O NOVO CÓDIGO FLORESTAL E AS ÁREAS DE PROTEÇÃO PERMANTE SITUADAS EM ZONAS URBANAS

Leandro Silva Santos[1]

RESUMO

Este artigo visa apresentar uma análise de um conflito fundiário urbano muito comum nas grandes cidades brasileiras: aquele que envolve o crescimento das cidades e as suas necessárias intervenções urbanísticas, e a proteção das áreas de proteção permanentes situadas em zonas urbanas e adjacências. Visando salvaguardar o meio ambiente e os recursos naturais sensíveis existentes nas zonas urbanas, o legislador instituiu no ordenamento jurídico, entre outros, uma área especialmente protegida, onde é proibido construir, plantar ou explorar atividade econômica, dando o nome de área de proteção permanente. Nesse passo, nas áreas de preservação permanente, em tese, não deveria haver ocupação humana, contudo, essa não é a realidade constatada em muitas cidades brasileiras. Em função disso, surge a necessidade de um estudo por meio de uma pesquisa exploratória das hipóteses legais permitidas no novo Código Florestal acerca da intervenção em áreas de preservação permanente objetivando avaliar até que ponto as mudanças legais do novo marco legal impactam as APPs urbanas.

Palavras-chave: Intervenção em áreas de proteção permanente; Áreas de Proteção permanente; Gestão urbana; Código Florestal. Meio ambiente.

  1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, os fluxos migratórios populacionais para as áreas urbanas brasileiras aumentaram exponencialmente, o que fez também com que novas demandas sociais e ambientais apareceram nesses espaços.

Muitos espaços urbanos considerados como ambientalmente sensíveis e passíveis de proteção por muitos anos foram ignorados na gestão e planejamento dos municípios brasileiros. Nesse contexto, é comum hoje que em diversos municí­pios brasileiros existam áreas de preservação permanentes situadas dentro ou ao redor de parcelamentos urbanos ou ocupações humanas tipicamente urbanas margeando as zonas rurais.

De início, cumpre destacar que a relação entre APPs e zonas urbanas nunca foi harmoniosa. Isso se deve ao fato de originalmente o antigo código florestal, a Lei 4.771/65, focar apenas na disciplina do uso e ocupação dos espaços rurais. Coube a nova legislação florestal evidenciar e regular os conflitos entre os mais diversos agentes e poderes, além de demonstrar que os problemas e a gestão de recursos ambientais em áreas urbanas e rurais estão cada vez mais próximos e tem que serem pensados de forma única.

A Lei 12.651/12 foi fortemente acusada de afrouxar as regras de proteção às florestas, especialmente no que tange às Áreas de Proteção Ambiental e Reserva Legal. Além de instituir algumas alterações nas situações de áreas classificadas como APPs que supostamente favoreceram a interesses privados ao invés do público. O certo é que a citada norma trouxe mo­dificações no manejo e no regime de proteção desses espaços territoriais especialmente protegidos.

Coube a este trabalho destacar as mudanças ocorridas no novo Código Florestal quanto as hipóteses de intervenção urbanística que alteraram alguns aspectos de proteção das APPs então estabelecidos, passando a autorizar a intervenção parcial ou total em APPs para casos de regularização fundiária, até para construção de arenas esportivas para grandes jogos, dentre outras.

Nesse sentido o presente artigo visa conhecer as alterações na sistemática da proteção legal das áreas de preserva­ção permanente e avaliar as inovações contidas no novo Código Florestal. Analisando as referidas alterações, estas linhas buscarão demonstrar os principais reflexos do novo Código Florestal e legislação extravagante em relação à proteção de APPs em espaços urbanos.

 

  1.  AREA DE PROTEÇÃO PERMANENTE NO NOVO CÓDIGO FLORESTAL

As áreas de proteção permanente são espaços territoriais especialmente protegidos pela Constituição Federal, que, conforme dispõe seu artigo 225, §1º, inciso III, para assegurar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbiu ao Poder Público o dever de definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, ‘‘sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção’’. (BRASIL, 1988)

Em matéria infraconstitucional cabe ao novo Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/12),  regular e estabelecer normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de preservação permanente e as áreas de reserva legal, dentre outras, tendo sempre como objetivo o desenvolvimento sustentável.

Bem verdade que o termo “Área de Proteção Permanente” é relativamente novo e somente surgiu no ordenamento jurídico nacional no início deste século através da Medida Provisória 1.956-50/2000 (de 26/05/2000), que inseriu seu conceito no antigo código florestal (art. 1º, § 2º, II na Lei nº 4.771/1965), tendo sofrido pouca modificação até então.

A Lei 12.651/2012 (art. 3°, II,) atual Código Florestal Brasileiro, conceitua área de preservação permanente como “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. (BRASIL, 2012)

Paulo Affonso Leme Machado explica que as áreas de preservação permanente, possuem pelo menos, seis características:

  1. é uma área e não mais uma floresta (no Código Florestal de 1965, com a redação original, tratava-se de “floresta de preservação permanente”). A área pode ou não estar coberta por vegetação nativa, podendo ser coberta por vegetação exótica; b) não é uma área qualquer, mas uma “área protegida”, proibindo-se “qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção” (Art. 225, § 1º, III, da Constituição); c) a área é protegida de forma “permanente”, isto é, não é uma proteção descontínua, temporária ou com interrupções; d) é uma área protegida, com funções ambientais específicas e diferenciadas, apontadas na Lei n. 12.651/2012: funções ambientais de preservação abrangendo os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade; função de facilitar o fluxo gênico de fauna e de flora; proteção do solo, evitando a sua erosão e conservando a sua fertilidade; finalidade de assegurar o bem-estar das populações humanas; e) a vegetação situada em Área de Preservação Permanente deverá ser mantida pelo proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado; e f) a supressão indevida da vegetação na APP obriga o proprietário da área, o possuidor ou o ocupante, a qualquer título, a recompor a vegetação, e essa obrigação tem natureza real. Essa obrigação transmite se ao sucessor, em caso de transferência da propriedade ou da posse do imóvel rural. (MACHADO, 2013, p. 16).

