O JULGAMENTO DE SÓCRATES:

Uma análise ética e criminológica sobre o real crime* 

Lávyo Amorim Portela [1]

Miquéias Calácio[2] 

Sumário: Introdução; 1 Contexto histórico; 1.1 Aspectos sociais; 1.2 Aspectos políticos e jurídicos; 1.3 Retórica e persuasão nos casos jurídicos; 2 Sócrates e Atenas; 4 O julgamento de Sócrates e o real crime; Considerações finais; Referências. 

                                       RESUMO 

Sócrates como um grande intelectual, e filósofo, que até a atualidade se mostra vivo na formação da cultura ocidental, e muitas vezes personificado como um mito, e como parte desse mito tem-se o seu julgamento. O julgamento de Sócrates contrariou toda uma Atenas que vivia seu apogeu de democracia e de liberdade, onde decretaram à morte o mais vil dentre os atenienses. Uma análise a cerca do delito cometido por Sócrates é fundamental para mensurar a legalidade e por fim a condenação que o filósofo recebera, entretanto o sentido e a prática do que se tem como crime nesse processo é amplo uma vez que, tínhamos a postura de Sócrates antes do julgamento, da sociedade, do Sócrates durante o julgamento, dos sofistas e de tantos outros que vieram a cometer os mesmos crimes e nem por isso perderam a vida.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

Sócrates. Apologia. Atenas. Julgamento, Crime.

 

 

INTRODUÇÃO

O presente paper pretende discutir o conceito de crime no caso específico do julgamento de Sócrates, a partir da análise da própria sociedade grega onde viveu este filósofo, e sobre sua atuação, ou influência nesta sociedade.

Não queremos aqui, discutir de forma anacrônica sobre perspectivas modernas do que foi o delito cometido, ou por Sócrates, ou pelos seus acusadores, valendo-nos de conceitos da criminologia contemporânea, mas, partiremos de uma ideia, que, mesmo sendo de conhecimento atual, se aplica em toda e qualquer sociedade que existe, e já existiu, e que se torna imprescindível para esse estudo, que é a análise dos fatos sociais, como valores, costumes, acontecimentos, para entender o que realmente era valoroso no meio social grego, o qual não poderia ser transgredido, e que, caso transgredido, configura-se como um delito. Ou seja, é necessário pontuar sobre os ideias e valores da sociedade grega, algo que realmente fosse importante, que, na sua violação, se caracterizasse como um crime ou ameaça ao bem-comum. A visão ética, além da exemplificação da política na sociedade ateniense também são requisitos fundamentais nesse estudo.

Logo, exemplificaremos, mesmo que brevemente, nos limites do respectivo trabalho, o contexto histórico-social em que Sócrates viveu, além de suas ideias, vida em sociedade, e por fim, a análise do delito elencada, e principalmente objetivada, no julgamento de Sócrates.

    
1  CONTEXTO HISTÓRICO

Primeiramente, torna-se necessário explicitar as características principais da sociedade na qual viveu Sócrates. Atenas, a cidade de que trataremos, será este palco, mais precisamente no século V a. C., período do apogeu, e início do declínio da sociedade ateniense, conhecida como a Idade de Ouro, principalmente no governo do estratego Péricles.

1.1  Aspectos sociais

A Grécia nesse período, já estava formada, politicamente e socialmente, complexa e desenvolvida. Já existia a divisão em cidades-Estado, e o espírito crítico já havia se formado. A população ateniense era dividida em três classes: os cidadãos, os estrangeiros domiciliados ou metecos, e os escravos (JARDÉ, 1977).

Os cidadãos eram somente aqueles nascidos de pai e mãe atenienses. Eram estimados em número de 40 mil (SOUZA, 2007). Destes, somente os homens detinham os direitos civis e políticos. As subdivisões, quanto à influência de poder, ou funções políticas, iriam ser distribuídas entre estes. Raramente era concedida a cidadania, somente em casos excepcionais como dos escravos que lutaram nas ilhas Arginusas (JARDÉ, 1977), e no caso do filho bastardo de Péricles, quando lhe faltou sucessor (DURANT, 1957).

 Os metecos eram estrangeiros, e não possuíam cidadania, além de ter uma série de deveres como o pagamento do métoikon e a obrigação em serviços militares, e requisitos, como possuir um patrono, o prótates (JARDÉ, 1977). Os escravos também não possuíam direitos e foram fundamentais para a evolução da democracia, chegando a ser numerosos, contabilizando aproximadamente 400 mil no fim do século IV a.C. (JARDÉ, 1977).

A tradição ateniense neste período, quanto à religião e costumes, tinha uma visão diferente da sociedade gentílica. Era de âmbito público, nem todas suas leis eram baseadas na religião, e portanto, agora havia a ideia de Estado. Aqui o crime era uma mácula, onde podia haver um castigo para toda a sociedade, e nisto, o estado tinha o dever de expiá-lo (MELO; SOUZA, 2008). Assim como toda família tinha uma devoção aos deuses da família, na cidade existe esta devoção aos deuses da cidade.

