O Narrador em “As babas do diabo” de Julio Cortázar

Janiely de Moura

 

 

RESUMO: Com as influências do pós-modernismo a literatura, em geral, sofreu várias modificações em seu estilo, enredo e na pessoa do narrador. Aquele narrador clássico, que dá ao leitor a oportunidade de compartilhar experiências, dá espaço para um narrador pós-moderno, jornalista, observador, um narrador que já não narra aquilo que viveu, experimentou na sua essência, mas que vai narrar aquilo que observou, viu acontecer com alguém, em um determinado tempo e lugar. Em vista disso, o presente artigo busca analisar, na perspectiva pós-moderna, o narrador construído por Julio Cortázar no conto “As babas do diabo”, de 1959. Analisaremos como esse narrador foi construído e quais características pós-modernas Cortázar se utilizou na construção do mesmo.

PALAVRAS-CHAVES: Pós-modernismo; “As babas do diabo”; Análise; Narrador.

INTRODUÇÃO

O conto “As babas do diabo” de Julio Cortázar é considerado um de seus contos mais revolucionários e se insere no gênero conto fantástico, sendo possível perceber características desse gênero já no segundo parágrafo do conto, onde o narrador afirma estar morto e vivo ao mesmo tempo.

Seu narrador é construído com influências e características pós-modernas, mas não é possível definir se o narrador narra algo que viveu ou que apenas observou. A linguagem do conto e os aspectos visuais são bastante valorizados e há no conto uma característica própria de Cortázar que é a busca incessante pelo real, pela descrição da realidade exatamente como ela é.

Esta análise é baseada nos estudos de BENJAMIN (1994), CORTÁZAR (2009) e SANTIAGO (2002) e busca contribuir para a compreensão do leitor quanto à construção do narrador pós-moderno.

DESENVOLVIMENTO

 

A literatura pós-modernista apresenta, além das características herdadas pelo modernismo, a fragmentação do texto e a polifonia de vozes, a ironia, a hesitação, a esquizofrenia, a retomada de texto do passado, ênfase no cotidiano, o hiper-realismo e uma autoconsciência e uma autorreflexão. Já o narrador se apresenta com traços de repórter, observador, alguém que se mantém distante da cena a ser contada.

Benjamin (ano) afirma que o narrador moderno perdeu a capacidade de contar experiências suas e passa a contar experiências alheias e que “são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.” (BENJAMIN, ano, p.197)

E é exatamente isso que vemos no conto “As babas do diabo” de Julio Cortázar. Um narrador que não consegue contar o que viveu, assume o papel de um narrador morto na tentativa de assim se comprometer menos com a história e poder contá-la. Mas, mesmo tentando de várias formas, este narrador deixa evidente a sua incapacidade de contar o que viu e ao final do conto nada contou.

Cortázar constrói seus narradores de duas formas: quando em primeira pessoa, ele vai instigar o seu leitor, despertar sua curiosidade, vai se mostrar um ser problemático, confuso e vai trazer características modernistas. Quando em terceira pessoa, ele irá se deixar levar pelas emoções, vai sentir todas as sensações que o momento lhe desperta, vai buscar incessantemente a verdade. E essa alternância de pessoas, essa polifonia de vozes vai confundir o leitor, que, em determinados momentos, não conseguirá identificar quem está falando, se o narrador, se Roberto Michel, se são dois seres distintos ou se ambos são a mesma pessoa.

O narrador em “As babas do diabo” tenta contar objetivamente a história que o comoveu, mas ao iniciar sua narrativa ele já se questiona como a deve contar, surgindo uma primeira influência do pós-modernismo que é a hesitação do narrador, observada no conto de duas formas: Primeiro, em qual voz ele deve contar a história “Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constantemente formas que não servirão para nada.” (CORTÁZAR, 2009, p.01). Segundo, o exame e revisão do que é contado: uma palavra criativa conta a história, uma palavra crítica, reflete sobre esse contar “... Agora mesmo (que palavra, agora, que mentira estúpida) podia ficar sentado no parapeito sobre o rio...” (CORTÁZAR, 2009, p. 03)

No conto há várias possibilidades de narrador, mas o escolhido por Cortázar é o “eu” de um narrador morto, que é vítima da história que conta, e que vai dividir essa narrativa com um narrador em terceira pessoa, que seria Roberto Michel. Cortázar se utiliza dessas duas vozes para afirmar uma temática bastante trabalhada por ele que é a de que a realidade não é unívoca, ou seja, não possui um único significado. É preciso contar a mesma coisa sob dois olhares, dois modos de ver e entender a realidade.