 

Somente a partir da promulgação do novo código se consolidou o entendimento de que as Áreas de Preservação Permanente podem estar inseridas tanto na zona urbana quanto na rural possuem as mesmas faixas limítrofes legalmente estipuladas e merecem a mesma proteção.

Importante assinalar que as APPs não têm apenas a função de preservar a vegetação ou a biodiversidade, mas possuem uma função ambiental muito mais abrangente, voltada, em última instância, ‘‘a proteger espaços de relevante importância para a conservação da qualidade ambiental como a estabilidade geológica, a proteção do solo e assim assegurar o bem estar das populações humanas’’ (SCHAFFER et al, 2011, p. 09).

As Áreas de Proteção Permanente podem ser criadas por vontade do legislador ou por ato do poder público. O primeiro tipo pode ser encontrado no art. 4° da Lei n. 12.651, que considera Área de Preservação Permanente, aquelas áreas situadas em zonas rurais ou urbanas, com as seguintes características:

I - as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de:

a) 30 metros, para os cursos d’água de menos de 10 metros de largura;

b) 50 metros, para os cursos d’água que tenham de 10 a 50 metros de largura;

c) 100 metros, para os cursos d’água que tenham de 50 a 200 metros de largura;

d) 200 metros, para os cursos d’água que tenham de 200 a 600 metros de largura;

e) 500 metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 metros;

II - as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima de:

a) 100 metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d’água com até 20 hectares de superfície, cuja faixa marginal será de 50 metros;

b) 30 metros, em zonas urbanas;

III - as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento;

IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros; 

V - as encostas ou partes destas com declividade superior a 45°, equivalente a 100% (cem por cento) na linha de maior declive;

VI - as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;

VII - os manguezais, em toda a sua extensão;

VIII - as bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais;

IX - no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 (cem) metros e inclinação média maior que 25°, as áreas delimitadas a partir da curva de nível correspondente a 2/3 (dois terços) da altura mínima da elevação sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado por planície ou espelho d’água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do ponto de sela mais próximo da elevação;

X - as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação;

XI - em veredas, a faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de 50 (cinquenta) metros, a partir do espaço permanentemente brejoso e encharcado.  (BRASIL, 2012).

 

O segundo tipo de APPs são criados por ato do Poder Público e tem relação com a finalidade das mesmas. Assim, nos termos do art. 6° da Lei 12.651/2012, pode também ser considerada como Área de Preservação Permanente, quando declarada pelo Poder Público de interesse social, áreas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a uma ou mais das seguintes finalidades:

I - conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra e de rocha; II - proteger as restingas ou veredas; III - proteger várzeas; IV – abrigar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção; V - proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico, cultural ou histórico; VI - formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias; VII - assegurar condições de bem-estar público; VIII - auxiliar a defesa do território nacional, a critério das autoridades militares; IX - proteger áreas úmidas, especialmente as de importância internacional. (BRASIL, 2012).

As APPs instituídas por imposição legal têm a sua manutenção arcada pelo proprietário do imóvel que, não obstante ter assegurado o direito de real de propriedade sobre o seu imóvel (usar, gozar, dispor, etc), este só lhe é realmente garantido pela Constituição Federal de 1988 a partir do momento em que é respeitada a função social da propriedade, sendo uma das condicionantes para a garantia da função social da propriedade a sua sustentabilidade ambiental (art. 186, CF 1988).

De acordo com Haroldo Celso de Assunção (2013, p. 78), ‘‘as áreas de preservação permanente representam indubitavelmente a concretização da função socioambiental da propriedade’’.

Por outro lado, no caso das APPs criadas na forma do artigo 6º da Lei 12.651/2012, se constituída em área de domínio privado, é passível de desapropriação e consequente transferência da propriedade para o domínio público, com geração do dever de indenizar o proprietário expropriado pelo prejuízo em seu exercício de posse.

De todo modo, o caput do art. 4º da Lei 12.651/12 é claro em estabelecer que considera área de preservação permanente (APP), áreas em zonas rurais ou urbanas, dentro das faixas e situações ali descritas, salvo as exceções previstas no próprio Código Florestal.

Tendo ocorrido supressão de vegetação, situada em área de preservação permanente, o proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, é obrigado a promover a recomposição da vegetação, independentemente da sanção criminal, tratando-se de obrigação de natureza real, sendo transmitida inclusive ao sucessor no caso de transferência de domínio ou posse de imóvel (art. 7°, §1° da Lei 12.651/12).