A educação em Atenas era um fator importante para o desenvolvimento político. A lei exigia que o pai desse uma educação elementar ao filho. A criança era educada de forma que correspondesse à sociedade democrática ateniense, para isso preparando-os. Tinham gramática e ginástica basicamente, e depois freqüentavam as escolas dos retores, aprendendo eloqüência e política (JARDÉ, 1977). A democracia era o motivo disto, tinha que haver uma sustentação para o modelo político adotado por Atenas.

1.2  Aspectos políticos e jurídicos

Com uma sociedade tão complexa como Atenas precisava ter um sistema político forma direta e participativa, a democracia, e era possível somente aos cidadãos. A razão social trouxe leis escritas para uma resolução mais contundente, que atendesse às demandas da sociedade. A democracia ateniense, de forma direta permitia um desenvolvimento político e jurídico cada vez maior.

Quanto à administração da justiça, existia alguns tribunais. Com fins de julgar causas criminais haviam: o Areópago, de características aristocráticas, julgava casos de homicídios, incêndios e envenenamentos, e os Éfetas (Pritaneu, Paládio, Delfínio e Freátis) que julgava diferentes casos de homicídio.

 Com fins de julgar casos civis, existiam os árbitros, que variavam de acordo com a causa, privada ou pública, com fim de formar uma resolução rápida do litígio em qualquer lugar, e ainda havia a Heliéia (heliaia), que era uma espécie de grande tribunal de júri. “A heliaia foi a grande demonstração de que o povo ser soberano em matéria judiciária, por ser um tribunal que permitia que a maior parte dos processos fosse julgadas por grandes júris populares” (SOUZA, 2007, p. 98). As sessões do trabalho de julgar eram camadas de dikasterias e cada júri era chamado de dikasta. Neste é que se enquadra o julgamento de Sócrates.

Quanto às causas, havia a ação pública (graphé) e a ação privada (diké), que podem se confundir, pois “todo atentado grave contra a pessoa era considerado pelos gregos como um atentado contra o Estado, e, portanto, muitas vezes a graphé coincide com aquele tipo de causa que, hoje, classificaríamos de criminal” (JARDÉ, 1977, p. 193).

1.3  Retórica e Persuasão nos casos jurídicos

Como a resolução de conflitos agora ocorria por meios de julgamentos, e sendo as leis gregas em pouco número, a maioria das decisões eram advindas de fatos (JARDÉ, 1977).  Sendo assim, os julgamentos, principalmente da heliaia eram defendidos pelos próprios acusadores e acusados, valendo-se somente da retórica como instrumento de persuasão.

Qualquer pessoa podiam iniciar uma ação, desde que a sustentasse. Não haviam advogados, somente há algo que se assemelhe a um, que eram os logógrafos, “escritores profissionais de discursos forenses” (SOUZA, 2007, p. 92). Ou ainda podiam aceitar a ajuda de um amigo para a defesa. No presente caso, Sócrates fez sua própria defesa.

Estes discursos são vistos como fonte de informação sobre o direito grego, mostrando a capacidade argumentativa e, dessa maneira, a resolução de problemas.

2  SÓCRATES E ATENAS

“Sócrates é o santo e o mártir da filosofia. Nenhum outro grande filósofo foi tão obcecado com o viver corretamente. Como muitos mártires, Sócrates escolheu não tentar salvar a própria vida, quando provavelmente o poderia ter feito mudando suas atitudes” (GOTTLIEB, 1999, p. 7).

É com essa citação de Anthony Gottlieb que começaremos a discorrer a cerca de um dos mais importantes personagens da construção e do desenvolvimento no âmbito intelectual da humanidade.

As ideias socráticas sobreviveram ao longo de mais de vinte séculos, e não menos irrelevante, mostrou-se durante todo o curso da história objeto de estudo de vários outros intelectuais e obviamente dos seus discípulos, passando e perpassando o seu legado, que em consequência o tornou uma figura marcante na cultura ocidental.

O mais intrigante é que, todo o seu legado de conhecimento não foi registrado pelo mesmo na forma escrita, como diz Isidor Stone (2005, p. 22) “Sócrates nada escreveu. Dos escritos de seus muitos e variados discípulos, sobreviveram apenas os de Platão e Xenofonte...”. O fato de Sócrates nada ter escrito a próprio punho, não o revela analfabeto, pois, esta recusa é voluntária, espontânea.

Este posicionamento de Sócrates é legitimado pelo contexto histórico o qual estava inserido. Ele viveu no século de Péricles, em que se “desenvolvia o saber filosófico em praças públicas” (COTRIM, 2006, p.86), se tinha uma valorização da oratória, do uso das palavras, “a capacidade de falar bem em público era fundamental para a participação política” (STONE, 2005, p.64) sendo que, “os gregos amavam também a eloqüência” (STONE, p. 55), e como diz o próprio Sócrates “os homens inúteis tanto na palavra quanto na ação, incapazes de ajudar o exército, a cidade ou o povo em épocas de necessidades, devem ser reprimidos, ainda que tenham riquezas em abundância, principalmente se são tão insolentes quanto inúteis” (STONE, 2005, p. 52).

