O pensamento Garrettiano a partir da obra O Arco de Sant Anta

Por Luciana Luiza de França | 16/04/2019 | Literatura

ANÁLISE DO PENSAMENTO GARRETTIANO A PARTIR DA OBRA

O ARCO DE SANT’ANA.

O Autor e a obra:

 

O ano era de 1832, tempos de monarquia absolutista. Ano em que Almeida  Garrett começava a escrever o primeiro tomo do romance: O Arco de Sant’Ana, no Convento dos Grilos, na cidade do Porto em Portugal. Foi o período em que o autor havia desembarcado na cidade ao lado das tropas liberais de D. Pedro IV, após o seu segundo exílio forçado na França. O segundo volume do romance seria concluído em 1849 para somente ser publicado em 1850. Não era de admirar o entusiasmo de Garrett pelas causas liberais do povo. Entusiasmo que começava com a revolução de 24 de agosto de 1820 no Porto, que pretendia atacar a monarquia absoluta  cabralista e suas tiranias.

O Arco de Sant’Ana é a tentativa de evocar os valores cristãos contra a tirania e o desejo sexual. O romance se passa no Porto na época de D. Pedro I, uma época em que ainda existia o arco como monumento principal da cidade. O autor descreve uma história que, segundo ele, foi tirada dos manuscritos do Convento dos Grilos e por isso poderá servir de modelo de comportamento para o povo. É um recurso utilizado por Garrett para prender a atenção do leitor e mostrar que a história que está sendo contada é verídica. Garrett aproxima o passado com o seu presente, associando a idéia de que para acabar com as tiranias do seu tempo, teria que utilizar as armas do Cristianismo, segundo ele, a religião das luzes da razão e da  liberdade. Recorda os tempos em que a figura do Bispo exercia nas cidades os arbítrios do poder  feudal. Para Garrett este poder arbítrio usado pelos Bispos é o mesmo poder arbítrio utilizado por Costa Cabral em 1841.

Na obra, as personagens Aninhas e Gertrudinhas deixam claro o quanto a tirania do Bispo assolava o povo:

 

 

“- Que cedo faça Deus êsse milagre, Gertrudinhas. Senão mal estou; que ainda hoje aqui veio o almudeiro do bispo, aquele esconjurado leva-e-trás, que de manhã rouba o povo na casinha da portagem e de tarde faz ofício do demónio tentador, a desinquietar quanta rapariga e mulher honesta tem o Pôrto...” (Garrett, s.d.: 08).

 

 

 

Proposta garrettiana a partir de O Arco de Sant’Ana:

 

Além d’O Arco de Sant’Ana servir para combater a tirania do governo, o autor pretendia educar o povo. Como Garrett tenta fazer isto? Através das luzes da razão, da religião de Deus, ou seja, do Cristianismo. Por isso, diz-se que o autor age como um verdadeiro pedagogo: “aquele que aplica a pedagogia,o que ensina, professor” (Aurélio, 2001:522), ou seja, aquele que aplica a teoria da educação. A obra também foi escrita para servir de conduta de comportamento. Esta intenção pode ser bem percebida no tratado Da Educação, de 1829, quando Garrett se propõe a escrever um guia para educar a jovem rainha D. Maria. Um guia de como as mulheres deveriam se comportar, sendo boas esposas e mães.

Em O Arco de Sant’Ana o autor ousa mais, quer descrever um  modelo de comportamento para os governantes do povo. Na visão cristã de Garrett o  rei deveria servir de intérprete das vontades do povo,  porque ser cristão seria  ser um homem justo. E seguir a boa educação, para o autor, seria seguir o Cristianismo, ser homem de bem, ser justo e suportar as forças sócias do mal que tentavam arrastar o homem bom para o seu lado pecaminoso. Para o autor todo homem se divide em dois lados: o bom e o ruim. Para Almeida Garrett o lado mal só poderia ser combatido através de uma verdadeira educação cristã. Pois só ela fará com que o homem se aproxime de sua essência, ou seja, daquilo que ele tem de mais puro.

E sendo um homem puro será também justo, assim, conseguirá lutar contra os males do social, defendendo o povo das tiranias, dos falsos Bispos e de falsos governantes. Como o autor descreve em sua obra: defender o povo daqueles que ocupavam “falsas posições”.