Desta feita, em regra, as faixas de área de APPs são as mesmas, independente se em zona urbana ou rural; não é possível a supressão de vegetação em áreas de preservação permanente; poluiu, suprimiu, é obrigado a recompor, além da aplicação de multa e sanção penal. Não por outro motivo ‘‘a este espaço protegido foi dado o nome de área de preservação permanente e não de preservação provisória’’ (FIGUEIREDO, 2010, p. 230).

 

  1. DA POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO EM APPs

A possibilidade de intervenção em Área de Proteção Permanente, entretanto, não é uma inovação do novo Código Florestal (Lei 12.651/12), uma vez que a legislação anterior já tratava a questão possibilitando a intervenção em casos de decreto de utilidade pública, de interesse social e as atividades consideradas eventuais ou de baixo impacto ambiental.

Entretanto, respeitadas as similaridades existentes, deve-se logo esclarecer que a grande diferença entre os institutos da Área de Proteção Permanente instituídos pela lei 4.771/65 e pelo novo Código Florestal está na abrangência da proteção de cada um.  A Lei 4.771/65 em nada se referia às APPs em áreas urbanas, menos ainda à necessidade e forma da sua proteção.

Nos moldes da antiga lei, eram consideradas de preservação permanente apenas as florestas e demais formas de vegetação natural, tais como: ao redor de cursos d’água, lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais; no topo de morros, montes, mon­tanhas e serras; nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; entre outras.

Conforme a antiga legislação florestal (art. 3º, §1º, da Lei 4.771/65), a supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente só seria admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando necessária à execução de obras de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social.

O antigo código florestal (Lei 4.771/65), no seu artigo 4º, determinava que a supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente, só poderia ser autorizada em casos de utilidade pública ou interesse social devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistisse comprovação de falta de alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto.

Em síntese, além de exigir o enquadramento da obra ou atividade em alguma das situações definidas como utilidade pública ou interesse social, demandava-se, ainda, a comprovação de inexistência de alternativa técnica ou locacional para que houvesse autorização para supressão total ou parcial em áreas declaradas como área de APP.

O novo Código Florestal (Lei 12.651/12) alterou alguns aspectos do regime de proteção das APPs, especialmente quanto às hipóteses classificadas como casos de utilidade pública e interesse social.

Estas modificações repercutiram especialmente na proteção e conservação de áreas de preservação permanente situadas no espaço urbano, uma vez que tais áreas, hoje já densamente povoadas e sofrendo pressões por todos os lados, até então, encontravam-se num limbo jurídico entre a legislação urbanística, de ocupação do solo e proteção ambiental.

Muito do que outrora era considerado requisito essencial presente em todos os casos de intervenção em APPs, seja em caso de uti­lidade pública ou de interesse social, a partir da promulgação do novo Código Florestal (Lei 12.651/12) passou a ser a exceção, adstrita apenas a casos excepcionais.

As constantes mudanças sobre a legislação aplicada às APPs, desde a Constituição e atualmente capitaneadas pelo novo Código Florestal, trouxeram importantes alterações no que tange a proteção e a autorização de supressão de APPs, sejam em áreas urbanas ou rurais.

Cabe destacar que o principal reflexo do novo Código Florestal nas APPs situadas em zonas ur­banas não se refere à diminuição ou aumento das faixas de APPs e sim das alterações no procedimento de intervenção em APPs nas hipóteses de utilidade pública e de interesse social.

Embora regulados pela mesma lei e possuírem os institutos da intervenção em APPs de zona urbana e rural semelhanças que muito lhes aproximam, estes institutos jurídicos possuem particularidades muito diferentes e específicas, fazendo com que cada uma atinja de forma singular as APPs urbanas quando da sua aplicação.

Merecerá destaque e será o objeto principal deste artigo a análise das inovações trazidas pelo novo Código Florestal e legislação extravagante e seus reflexos em Áreas Urbanas de Proteção Permanentes, mormente, em projetos de regularização fundiária em áreas urbanas consolidadas, para execução de obras esportivas e de urbanização em áreas de “interesse social”, além da possibilidade de supressão de vegetação nativa para áreas enquadradas como de “utilidade pública”.

 

 

  1. DAS INTERVENÇÕES EM APPS URBANAS NO NOVO CÓDIGO FLORESTAL

 

O novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), no que se refere às hipóteses consideradas de utilidade pública e de interesse social para fins de intervenção em área de Área de Proteção Permanente - APP definiu que:

Art. 3º. Para os efeitos desta Lei, entende-se por:

[...]

VIII - utilidade pública:

a) as atividades de segurança nacional e proteção sanitária;

b) as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos Municípios, saneamento, gestão de resíduos, energia, telecomunicações, radiodifusão, instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais, bem como mineração, exceto, neste último caso, a extração de areia, argila, saibro e cascalho;

c) atividades e obras de defesa civil;

d) atividades que comprovadamente proporcionem melhorias na proteção das funções ambientais referidas no inciso II deste artigo;

e) outras atividades similares devidamente caracteri­zadas e motivadas em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, definidas em ato do Chefe do Poder Executivo federal;

 

IX - interesse social:

a) as atividades imprescindíveis à proteção da integrida­de da vegetação nativa, tais como prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasoras e proteção de plantios com espécies nativas;

b) a exploração agroflorestal sustentável praticada na pe­quena propriedade ou posse rural familiar ou por povos e comunidades tradicionais, desde que não descaracterize a cobertura vegetal existente e não prejudique a função ambiental da área;

c) a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao ar livre em áreas urbanas e rurais consolidadas, observadas as condições estabelecidas nesta Lei;

d) a regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas, observadas as condições estabelecidas na Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009;

e) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e de efluentes tratados para projetos cujos recursos hídricos são partes integrantes e essenciais da atividade;

f) as atividades de pesquisa e extração de areia, argila, sai­bro e cascalho, outorgadas pela autoridade competente;

g) outras atividades similares devidamente caracteri­zadas e motivadas em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional à atividade proposta, definidas em ato do Chefe do Poder Executivo federal(...)”.(BRASIL 2012)

Sobre as atuais regras para intervenção urbanística em APP, impõe transcrever o artigo 8º da Lei 12.651/2012:

Art. 8º. A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas nesta Lei.

