Morando em São Bernardo há muito tempo acompanhei de perto, às vezes muito perto, a construção do personagem ao longo de sua tumultuada carreira de sindicalista até chegar ao topo do sistema político. Possivelmente, frequentamos em alguma época, o mesmo barbeiro, o mesmo mecânico e em minhas caminhadas matinais, vi muitas vezes o Lula, ainda presidente, saindo de casa com todo o aparato de segurança com destino à Brasília.

Bem antes de sua ascensão, levava minha esposa até a empresa Equipamento Villares onde ela trabalhava. Um dia  ela me mostrou, do lado de fora da portaria, o Lula entre os operários da empresa, onde ele começou sua vida profissional. Era um festeiro abraçava e beijava seus antigos companheiros e ria de modo a ouvir-se de longe. Parecia um menino daqueles engraçados, brincalhões e populares que conhecemos na infância.

Depois vieram as primeiras greves na indústria automobilística. Foi uma surpresa, pois todos viam o Lula como um operário preocupado apenas com o bem estar dos trabalhadores e sem radicalismo, principalmente porque os militares não estavam para brincadeira. Mas na época, tudo indica que Lula foi superado pelo movimento operário e as greves emergiram dentro das fábricas numa reação em cadeia, começando com a indústria automobilística e atingindo outros setores. Dizia-se que a revelia do sindicato.

Fui ver o Lula numa concentração no Estádio Vila Euclides, quartel general do movimento grevista. O estádio estava apinhado de gente. Sua chegada, carregado pelos seus companheiros foi apoteótica, espetacular. Quando começou a falar fez-se silêncio que era sempre quebrado quando dizia frases de efeito e o povo aplaudia freneticamente. Era realmente um líder popular, construído a partir das bases. Era a história engendrada a partir das classes subalternas, como gostaria de escrevê-la o historiador Sérgio Buarque de Holanda.

Lula se candidatou a presidente, disputando em segundo turno com Collor de Mello. Eu pretendia anular o voto no segundo turno, pois não considerava o Lula um candidato viável para aquele momento e o outro candidato era uma farsa percebida pelos mais bem informados. Mas o jogo sujo da quadrilha do Collor, pagando para a ex-namorada de Lula, quando ainda solteiro, para que viesse a público acusá-lo de tê-la abandonado e proposto o aborto para resolver o imbróglio foi a gota d’água. Votei no Lula em protesto para evitar que o perigoso bufão histriônico chegasse ao poder. Infelizmente não adiantou.

Outro fato nos colocaram, novamente, muito próximos em 2001.  Foi no casamento da filha de um amigo falecido de Lula. Minha filha foi madrinha da noiva ao lado do Lula e sua esposa. A cerimônia foi no sindicato e a parte religiosa ficou por conta do dominicano Frei Beto. O casal Lula ficou numa mesa próxima a nossa com o seu amigo e advogado Roberto Teixeira. Não houve assédio por parte dos convidados, apenas um ou outro conhecido foi cumprimentá-lo.  Lula já havia perdido três eleições para presidente.

Que caminhos foram percorridos pelo Lula desde os tempos de operário na Villares até a Presidência da República, quando ganhou notoriedade internacional, títulos de doutor honoris causa sendo considerado como o “cara” pelo Barak Obama. Sua fama correu o mundo como um político que acabou com a pobreza no Brasil. Comprovei isso quando trazia um casal de ingleses, Sean e Rachel do aeroporto de Guarulhos para minha casa onde se hospedaram. Quando eles viram as favelas pelo caminho ficaram surpresos, pois a visão que tinham era a que o Lula havia resolvido todos esses problemas. A fama foi maior do que os feitos.

Hoje vejo com uma ponta de tristeza um homem acuado pela justiça e imprensa por acusações relacionadas ao seu envolvimento ilícito com empreiteiros. Sua vida foi vasculhada, sua intimidade devassada com a exposição de diálogos pessoais dele e da família. Será que o Lula acreditou que estaria acima da lei e de valores por causa do seu prestígio, por ser amado pelos pobres? Aceitar presentes de empreiteiras seria algo normal? Afinal seriam merecidos por ter feito o Brasil crescer, ter gerado empregos, ter tirado milhões do nível de pobreza extrema?

Essa história nos remete à fábula de George Orwell, traduzida como a Revolução dos Bichos, em que os porcos, defensores dos animais oprimidos, são cooptados pelo conforto e luxo, desfrutados pelo fazendeiro que foi expulso da propriedade por explorar os pobres animais. Ficou para trás o discurso de que todos eram iguais, alterado de forma oportunista para “Todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”.

Lula poderia ter sido um exemplo para as próximas gerações: um filho de camponeses miseráveis, um operário humilde que chegou ao mais alto cargo da República, mantendo a retidão de caráter, a honestidade e a fidelidade aos princípios que o levaram tão longe. Mas não. Como a maioria, deixou-se levar pelo narcisismo, pela arrogância e pela ambição. Uma pena.

Renato Ladeia