envolvendo agremiações desportivas em verdadeiras guerras campais em praças de esportes, o que devia ser apenas motivo de entretenimento e lazer.

Além disso, eles não cuidam de suas crias, que estão largadas à própria sorte, sendo recrutadas pelos grupos de terror à prática criminosa. Eles não respeitam suas próprias leis, seus próprios estatutos. Banalizam a violência, a corrupção, o desrespeito às leis e aos direitos civis de cada indivíduo. Seus governantes cometem todo tipo de barbaridade apenas no intuito do enriquecimento ilícito e da manutenção do poder. Eles não percebem que seu planeta não resistirá a tanta destruição e desarmonia. Eles são uns...uns... uns ogros, Zurk!

― Sim, Zank, eu sei. Mas é que eu também andei pesquisando melhor e percebi que nossos espiões não perceberam alguns fatos importantes no comportamento dos habitantes desse planeta.

― Como assim, Zurk? Você está insinuando que nossos espiões nos entregaram relatórios falsos?

― Não, Zank, claro que não, eles relataram a verdade quando disseram que esses seres são hostis e egoístas. Também acertaram quando os classificaram de bastante violentos. Sem dúvida, muitos indivíduos de sua raça não deveriam viver em sociedade, e sim em pleno processo de ressocialização através de algum meio de readaptação ao convívio social, como fazemos em nosso planeta.

― Então, o que quer me dizer de fato, Zurk?

― É que tomei a liberdade de também espioná-los para saber mais de seu meio de vida e descobri outras coisas deles.

― Como? Está dizendo que andou entre eles? Como pôde? Isso só cabe aos espiões preparados. Pode ser muito perigoso!

― Eu sei disso Zank, mas não se preocupe. Eu tomei todo o cuidado. Usei o nosso campo de invisibilidade e pude transitar sem problemas no meio desses seres. Assim, pude ver de perto cenas que demonstram que nossos espiões não viram tudo, ou não relataram tudo o que viram.

― Como assim, Zurk? Do que você está falando?

― Estou dizendo que o que vi me fez repensar nossas impressões sobre esses seres. Embora muitos de sua espécie sejam reprováveis, a verdade é que nem todos adotam o mesmo comportamento. Há indivíduos que praticam o perdão, a generosidade, a compaixão, o respeito, a lealdade e o carinho não só aos de sua parentela, mas também a indivíduos desconhecidos, sejam eles mais velhos ou não, macho ou fêmea, habitante de suas terras ou estrangeiros. Vi que eles cultivam bondade e altruísmo, principalmente os de pouco recursos materiais, que demonstram maior capacidade de se sensibilizar ao próximo. Sim, Zank, há uma esperança de que esses habitantes não se autodestruam. Eles precisam apenas se unir mais globalmente para não deixar que os piores representantes da espécie assumam posições de direção e governo e continuem a destruir a sociedade com seu autoritarismo e materialismo egoísta.

― O que está dizendo, Zurk? Como você pode visualizar esperança para um povo tão hostil, tão selvagem, que segue seus mais primitivos instintos de conquista e destruição? Nossos dados estatísticos indicam que eles não durarão mais do que duas gerações. Isso é fato!

― Será, Zank? Tem certeza mesmo? Lembra-se da crise de ética que assolou nosso planeta há algumas gerações? Lembra-se do imenso trabalho que nosso Grande Mestre teve para punir os corruptos, os aliciadores de jovens e os criminosos que queriam enriquecer à base de tráfico de substâncias proibidas em nosso planeta? Aquilo foi um momento de grandes transformações em nosso mundo. Caso o Grande Mestre falhasse, eles dominariam nosso planeta e estaríamos agora numa situação de grande risco para nossa sobrevivência, pois os maus exemplos seriam seguidos por mais indivíduos, condenando-nos a uma grande crise moral.

― Mas Zurk... é diferente...

― Diferente em quê, Zank? Assim como tivemos a oportunidade de nos salvar, eles devem também ter sua oportunidade, mesmo que seja a última, de enfrentar seus problemas e superar a atual crise de valores. Eu vi que eles ainda têm chance. Vi indivíduos que compartilhavam alimento com quem não tinha. Vi famílias se confraternizando em agradecimento à sua divindade. Vi jovens se unindo em matrimônio, num claro sinal de que creem num futuro melhor. Vi crias a brincar felizes, ainda que em vias fétidas e insalubres. Vi anciãos cultivando hortas e jardins a conversar calmamente com as espécies cultivadas. Vi nações inteiras a clamar por paz e a preservação de suas riquezas naturais e as demais espécies num movimento global de grandes manifestações pacíficas. Precisamos dar essa chance a eles Zank!

― Puxa, Zurk! Eu não sabia que eles apresentavam esse lado inconformista, onde buscam mudar a situação atual de destruição. Eu não vi nada disso nos relatórios dos espiões e... estou surpreso. Mas, por que eles nos omitiram essas informações? Como puderam?

― Em parte os entendo Zank. Eles estão há muito tempo longe de suas fêmeas e crias. Estão com saudade de suas famílias. Querem acabar logo com essa missão e voltar para casa. Assim como nós, que comandamos esta missão e seremos mais cobrados por seus resultados. Mas, se fizermos isso, não estaremos sendo egoístas também? Não estaremos decidindo o que é mais importante no universo a partir de nossos interesses, se é que já não o fazemos? Não estaremos praticando o mesmo autoritarismo que condenamos em outros povos?

― Você tem razão Zurk. Estamos sendo até mais egoístas e autoritários, para não dizer violentos, que eles. Pouparemos então este planeta. Mas, que faremos agora? O Grande Mestre aguarda uma resposta. Estamos falando também de nossa sobrevivência.

― Não se preocupe, Zank, já pensei nisso. Eu procurei no próximo quadrante outra galáxia e, nela, encontrei um pequeno planeta que servirá perfeitamente aos nossos propósitos. Ele será destruído no lugar do que poupamos.

― Ótimo! E como ele é conhecido em sua galáxia?

― Terra.