§ 1º. A supressão de vegetação nativa protetora de nas­centes, dunas e restingas somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública.

§ 2º. A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente de que tratam os incisos VI e VII do caput do art. 4º poderá ser autorizada, excepcionalmente, em locais onde a função ecológica do manguezal esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda.

§ 3º. É dispensada a autorização do órgão ambiental competente para a execução, em caráter de urgência, de atividades de segurança nacional e obras de interesse da defesa civil destinadas à prevenção e mitigação de acidentes em áreas urbanas.

§ 4º Não haverá, em qualquer hipótese, direito à re­gularização de futuras intervenções ou supressões de vegetação nativa, além das previstas nesta Lei. (BRASIL 2012)

Conforme o artigo 8º do novo Código Florestal, a possibilidade de intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública ou de interesse social. A nova lei inovou substancialmente ao trazer importantes modificações no que tange a intervenção em APPs, tanto no que diz respeito a sua caracterização individualizada, como no que se refere aos procedimentos e condicionantes.

 

  1. INTERVENÇÕES EM APPS URBANAS PARA FINS DE UTILIDADE PÚBLICA

Dentre as principais inovações do novo Código Florestal nos casos de utilidade pública com reflexos diretos nas Áreas de Proteção Permanentes urbanas, destacam-se as situações previstas na alínea “b” do inciso VIII do art. 3º, que são as seguintes:

(1) “as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos Municípios, saneamento, gestão de resíduos, energia, telecomunicações, radiodifusão (...)” e (2) “instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacio­nais ou internacionais”. (BRASIL 2012)

As demais situações previstas no inciso VIII do art. 3º não serão abordadas porque mantêm o mesmo teor da legislação anterior, não trazendo alterações para as APPs em áreas urbanas.

Ao permitir que áreas declaradas como de “utilidade pública” possam ser utilizadas para projetos e obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos mu­nicípios, o novo Código Florestal possibilitou viabilizar a consolidação de todos os tipos de parcelamentos urbanos preteritamente aprovados em municípios com normas urbanísticas pouco protetivas, bem como de loteamentos que não foram totalmente implantados e devidamente fiscalizados, além de propiciar uma expansão imobiliária predatória ao redor das APPs situadas em zona urbana e rural.

Tal exceção deriva em parte do fato de várias atividades de infraestrutura (obras de saneamento, transporte, energia), assim como outras essenciais para o desenvolvimento econômico e social do país, encontrarem-se muitas das vezes sem qualquer alternativa locacional e só serem viáveis e exequentes mediante a intervenção em áreas classificadas como de preservação permanente.

De início, cumpre destacar que a relação entre APPs e zonas urbanas nunca foi harmoniosa. Isso se deve ao fato de originalmente o antigo código florestal, a Lei 4.771/65, focar apenas na disciplina do uso e ocupação dos espaços rurais. O uso e a ocupação do solo urbano, até então, era gerido por normas de natureza urbanística, a exemplo da Lei nº 6.766/1979, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano.

Segundo esta lei, para que um loteamento fosse aprovado não seria necessária a prévia execução do seu projeto de infraestrutura, bastava apresentação de cronograma de execução das obras para que fosse permitindo o seu registro, o desmembramento dos imóveis e sua comercialização.

Nesse contexto, é comum hoje que em diversos municí­pios brasileiros existam áreas de preservação permanentes situadas dentro ou ao redor de parcelamentos urbanos aprovados, comercializados e densamente ocupados, que por sua vez ainda não tiveram sua infraestrutura regularmente implantada. Tudo, claro, com auxílio da inércia ou omissão intencional do poder público em fiscalizar.

Atualmente, dependendo de como o art. 3º, VIII, “b” seja interpretado, os loteadores poderão requerer a implantação, mesmo em APPs ainda intactas, das vias dos parcelamentos urbanos aprovados ao seu redor já registra­dos e ainda não implantados.

Em suma, em casos de loteamento antigos, aprovados em APPs que passaram a ser caracterizadas como de utilidade pública pelo novo Código Florestal, passa a ser autorizada a intervenção para utilização destas áreas para arruamentos, o que, no final das contas, pode ser feito exclusivamente para beneficiar empreendimentos privados que circunvizinham aquela APP, fato gerado e gerador da voraz especulação imobiliária atual, sejam de condomínios de luxo ou de áreas com habitações carentes.

Cabe esclarecer que as intervenções caracterizadas como de “utilidade pública” em APPs urbanas só podem ocorrer em loteamentos considerados irregulares, ou seja, aqueles já registrados e autorizados que descumpriram as normas legais. Importante não confundir a situação ora exposta com os loteamentos ilegais ou clandestinos, quais sejam, aqueles que sequer foram aprovados pelo Município. Em tais casos, pela redação do novo Código Florestal, claramente não será possível considerar a área como de utilidade pública apta a autorizar intervenções em APPs.