SANTIAGO (2002) afirma que o narrador foge da ação narrada para que a ficção dramatize o que o personagem vive ou viveu. E que esse narrador não está sozinho, logo ele encontrará outro observador, que é o leitor. Mas, ambos apenas podem observar a cena, sendo impedidos de compartilhar suas próprias experiências. Desse modo, SANTIAGO (2002) diz que:

“Na pobreza da experiência de ambos se revela a importância do personagem da ficção pós-moderna; narrador e leitor se definem como expectadores de uma ação alheia que os empolga, emociona, seduz, etc.” (SANTIAGO, 2002, p. 51)

Outra influência pós-modernista presente no narrador de Cortázar é a ironia. No conto, quem narra a história é um narrador morto que acredita irá se comprometer menos pelo fato de estar morto e que não irá se distrair. Mas, é exatamente nesta passagem que ocorre a ironia, visto que esse narrador é o primeiro a se distrair e por várias vezes durante a narração.

Outra característica desse narrador é a ambiguidade, e é possível percebê-la, em todo o conto, de várias maneiras. Uma delas é a ambiguidade de sentimentos, onde o narrador se vê diante do impasse de não saber como contar, mas mesmo assim continuar contando “Então tenho que escrever. Algum de nós tem que escrever, se é que isto vai ser contado.” (CORTÁZAR, 2002, p.01)

Outra manifestação de ambiguidade é a presença da terceira pessoa do singular que dá ao texto um sentido de indeterminação, confundindo as pessoas do narrador e de Michel - “Michel é culpado de literatura, de fabricações irreais. Não há nada que o agrade mais que imaginar exceções...” (CORTÁZAR, 2002, p. 06) -  e suas linguagens: a da ficção (narrador) e a da fotografia (Michel) – “Michel sabia que o fotógrafo age sempre como uma permutação de sua maneira pessoal de ver o mundo por outra qual a câmera lhe impõe...” (CORTÁZAR, 2002, p.03)

O narrador é novamente ambíguo quando ele tenta unir a linguagem escrita à linguagem fotográfica a fim de explicar o que aconteceu. E por isso ele é ambíguo, porque não há linguagens perfeitas que reflitam com exatidão a realidade.

Outro fator relevante na construção desse narrador é a sua linguagem ambivalente, que não permite ao leitor, mesmo que este leia, releia e leia outra vez o conto, saber o que realmente aconteceu e o que Michel viu naquela foto ampliada. Essa é outra característica de Cortázar, que não gosta daquilo que é dado pronto. Para ele essa incerteza do que aconteceu, e que ele provoca, é um espaço dado ao leitor para que ele construa, por si só, suas soluções.

Outro traço dessa literatura pós-modernista é a esquizofrenia, que é o momento de ruptura do personagem com a realidade, observada na passagem em que Michel ao olhar fixamente aquela ampliação entende o que de fato teria acontecido naquela manhã de domingo e começa a ter alucinações. “De repente a ordem se invertia, eles estavam vivos, movendo-se, decidiam e eram decididos, iam rumo a seu futuro.” (CORTÁZAR, 2002, p.09)

No conto além das influências pós-modernistas, Cortázar também apresenta influência do Cubismo, mostrando em várias passagens que é possível enxergar a mesma coisa de modos diferentes, sob ângulos diferentes.

“Da minha cadeira, com a máquina de escrever na frente, olhava a foto a três metros de distância [...] sem dúvida era a maneira mais perfeita de apreciar uma foto, embora a visão em diagonal pudesse ter seus encantos e até mesmo suas descobertas.” (CORTÁZAR, 2002, p. 08)

CONCLUSÃO

Julio Cortázar constrói o conto “As babas do diabo” sob os moldes dessa nova forma de pensar e escrever literatura, sob um olhar pós-modernista. E o faz de maneira brilhante. O mais importante na obra não são os personagens, nem o enredo, mas o modo como a narrativa é construída. Mesmo sem contar quase nada, o leitor se vê, após algumas leituras, diante de inúmeras possibilidades de acontecimentos.

Cortázar constrói este conto como uma teia de aranha, com vários fios, que levará seu leitor, já curioso, a várias possibilidades. E o mais importante, essa trama armada pelo autor prenderá seu leitor até o fim. Eis a literatura pós-moderna, numa constante busca pela essência, nada de histórias prontas, acabadas, agora é o tempo do novo, da busca pela verdade, da busca por soluções.

 

REFERÊNCIAS

 

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica; Arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Ronanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CORTÁZAR, Julio. As babas do diabo In: As armas secretas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.