Em tempos da ditadura de Cabral, Garrett viaja para Santarém para fazer uma visita ao líder setembrista, a qual foi vista como um ato político. Em 1844, eclode em Torres Novas uma revolução contra o governo vigente.

Finalmente em 1845 será editado o primeiro volume de O Arco de Sant’Ana, cujo  segundo volume será concluído em 1849 para ser lançado em 1850. A obra vem exaltar a luta contra os Barões, Cabrais e contra a facção autoritária. Não é um incentivo à luta de classes. Na verdade, ele quer restaurar o reino de Deus, a verdade e a concórdia na terra. Por isso, às vezes o narrador irá se confundir com o próprio Garrett. Muito da vida e da visão pessoal do autor é descrita na obra e muitas das vezes, justificada pelas suas  personagens.

 

O Romance, os ideais burgueses  e o Cristianismo:

 

Por conta de dois exílios na França, o autor incorpora em sua obra alguns valores do país, como a gastronomia francesa. Mistifica o país  como a pátria da liberdade,como o berço das idéias liberais e da liberdade, dos direitos civis. Não era uma liberdade como a do nosso tempo, mas sim, uma liberdade dentro dos ideais burgueses. Porque, para o autor, como eles eram os detentores de cultura e conhecimento, saberiam compreender melhor os anseios do povo. Consequentemente, uma sociedade que teria um letrado, o rei, como intérprete do povo sob as luzes da religião.

Este pensamento fica mais claro no artigo O 24 de Agosto. Este texto é de ataque às oligarquias do governo cabralista, de defesa do liberalismo, da religião e da monarquia constitucional. Para o autor não é o povo em massa, sem freios e sem ordem que deveria levantar voz, mas sim um representante escolhido pelo povo, iluminado de conhecimento e cultura para falar em nome deles.

O desenrolar do romance inicia com o pedido da personagem Gertrudinhas para que Vasco vá avisar o rei D.Pedro das tiranias do Bispo, que por fim manda raptar Aninhas, a quem pretende seduzir na ausência do marido. Só o rei poderia intervir contra este mau Bispo e com isso livrar a cidade da ruína e Aninhas da desonra.

Podemos perceber na figura de Gertrudinhas como o autor defende os ideais burgueses. A personagem incentiva o seu amado Vasco a ir procurar o rei e trazê-lo para cidade, já que ela não poderia romper com os limites que a sociedade lhe impõe. Gertrudinhas apela para que Vasco aja em seu nome, porque, para ela e para todo o povo do Porto, somente o rei seria capaz de ir contra as tiranias do Bispo. Temos aí uma idealização burguesa, quando se justifica uma luta a favor de um bem para todos.

Vasco é como se fosse o espelho do nosso autor, quando defende e acredita nos ideais de liberdade. Mesmo tendo sido criado como filho por este Bispo mau que mais tarde descobre ser seu verdadeiro pai, a personagem vai contra tudo aquilo que o Bispo representava: tirania e opressão. E é aí que aparece um dos grandes impasses da obra, Vasco dividido entre seus dois amores: amor - paterno dirigido ao Bispo, e amor - paixão por Gertrudinhas.

 

 

“Êste cego amor seu pela bela Gertrudes, êste exaltado entusiasmo pela causa dos comunais, que é a dela – e a dêle também – êste ódio que tem aos opressores da sua terra, e a oculta voz do coração que ao mesmo tempo lhe clama por aquele mau bispo e mau senhor, que para êle Vasco é todavia a bondade, a indulgência mesma, sempre, sempre, e sem jàmais se desmentir!...”(Garrett, s.d.:30)

 

O autor justifica a decisão de Vasco descrevendo que o “mancebo” sentia em seu coração como se o cavalo fosse feito para ele e ele para o cavalo, ou seja, que foi criado para ser um lutador, um justo, sendo assim deveria lutar em nome do povo e da justiça.