Por fim, ainda sob o argumento da “utilidade pública”, o novo Código Florestal passou a permitir também a supressão de vegetação nativa protetora de nas­centes, dunas e restingas em Área de Preservação Permanente (art. 8º, § 1º, da Lei 12.651/12), expondo novamente o perigo ao qual estão sujeitos as APPs urbanas, o que inversamente torna as raras e sensíveis áreas ambientais dentro da área urbanas ainda mais vulneráveis e carentes de proteção.

Com relação à inovação da alínea “b” do inciso VIII do art. 3º, qual seja, considerar como utilidade pública a intervenção em APPs para construção de “instalações necessárias à realização de compe­tições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais”, esta foi considerada uma real ferramenta de utilização de uma APP para a satisfação de interesses meramente privados, tudo isso com o rótulo inverídico de que tais intervenções ocorreriam em razão de “utilidade pública”.

Este dispositivo introduzido no novo Código Florestal foi produzido como que sob encomenda para as grandes empresas e os grandes eventos esportivos que o Pais se propôs a receber na segunda década deste século, quais sejam, a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas, ambos de caráter eminentemente privados.

A partir da promulgação do novo Código Florestal em 2012, dois anos antes da Copa e quatro antes da Olimpíada, passou a existir a possibilidade efetiva de utilização de uma APP para a satisfação de interesses meramente privados, tudo isso com o rótulo de que tais intervenções são de “utilidade pública”.

Importante ressaltar também para autorização legal contida no artigo 8º §1º do próprio Código Florestal, que permite em APPs urbanas, sob o argumento de utilidade pública, a intervenção e a supressão de vegetação nativa protetora de nas­centes, dunas e restingas, excepcionalidade normativa que trouxe grande vulnerabilidade a áreas sensíveis dentro ou próximas de centros urbanos, especialmente pela falta de obrigação da apresentação de laudos técnicos que comprovassem a inexistência de outras opções ambientalmente mais viáveis.

Passou-se a permitir, por mais absurdo que pareça, que uma APP pudesse ser utilizada para a instalação de obras de infraestrutura destinadas às instalações neces­sárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais, mesmo que situadas em áreas com vegetação nativa protetora de nas­centes, dunas e restingas, tudo, frise-se, sem a exigência legal de se apresentar qualquer comprovação de inexistência de outra possibilidade locacional ou técnica.

Independente de que as instalações implantadas em APPs fossem futuramente equipamentos públicos ou mesmo privados, se gerassem lucros exclusivamente à sociedade ou aos seus investidores, ficou a forte sensação de que o país abdicou da proteção de áreas urbanas de proteção permanente, de ambientes únicos e sensíveis para a fauna e flora, em detrimento de interesses privados.

Em resumo, trataram-se de significativas e perigosas ino­vações do novo Código Florestal no que tange a autorização para intervenção em áreas urbanas de proteção permanentes para fins de utilidade pública, sem qualquer previsão equivalente na legislação anterior, cujos danos ambientais advindos ainda deverão ser sentidos e devidamente avaliados por muitos anos.

Entretanto, desde março de 2018, por decisão do plenário do STF finalmente algumas coisas começaram a mudar, a Corte decidiu por maioria declarar a inconstitucionalidade das expressões “gestão de resíduos” e “instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacio­nais ou internacionais”, contidas no art. 3º, VIII, b, da Lei 12.651/2012 (Código Florestal), deixando estas desde então de serem hipóteses de utilidade pública para efeito de permitir a intervenções em APPs.

Além disso, o julgado condicionou a permissão para intervenção em APPs obrigatoriamente à comprovação de ausência de alternativa técnica e locacional para o projeto, uma exigência legal que já existia e fora suprimida no novo Código Florestal, que volta a ser considerada novamente como imprescindível por determinação do STF.

 

  1. INTERVENÇÕES EM APPS URBANAS PARA FINS INTERESSE SOCIAL

No que se refere às hipóteses de intervenção em APPs urbanas em razão do “interesse social”, possuem maior relevância para este artigo as inovações trazidas nas alíneas “c” e “d” do inciso IX do art. 3º do novo Código Florestal, a seguir transcritas:

c) a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao ar livre em áreas urbanas e rurais consolidadas, observadas as condições estabelecidas nesta Lei;

d) a regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas, observadas as condições estabelecidas na Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009; 

Tal como no tópico anterior, as demais situações previstas no inciso IX do art. 3º não serão detalhadas neste trabalho, seja porque conservaram o teor da legis­lação anterior ou por não afetarem de forma direta APPs em áreas urbanas.

Classificada como de “interesse social”, nos termos da alínea e “c” do inciso IX do art. 3º do novo Código Florestal, a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao ar livre em áreas urbanas consolidadas, se dá muitas vezes para implantação de áreas verdes de domínio público e infraestrutura pública em obras de requalificação e regularização fundiária de áreas já densamente ocupadas, que foram muitas vezes irregularmente loteadas e ocupadas.

A maior novidade trazida no Código Florestal (Lei 12.651/12) sobre este tema foi o alargamento dado a autorização desse tipo de intervenção à todas as modalidades de APPs, nos termos dos §1º e 2º, do seu art. 8º, incluindo a autorização para supressão de vegetação nativa protetora de nas­centes, dunas e restingas.

Ademais, vale realçar que, diferentemente do que ocorria na norma anterior, a partir da promulgação do novo Código Florestal deixou-se de exigir a comprovação de inexistência de alternativa técnica e locacional para os projetos de intervenção em APPs, medida polêmica, contestada judicialmente, muito usada e, finalmente, revogada pelo Plenário do STF em 28/02/2018.

Por outro lado, maior atenção deve-se dar à inovação trazida pelo Novo Código Florestal (Lei 12.651/12), quanto à outra possibilidade de intervenção em APPs urbanas por razão de interesse social, contida na alínea “d”, do inciso IX, do art. 3º, “a regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas”.

Através deste dispositivo o novo Código Florestal classificou como de inte­resse social a regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas. Conforme será evidenciado, tais modificações ao flexi­bilizarem os requisitos, aparentemente deixaram as APPs urbanas ainda mais vulneráveis.

Vale aqui ressaltar que o novo Código Florestal, ao tratar do tema regularização fundiária por interesse social em áreas urbanas consolidadas, remete especificamente a grande parte dos critérios, conceitos e procedimentos ao disposto na Lei nº 11.977/2009 (que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas e dá outras providências).  

A Lei define a regularização fundiária como o conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Como área urbana consolidada, o novo Código Florestal (artigo 3º, XXVI, da Lei 12.651/12) entende que é o de parcela de área urbana com densidade demográfica superior a 50 (cinquenta) habitantes por hectare e malha viária implantada e que tenha, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infra estrutura urbana implantados: a) drenagem de águas pluviais urbanas; b)esgotamento sanitário; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; ou e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos.

Ocorre que, a partir de 11 de julho de 2017, foi promulga a Lei 13.465, que dentre outras coisas passou a dispor sobre a regularização fundiária rural e urbana, revogando e alterando diversos dispositivos sobre o tema até então tutelados pela Lei 11.977/2009.

Desde a promulgação da Lei 13.465/2017, o município poderá admitir a regularização fundiária de interesse social em Áreas de Preservação Permanente ocupadas até a data limite de 22 de dezembro de 2016, alargando sobremaneira o prazo existente que era 31/12/2007.

A Lei 13.465/2017 também instituiu um novo instrumento jurídico de política urbana, que concerne num conjunto de normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (Reurb), a qual abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.

Segundo a lei passou a existir duas novas modalidades de Reurb, o para fins de interesse social (Reurb-S), aplicável ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Público Municipal, e para fins específicos (Reurb-E), aplicável aos núcleos ocupados por população com outra qualificação.

Percebe-se que a regularização fundiária urbana é apontada não apenas como um meio de viabilizar o direito à moradia, mas também de garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos previsto pelo art. 225 da Constituição Federal. “A legislação que permite a regularização fundiária em APP não tem o escopo de fomentar a ocupação dessas áreas, mas de dar uma resposta adequada para a realidade socioambiental das cidades, por meio da intervenção qualificada do poder público com vistas a diminuir o impacto ambiental das ocupações já consolidadas’’ (GONÇALVES, SOUZA, 2012, p.108).

Estes novos dispositivos já são alvo de críticas de diversos grupos como urbanistas e ambientalistas, que alegam serem tais normas formas legais de regularização de áreas nobres incrustradas em APPs urbanas ou rurais, bem como de ser uma nova ferramenta utilizada para alocação de comunidades pobres em áreas distantes dos centros das cidades, uma nova forma de exclusão social.

Outro ponto controverso do novo Código Florestal, com relação à intervenção de APPs por “interesse social”, está na inovação do § 2º do art. 8º, que é a autorização da supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, dunas e restingas, em toda sua extensão, para os casos de execução de obras habitacionais e de urbaniza­ção, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda.

O novo Código Florestal evidenciou com tal artigo o instituto da "Consolidação" de intervenções antrópicas ilícitas, ou seja, o direito à manutenção de atividades instaladas ilegalmente em áreas especialmente protegidas, desde que anteriores as datas definidas em lei. Assim, para as áreas rurais, foi estabelecido o marco de 22 de julho de 2008, e para as áreas urbanas, resta atualmente estabelecida a data de 22 de dezembro de 2016.

Essa medida foi muito contestada por diversos setores da sociedade, que a acusaram de flexibilizar sobremaneira as restrições e ampliar consideravelmente as possibilidades de intervenção de APPs em áreas urbanas, deixando ainda mais vulneráveis áreas ambientalmente importantes para a cidade, muitas já comprometidas, ao invés de buscar protegê-las quiçá restaurá-las.

Neste sentido, traz-se à baila a opinião de Frederico Amado (2013, p. 228):

Outro absurdo praticado pelo novo CFlo é permitir, mes­mo que excepcionalmente, o licenciamento ambiental para a supressão vegetal em manguezais para a execução de obras habitacionais e urbanização. De acordo com o artigo 8º, § 2º, que lamentavelmente não foi vetado, a intervenção ou a supressão de vegetação nativa em área de preservação permanente situada nas restingas estabilizadoras de mangue ou nos próprios manguezais, poderá ser autorizada, excepcionalmente, em locais onde a função ecológica do manguezal esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consoli­dadas ocupadas por população de baixa renda.

Assim, em vez de determinar a recuperação do man­guezal comprometido, o Código Florestal dos ruralistas permite a sua deterioração total para a construção de residências em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda.”