E mesmo Vasco tendo sido criado para ser um eclesiástico, Gertrudinhas consegue fazê-lo mudar de lado através da força do amor. Contribui para que Vasco incorpore valores burgueses que antes ele tanto rejeitava, e com isso batalhar em seu favor e do povo. Porque, para o autor, um homem justo, que fosse capaz de falar em nome do povo, deveria possuir o saber das luzes da religião. Conhecimentos que Vasco possuía, por isso seria o homem ideal para lutar em favor deste povo oprimido.

É neste momento que o conflito da personagem se instaura: Vasco dividido entre o desejo e o valor. Ter Gertrudinhas seria como se tornar um barão, indigno do ponto de vista social, mas também seria ao mesmo tempo cumprir o ideal romântico com que tanto sonhara.

Garrett viabiliza o típico “mito do amor”, quando mostra que no campo do desejo e do amor não restaria outra opção a não ser o casamento. E que para Vasco ter a mulher que tanto amava e desejava não restaria o único caminho: tornar-se um barão. E assim, ter aquela que o completaria em todos os sentidos, onde de dois se faria um, concepção de amor que supõem uma relação sem nada faltar. Para o autor, o desejo e amor teriam que caber dentro de uma única relação, e quando isso não acontece a culpa seria sempre da sociedade. Porque para ele, Deus havia concebido o homem bom, mas a sociedade seria a culpada por transformá-lo e arrastá-lo para os vícios.

Almeida Garrett tenta encobrir o fato de que o homem nunca está feliz, porque sempre terá que tomar posições, terá que fazer escolhas, e com isso perder alguma coisa. O autor tenta encobrir este sintoma de suas personagens (Vasco, o Bispo assim como o de Carlos de Viagens na Minha Terra) que também é dele. E a única maneira de se proteger seria culpando esta sociedade para não se deparar com as suas próprias castrações.

A constatação de que no amor jamais poderia se formar Um, o traz para a condição de indigno, aleijão, pois prefere acreditar que a culpa seja sua a aceitar a idéia de que o ser seja imperfeito, e que por mais que exista amor, de dois não se faria um. Por isso culpa sempre a sociedade e o mundo.

É neste ponto que Garrett se aproxima da teoria de Rousseau, construindo a ilusão de que todo o sofrimento vem da civilização. Para o autor, o sexual só se realizaria pela via do amor. Na obra aperece bem claro a realização através de Vasco e seu tão sonhado casamento com Gertrudinhas. Uma segunda via aparece através do Bispo, que por sua condição de bispo, seqüestra Guiomar no passado e no presente repete o mesmo ato impuro com Aninhas. O Bispo não vê outra opção para se posicionar diante do desejo a não ser cometendo o ato indigno (do sequestro). Percebemos o desejo visto como crime, cercado de indignidade quando fora do matrimônio.

Em O Arco de Sant’Ana,  o autor mistifica o passado e o futuro, como se quisesse conservar algo de puro que ficou no passado, tempo em que a religião não era uma vasta barataria. Era uma religião que, segundo ele, promovia a harmonia entre o povo e a própria religião. Espera que no futuro venha o reino espiritual,simbolizado pelo mito do cavaleiro da Mancha, D. Quixote.

É a partir das luzes da religião que o autor criticava toda esta valorização de uma vida voltada unicamente para os gozos e os bens materiais, representados pelo cavaleiro Sancho Pança. Por esta razão o autor defendia os valores cristãos e olhava com maus olhos para esta nova organização de sociedade que estava surgindo. Via o passado como fonte de vida, como um tempo em que os verdadeiros valores ainda eram respeitados, um passado que  guardava as memórias da Nação.

Não podemos esquecer que o momento em que o autor escrevia seu livro, Portugal e o regime constitucional passavam por um período de crise. Costa Cabral afligia o povo com as suas tiranias. Mesmo o regime constitucional sendo um regime fechado, que via  a necessidade de eleger um representante para o seu povo, ainda sim, Garrett era a favor deste sistema.

 

A crítica ao regime vigente e o Social :

 

O autor criticava duramente os rumos que este regime, o de Costa Cabral, estava tomando. E para demonstrar as falhas deste sistema através da sua obra, o autor critica a “falsa posição” das personagens Martim e Juliano. Por isso, O Arco de Sant’Ana  vem criticar aqueles que deveriam perceber os anseios do povo, mas não percebem por estarem em “falsas posições”, representantes do povo que se deixavam levar pela ganância, pelo mundo de Sancho Pança.