 

Sabe-se que o processo de urbanização brasileiro foi feito de forma excludente, que expulsou grandes populações de áreas desejadas para fins que vão da necessária urbanização à mera especulação imobiliária, forçando populações a ocupar áreas irregulares longe dos centros, muitas vezes destinadas a preservação permanente do meio ambiente.

Não há de se falar que esta irregularidade fundiária se restrinja apenas as ocupações irregulares compostas por populações de baixa renda, existindo também bairros e loteamentos formados por famílias de classe média e alta que também se encontram fora das leis. “No caso dos assentamentos populares, os moradores são obrigados a viver num bairro irregular por falta de alternativa legal de moradia. Nos demais, há a opção por construir suas casas nos loteamentos e condomínios irregulares, apesar de terem condições financeiras para adquirir uma residência legalizada”. (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010, p. 11).

Da mesma forma, sabe-se que a conquista da moradia, além de direito garantido constitucionalmente, também é uma das formas da conquista da dignidade humana, outro principio caro da nossa sociedade declarado na nossa Constituição Federal.

A ocupação das Áreas de Preservação Permanente para fins de moradia pode existir, porém deve ser a exceção, entretanto, não podendo servir de causa à manutenção de milhares de famílias em condições irregulares, com alto grau de insegurança, bem como regularizar a ocupação de áreas nobres que flertam sobre as APPs, razão pela qual a regularização fundiária tem importância vital para superação dessa questão.

Entretanto, percebe-se que que cada vez mais a pressão da urbanização que se volta para as áreas de especial necessidade de proteção do ponto de vista ambiental, conseguido avançar violentamente sobre as APPs.

A nova ótica de regularizar o que já está consolidado, aliada a dispensa de comprovação da inexistência de alternativa técnica e locacional, demonstram que durante o processo legislativo forças e interesses atuaram no sentido de suprimir ou minorar significativamente as condicionantes existentes para execução de projetos de regularização fundiária e intervenção urbanística em áreas de APPs urbanas por interesse social.

 

  1. DA JUDICIALIZAÇÃO DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL

 

O novo Código Federal foi alvo de vários questionamentos no STF. Em caso emblemático e com ampla repercussão para aplicação da legislação ambiental no Brasil, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou no dia 28.02.2018 as cinco ações que discutiam a constitucionalidade do novo Código Florestal (Lei Federal nº 12.651/2012) impetradas à época da sua promulgação, a saber: a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 42) e quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) – 4901, 4902, 4903 e 4937.

Em apertada síntese, no que tangem aos questionamentos que afetam as APPs urbanas, as ADIs sustentavam a inconstitucionalidade de diversos dispositivos do novo Código Florestal (Lei 12.651/12), sob o fundamento de que haveria redução da proteção ambiental, contrária aos ditames do art. 225 da Constituição e que caracterizariam retrocesso em relação às conquistas da sociedade e prejuízo à proteção do meio ambiente comparativamente com o regime de proteção anteriormente vigente no ordenamento pátrio. Em especial, as ADIs suscitavam inconstitucionalidade dos dispositivos que permitem a redução das dimensões e do regime de proteção das áreas de preservação permanente (APP); descaracterização de APP em nascentes e olhos d’água intermitentes; alargamento do conceito de utilidade pública e interesse social; desnecessidade de comprovar alternativa técnica e locacional para intervenção em APP; possibilidade de redução da área de reserva legal.

Nesse contexto, o STF entendeu que as alterações promovidas pelo Código Florestal de 2012 não caracterizam em si violação do núcleo essencial dos direitos e garantias fundamentais do direito ambiental ou afronta aos ditames constitucionais e declarou constitucionais, na grande maioria, os dispositivos do Código Florestal (Lei Federal nº 12.651/2012).

Entretanto, embora não tenha declarado nenhum artigo da lei inconstitucional, o STF reconheceu e declarou a inconstitucionalidade de certas expressões específicas de dispositivos do Código Florestal e estabeleceu a sua interpretação sobre tais temas, com forte impacto sobre as intervenções em APPs urbanas.

Foi declarada a Inconstitucionalidade das expressões “infraestrutura para gestão de resíduos” e “instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais” como sendo hipóteses de utilidade pública para efeito de permitir a intervenção em APP, perdendo assim a sua validade.

O STF entendeu também por considerar que entorno das nascentes e olhos d’água perenes e intermitentes caracterizam APP, estando sujeitas ao regime protetivo estabelecido pelo Código. 

Além disso, cabe ressaltar que também por decisão do STF, em relação à possibilidade de intervenções em área de preservação permanente – APP nos casos de utilidade pública (Art. 3º, VII, Lei 12.651/12), decidiram os eminentes ministros por maioria dar ao art. 3º, VIII e IX, do Código Florestal interpretação conforme a Constituição, de  modo  a  se  condicionar  a intervenção em APPs, seja por interesse social  ou  utilidade  pública, à comprovação da inexistência de alternativa técnica  e/ou  locacional à  atividade  proposta, consagrando o retorno da regra anteriormente contida na Lei 4.771/65 e excluída da nova lei florestal.

A intervenção do judiciário no novo Código Florestal foi bem recebida por aqueles que almejavam maior proteção às APPs urbanas, principalmente diante do acolhimento do pedido do retorno da exigência de laudo que comprove a inexistência de alternativa técnico locacional para projeto que pretenda debruçar-se sobre uma Área de Proteção Permanente, bem como a supressão da possibilidade de intervenção por utilidade pública em APPs para os casos de construção de infraestrutura para eventos esportivos, considerada verdadeira aberração legal.

 

  1. CONCLUSÃO

O presente artigo buscou fazer uma análise sobre a proteção jurídica das áreas de proteção ambiental situadas em zonas urbanas, bem como, da evolução da flexibilização legal para as hipóteses autorizativas para sua intervenção à luz do novo Código Florestal (Lei 12.651/12), buscando destacar os conflitos dos interesses socioeconômicos com os relacionados à proteção ambiental no que tange à execução dos mais diversos projetos urbanísticos em áreas de proteção ambiental (APPs).

Ficou constatada a importância das áreas de proteção permanentes dentro do sistema jurídico pátrio, sejam elas urbanas ou rurais, outrora ignoradas no antigo código florestal (Lei 4.771/65), consagrada na Constituição Federal de 1988 e no novo Código.

Por outro lado, constatou-se também que a legislação ambiental pertinente a proteção da Áreas de Proteção Permanente estão muito dispersas em várias leis, muitas com referências a outras já revogadas, que vem sendo alteradas repetidas vezes ao longo das últimas cinco décadas, com diversas modificações que fazem com que tal área urbana específica fique cada vez mais a mercê de interesses outros que não a sua proteção.

O novo Código Florestal, embora tenha mantido as mesas possibilidades para intervenção em APPs urbanas que a legislação anterior, alterou aspectos importantes do regime de proteção das APPs, principalmente para os casos de utilidade pública e interesse social.

Com relação às inovações das hipóteses autorizativas de supressão de vegetação e intervenção em APPs em razão de utilidade pública com reflexos nas APPs urbanas, podemos destacar: (1) obras de infraestrutura destina­das ao sistema viário, inclusive aquele necessário aos par­celamentos de solo urbano aprovados pelos Municípios e (2) instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais.

Estas duas modalidades foram cunhadas quase por encomenda pelos agentes interessados e usadas à exaustão nos projetos de obras destinadas à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016, com consequências ambientais desastrosas em vários estados do país, principalmente pela desobrigação da comprovação da inexistência de outra alternativa de instalação em área menos gravosa ao meio ambiente.

No que se refere às modificações do novo Código florestal nas hipóteses de interesse social, geraram maior impacto nas APPs urbanas as seguintes inovações: (1) a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao ar livre em áreas urbanas consolidadas e (2) a regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas.

Pelo que se pode depreender, a lógica do novo Código Florestal, com relação a intervenção em APPs de áreas urbanas consolidadas, não é promover a recuperação, mas sim consolidar a degradação ocorrida em razão da omissão do poder público, desconsiderando, assim, o princípio do não retrocesso ambiental. Ou seja, o novo Código Florestal reconhece a ineficiência do poder público no controle do ordenamento urbano e, no lugar de esta­belecer mecanismos que promovam a recuperação das APPs, apresenta o que se pode chamar de “gambiarras” jurídicas para consumar a degradação.

Tais institutos estão sendo considerados ferramentas perigosas contra as APPs urbanas, pois regularizam e fomentam a ocupação irregular de áreas urbanas proibidas por lei, que posteriormente regularizadas.

Certo que a ocupação das Áreas de Preservação Permanente para fins de moradia pode existir, porém deve ser a exceção, não podendo servir de causa à manutenção de milhares de famílias em condições irregulares, com alto grau de insegurança, bem como regularizar indistintamente a ocupação de áreas que flertam perigosamente sobre as APPs, razão pela qual a regularização fundiária tem importância vital para superação dessa questão.

Em síntese, verifica-se que as mudanças provoca­das pelo novo Código Florestal, no que tange aos casos de utilização de APPs em situações de utilidade pública e de interesse social, tiveram caráter social no sentido de procurar ajustar situações de ocupações complexas já consolidadas no seio urbano, porém também destaca seu nítido caráter de abranda­mento da preservação ambiental e satisfação de interesses econômicos e políticos em detrimento à proteção ambiental e a sociedade.

Tais alterações são fruto do jogo de poder que se volta contra o meio ambiente sempre que este demonstra ser um obstáculo para a execução de obras de intervenção urbanísticas. Consequentemente essas alterações vulneram de modo significativo a proteção das APPs situadas em zonas urbanas, tornando-as ecossistemas extremamente frágeis e carentes de proteção diante do crescimento da cidade e do poder econômico envolvido.

Restou claro ao final, que a legislação ambiental, quanto à proteção das florestas e especificamente às APPs urbanas, vem sofrendo significativas mudanças nas ultimas décadas, desencadeando em sucessivos abrandamentos da lei para possibilitar uma utilização mais numerosa  (aumento das hipóteses excepcionais de uti­lização de APPs), bem como mais facilitada (retirada de condicionantes para a utilização de APPs) destas áreas caracterizadas em Lei ou em ato do Poder Público como de preservação permanente, o que tem fragilizado sobremaneira a sua proteção e manutenção para as futuras gerações.

 

BIBLIOGRAFIA

 

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[1] Advogado, Especialista em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UESB (Universidade do Sudoeste da Bahia. Graduado em Direito pela Univale (Universidade do Vale do Rio Doce – Gov. Valadares-MG). Email [email protected].