Para o autor a ganância é um vicio do mundo que arrasta o homem para o seu lado pecaminoso. Por este motivo, Garrett tenta construir o mundo através da religião, utilizando as armas do Cristianismo para combater estes vícios. Ele acredita que a religião irá abonar o mal - estar da civilização, ou seja, este mal - estar social e amoroso que é proveniente da sociedade e não do homem.

Não é difícil de entender o narrador quando mistifica o passado com as suas constantes lembranças: ao falar da religião que servia de harmonia e nos tempos de hoje virou alvo de baratarias. Quando fala do passeio público como o lugar que deveria servir para o encontro do povo e que hoje se tornou um lugar para troca de moedas. Quando associa os burgueses do passado a presas raras, que no século XIX tornaram-se Barões pançudos. Vale lembrar que, no século XIX, durante o reinando de D. Maria II, mais precisamente entre 1834 e 1853, foram concedidos 242 títulos de barões e viscondes. O autor criticava esses títulos recebidos, porque, segundo ele, eram homens que se envergonhavam de suas origens.

O segundo tomo do livro foi concluído em 1849 para ser lançado em 1850. Mais precisamente a partir do capítulo XIX, o autor retoma  a sua luta contra a tirania afirmando que a verdadeira religião do Cristianismo não tinha sido posta em prática, e que, se a verdadeira fé tivesse sido praticada, o mundo não teria virado esta vasta barataria.

 

 

 

 

“E tudo isto porquê, leitor amigo? Porque ameacei com a ponta do azorrague de el-rei D. Pedro as pretensões absurdas e anti-evangélicas de certo agiotas do catolicismo, que abusaram da boa fé da presente geração e pretenderam granjear em proveito seu, de suas pessoas, o espírito mais religioso da época.” (Garrett, s.d.:82)

 

 

 

O Arco de Sant’Ana  trata de uma luta pela liberdade através da religião. No capítulo XX Guiomar, a Bruxa de Gaia, revela a Vasco que é sua mãe e que ele foi fruto de um ato impuro cometido pelo Bispo. Mais uma vez o desejo sexual concebido como ato impuro fora do casamento. O autor utiliza a fala de sua personagem Guiomar para criticar o Bispo, o rei e o próprio povo. Ela diz a Vasco que os interesses são sempre privados e que ninguém visava ao bem do povo. Na verdade, a personagem quer dizer que o mundo é governado pela  lei de Sancho Pança, a lei do materialismo e da ganância.

Estamos diante de mais uma das contradições de Garrett, mais um de seus vai-e-vens na obra. Ora o autor acredita que somente o rei poderia ser o intérprete deste povo oprimido, ora acredita que até mesmo este rei estaria sendo guiado pela lei de Sancho Pança.

Para o narrador, Vasco seria um vencedor por estar à frente de uma causa justa, ainda que fosse um jovem ignorante diante dos conhecimentos políticos. Mas nem a certeza da vitória abrandava o jovem coração que pressentia  a melancolia ao final da guerra. Como se a personagem fosse capaz de sentir a melancolia depois do triunfo. Isso porque sabemos que, mesmo diante de causas justas, nem sempre conseguimos tudo. É como se algo ainda ficasse faltando para acabar com todo o mal - estar do homem.

No capítulo XXI, temos uma personagem confusa diante das tomadas de posição que o mundo a impõe. Vasco diante de um pai: Pai Guterres, que o criou pelas leis do Cristianismo, e o seu verdadeiro pai que ocupava uma falsa posição, o Bispo. A personagem quer lutar em favor da liberdade, mas ao fazer isto estaria utilizando as armas do Cristianismo, da verdadeira religião. E, ao lutar pela liberdade, estaria ao mesmo tempo se insurgindo contra este falso Bispo, que era seu verdadeiro pai.

Através da ironia, o autor deixa claro que há uma incerteza, um oco em todas manifestações populares. Mostra o povo lutando ao lado de Vasco sem saber na verdade porque lutam, como se fossem uma massa una, guiados sem saber para qual caminho. Mais uma das digressões do autor: quando entra em contradição afirmando que este mesmo povo uno precisava  de alguém que guiasse, de um representante da burguesia. No romance, este representante é Vasco. Temos uma idealização do autor ao apresentar um povo de interesses únicos, como se não existisse a diferença de interesses.

Por esta razão, o autor defendia, em seu artigo O 24 de Agosto, que a nação poderia reclamar os seus direitos e usar de todos os meios justos para se manter e restabelecer na posse deles, desde que não fosse o povo em massa e sem freios. Mas sim, através de um representante eleito por eles, como se fosse um governo provisório que acudisse às necessidades imediatas e fizesse convocar as Cortes.

Sabemos que o livro é de ataque às oligarquias do governo Cabralista e de defesa da religião, por isso há nele uma luta contra a tirania. A partir do capítulo XXVII: “Pecados Velhos”, temos toda a historia do mau Bispo, que começava a refletir e a partir daí sentir culpa pelos seus atos, como se a consciência o martelasse como um tribunal julgador do bem. Garrett viabiliza a idéia de que por mais que o homem não tenha que prestar contas à sociedade terá que prestar contas a sua consciência, como se na verdadeira essência do homem tivesse algo que o permitisse perceber o que era certo e errado. Garrett apresenta  um homem decaído, que foi arrastado pelo mal e que depois se corrói de culpa, vítima do social e de si mesmo.

Permanece a idéia de que a culpa é do social, que traz consigo as forças terríveis que destroem o que o homem tem de bom. Muitas vezes, este homem consegue ou não se regenerar. São as duas visões do Romantismo, um bem ou um mal absoluto que vence ao final.

Vasco, graças à sua verdadeira educação cristã, consegue resistir aos males do social, diferente de Carlos (personagem de Viagens na Minha Terra), que, mesmo com toda a educação cristã, não consegue resistir às forças do social.

É por volta de 1845 que, segundo Gomes de Amorim, amigo do autor, Garrett conhece  Rosa Montufar Infante, a Viscondessa da Luz, esposa de um liberal que lutara na revolução de 1832 ao lado do Autor.

Um romance, que se tornara público e imortalizado em um livro de poemas chamado: Folhas Caídas, publicado em 1853. No capítulo XXVIII do romance aqui citado, o narrador descreve Ester como a mulher mais bela, segundo Gomes de Amorim, Garrett estaria se inspirando em sua amada,Viscondessa da Luz.

Em O Arco de Sant’Ana  é travada uma implícita batalha contra o desejo sexual. Um desejo que o autor chama de demônio negro. O desejo sexual aparece como crime, que vem para atormentar a vida do homem bom.

A questão política do livro, de luta contra os tiranos, ganha uma solução de conciliação através do plano familiar. Lembramos que Vasco luta contra a tirania, com as armas da verdadeira religião. E ao fazer isso estaria lutando contra este falso Bispo que é seu pai.

Garrett tenta resolver um conflito social e político, que é a guerra civil, com a voz do coração. É como se a personagem Vasco lutasse para salvar seu pai da ignorância e das trevas do mal que tentavam arrastar o homem. Vale lembrar que o século XIX foi o século de culto à Virgem Maria, aquela que defendia e protegia os direitos civis, a liberdade, o povo oprimido, o lado bom do ser e as esposas do demônio negro. Por isso, o culto à santa foi estendido para os colégios religiosos da época.

Garrett justifica através de Vasco a luta do povo pela liberdade, que para ele se faz com as armas da religião e da razão. Para o autor, a religião e a razão teriam que caminhar unidas. É uma liberdade inspirada no evangelho. Por esta razão, Vasco luta para que não aconteça com Aninhas o mesmo que aconteceu com Guiomar. Uma vez aliciada, mesmo que sem culpa, jamais poderia retornar ao lugar que a sociedade do século XIX reservava para as boas esposas. Com isso, não restaria outro lugar a não ser o de meretriz. Para o autor o conflito social de Vasco é dissolvido no momento em que o filho vê no pai a figura de pastor e não de tirano.

Garrett se enquadra nos valores românticos à medida que defende os valores morais burgueses. Ao evocar o rei D.Pedro I para fazer a justiça contra os tiranos,não é somente uma ação de quem veio em nome da justiça, mas também de alguém que veio em defesa dos bons costumes.

A consciência do mau Bispo começava a pesar, como se fosse um tribunal o julgando. É neste momento que ele resolve soltar Aninhas. Ao rei, caberia perdoar ou não este falso Bispo. Garrett deixa escapar pelas entrelinhas que perdoar este mau homem, seria a oportunidade ideal para que ele se regenerasse deste lado mal que o social afetou. E ao libertar Aninhas é como se a razão, a consciência que o assolava a todo instante estivesse falado mais alto.

Para o autor a razão poderá vencer o lado indigno do ser. Na verdade, é a batalha do Cristianismo contra o demônio negro que tanto atormentava o homem, ou seja, o desejo sexual que aparece como ato criminoso fora do casamento.

Aninhas é como se fosse o modelo de virtude esperado por aquela sociedade. A personagem é enaltecida por não ter se deixado levar por este lado mau do homem, pelos lascivos do Bispo. Ao contrário de Ester, a Bruxa de Gaia, que apesar de ter sido vítima de um crime, ainda sim teria que prestar contas à sociedade, porque de certo modo ela teria contribuído para o lado mau à medida que se deixou arrastar sem contestar.

É como se a personagem se permitisse provar àquela situação de desconforto por alguns instantes. Na visão do autor, este ato não teria correção, por isso Ester jamais poderia retornar ao lugar de destaque daquela sociedade, reservado somente às boas esposas.

Garrett finaliza sua obra ironizando que, eliminado as tiranias, a cidade agora poderia viver um tempo de concórdia, “pelo menos por alguns anos”. Porque para o autor, a causa do mal - estar na terra não decorria somente por causa da tirania, mas de  muitas outras coisas, como o desejo e os males do social que atormentavam o homem bom.O autor ironiza para mostrar o quanto o social lhe incomodava. Tenta a todo instante uma conciliação harmoniosa da razão e do coração, espírito e carne, prazer e virtude.

Contudo, O Arco de Sant’Ana  é uma obra que se insere nos grandes modelos que vigoravam no século XIX, onde os bons são exaltados e os maus castigados ao fim do romance, embora existissem também modelos nos quais os maus eram exaltados e os bons castigados. O ponto em comum desses romances era justamente a organização cristã dos fatos que sempre perpetuava as obras do século XIX.

Garrett não deixa de mistificar e acreditar numa sociedade sem erros, sem mentiras, sem discórdias, ou seja, sem mal - estar. Na vertente amorosa, o autor lutava contra o desejo sexual que tanto o incomodava, acreditava numa relação plena, em que  o desejo e o amor coubessem dentro do matrimônio.

 

 

 

 

 

 

 

CONCLUSÃO

 

 

Muito da vida pessoal do autor se confunde com a vida de suas personagens. Vamos  pensar em Vasco, personagem de O Arco de Sant’Ana, um jovem que fora criado para seguir a carreira eclesiástica, mas a abandona para lutar em nome de uma justiça, de um bem para todos. Não seria tão surpreendente se analisássemos o percurso biográfico de Garrett e encontrássemos semelhanças.

João Batista da Silva Leitão, o Garrett, nascido no Porto, típico de uma família burguesa, foi criado dentro das virtudes religiosas e civis. Em 1809 quando as tropas francesas ameaçavam o Porto, Garrett e sua família se mudam para ilha Terceira.

 A educação do jovem passou a ser assumida por um tio já idoso, representante mais ousado do catolicismo, que aconselhava ao sobrinho a intensa vigilância contra as forças do Mal.

Em 1816, contrariando os votos de uma carreira eclesiástica, Garrett contraria toda  expectativa de seu tio ao ingressar na Universidade de Coimbra para estudar direito. E foi em Coimbra, a partir de suas intensas leituras do autêntico Cristianismo visto à luz de Chateaubriand, mesclado ao sentimentalismo de Rousseau que Garrett vai misturando sua religiosidade católica a um desejo ardente de justiça baseada nas Luzes da Razão, ou seja,  da religião.

Portanto, é baseado nesta concepção de Rousseau que o autor encontra as respostas para o lado pecaminoso do homem, que para ambos estaria ligado ao social, a má constituição da sociedade. Por isso que Garrett e Vasco lutam contra os falsos governantes, aqueles que se deixaram levar pelo lado mal, pela ganância.

Na Revolução de 1820, Garrett, ligado às idéias liberais, demonstrou todo o seu desejo de lutar por uma sociedade melhor, sem tiranias.

Em 1836, ao se entregar à equipe de um jornal: O Português Constitucional, um jornal que atacava os membros do ministério, o autor deixava claro o quanto o furor pela liberdade perpetuava sua vida. Idealizava uma liberdade com leis, um povo sem moralidades e com religião. Vale ressaltar que em 1842, durante a vigência do governo Costa Cabral, Garrett foi uma das vozes que mais acusavam as prepotências deste governo.

Consequentemente, é através de suas obras, entre elas, O Arco de Sant’Ana, e neste emaranhado de fatos vividos que o autor tenta recordar o espírito nacional que ia se perdendo, para demonstrar toda sua insatisfação perante o regime vigente. O autor queria encontrar uma conciliação harmoniosa entre a razão e o coração, espírito e carne, prazer e virtude.

E assim, é o nosso Vasco, um jovem criado dentro dos preceitos cristãos, que abandona uma carreira eclesiástica em favor de uma causa popular.

O Arco de Sant’Ana,  é uma tentativa de evocar os valores cristãos contra a tirania dos governantes e contra o desejo sexual visto como indigno fora do casamento. É uma obra que defende os valores burgueses, que acredita numa sociedade em que a mulher só caberia se fosse no lugar de esposa, que recrimina o sexual fora do casamento, que crê na religião como sinônimo de liberdade e que defende uma educação pautada nas leis do evangelho.

Almeida Garrett deixa explícito em sua obra o quanto crê na idéia burguesa de ter um representante letrado e da burguesia para ordenar e atender aos anseios do povo. Ainda que fosse um povo iluminado pelas leis do evangelho, o autor defende a idéia demonstrando que o povo precisava de alguém que o orientasse. Porque sozinho, seria somente uma massa facilmente levada sem saber para aonde.

Ao final da obra, Garrett mitifica a ordem social estabelecida, após ter sido eliminada a tirania. A cidade então viveria um tempo de concórdias plenas. O autor sonha com a possibilidade de viver numa sociedade sem erros, numa civilização sem mal - estar.

A ironia ao final da obra nos remete à questão social que tanto incomodava. Não é à toa que Vasco precede a melancolia ao final da batalha contra a tirania e o mal - estar. Assim é o percurso do nosso autor, que se colocou diante das causas liberais, porque acreditava num bem para todos. Por esta razão, lutou a favor de uma liberdade, lutou a favor dos direitos civis, de imprensa, defendeu a verdadeira educação pautada no catolicismo, combatia os falsos representantes do povo entre outros. Apesar de estar à frente de uma causa justa, Garrett também sentia que o triunfo viria junto com a melancolia e o desengano, uma melancolia que o magoava por sentir o imenso desprezo generalizado do povo diante dos valores morais, civis e culturais que pareciam significar a morte da Nação.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

1) FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

 

3) DAVID, Sérgio Nazar. Garrett e o Medievalismo. In: O paradoxo do desejo. O masoquismo moral nas literaturas portuguesa e brasileira (1829-1899) (Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001)

 

4) GARRETT, Almeida. O Arco de Sant’Ana. Porto. Léllo & Irmão, s.d.

 

5)______, O 24 de Agosto. In: Liberalismo, Socialismo, Republicanismo: Antologia do pensamento português: Introd.de Joel Serrão. Lisboa: Livros Horizonte, 1979.

 

2) MATTOSO, José. História de Portugal: Evolução da Sociedade em Portugal: a Lenta Complexa Afirmação de uma Civilização Burguesa. Lisboa: Estampa, 1998.

 

6) MONTEIRO, Ofélia Paiva. O essencial sobre Almeida Garrett. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001.

 

BIOGRAFIA:

 

DAVID, Sérgio Nazar. Almeida Garrett. In: RECTOR, Monica & CLARK, Fred. Portuguese Writers. USA: Bruccoli Clark Layman, 2003.

 

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