Filho de um escultor e de uma parteira, Sócrates nasceu por volta de 469-399 a.C. em uma Atenas que acabara de estabelecer a democracia “em que a liberdade de pensamento e de expressão floresceu num grau jamais visto antes e que pouquíssimas vezes foi igualado posteriormente” (STONE, pag. 19).

Desse modo, foi numa Atenas que vigorava o seu apogeu de liberdade que se ocasionou o julgamento de Sócrates, o que de fato configurou uma vergonha para a cidade, visto que Sócrates só estava exercendo o seu direito de manifesta-se livremente, contudo, tanto o filósofo quanto a sua cidade natal mantinha diferenças o que propiciou tal acontecimento:

[...] o conflito entre Sócrates e sua cidade natal teve início porque havia divergências profundas entre ele e a maioria doa atenienses de sua época – mais ainda, entre ele e os gregos antigos em geral – em relação a três questões filosóficas básicas. Essas divergências não eram meras abstrações remotas, porém tocavam nos fundamentos do sistema de autogoverno de que gozavam os atenienses (STONE, pag. 28).

Sócrates revela-se um exímio orador de forte capacidade de persuasão, de conhecimento vasto, caracterizado pelo negativismo, pela arte de duvidar e que obteve uma popularidade invejável no seio de sua sociedade, e que seus ideais divergiam com o sistema político, social, econômico vigente, o filósofo passou a ser visto como um empecilho aos olhos da aristocracia da época, daqueles que detinham a opinião pública e dirigiam a Cidade.

Nessa perspectiva uns dos jovens que o acompanhava, de nome Mênon alertou seu “mestre” de que seu discurso negativo poderia o colocar em situações complicadas, “Não deve viajar nem afastar-se de sua terra; pois, se apresentasse dessa forma em qualquer outra cidade, muito provavelmente seria preso como feiticeiro” (STONE, pag. 85).

Os seus diálogos podem ser divididos em dois momentos, a ironia; que “consiste em simular aprender alguma coisa de seu interlocutor, para levá-lo a descobrir que não conhece nada no domínio do que pretende ser sábio” (HADOT, 2004, p. 53), notadamente explícita em uma de suas pérolas – conhecer-te a ti mesmo, e a maiêutica, termo grego que significa “arte de trazer à luz”, em que Sócrates instigava aos seus interlocutores na reconstrução de suas ideias, destituindo o argumento de que tudo sabiam, sendo sua tarefa denunciar a falsa sabedoria.

Sócrates fora acusado de desviar a juventude dos valores tradicionais, por Melito, um poeta ateniense, de não acreditar nos deuses e querer introduzir outros nos cultos de Atenas, por Ânito, um dos moderadores de classe média e uma acusação de impiedade proferida por Lícon, sendo que tais acusações já eram especuladas anteriormente pelo próprio Sócrates, como o diz na Apologia:

[...] Porque muitos dos meus acusadores têm vindo até vós há já bastante tempo, talvez anos, e sem jamais dizerem a verdade; e esses eu temo mais que Anito e seus companheiros, [...], desde crianças, vos persuadiam e me acusavam falsamente, dizendo-vos que um tal de Sócrates, homem douto, especulador das coisas celestes e investigador das subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca” (PLATÃO, 2003, p. 45)

Em contrapartida à democracia vigente na cidade de Atenas, Sócrates idealizava o governo do rei-filósofo (segundo “A República” de Platão), pois somente o filósofo é detentor do conhecimento e da verdade:

Nas Memoráveis, Sócrates se coloca na posição de adversário de todas as formas de governo existentes [...]. “Os reis e governantes”, diz ele “não são aqueles que detêm o cetro”, [...], com esse argumento, refuta a monarquia em sua forma tradicional. Também não são – “aqueles que são escolhidos pela multidão”. Assim refuta a democracia. “Tampouco aqueles que são sorteados”- e desse modo rejeita os ocupantes de cargos públicos escolhidos por sorteio. “Nem tampouco aqueles cujo poder da força ou da trapaça” – e assim elimina os “tiranos”. Os “reis e governantes” verdadeiros ou ideais são “aqueles que sabem governar”. [...]. Sua premissa básica – segundo Xenofonte – era que “cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer” (STONE, pags. 31 e 32).

Outro argumento de considerável importância era que o filósofo e seus discípulos consideravam a organização social como um rebanho em que, a figura do pastor era representada por um rei, todavia, a comunidade instalada em Atenas outorgava o arbítrio de cada um se autogovernar, pois um homem é um político nato e, portanto, distinto dos demais animais (STONE, 2005, p.64).

Em Atenas assim como em toda a Grécia se tinham o culto de vários deuses, em que realizavam festas e banquetes como forma de agradá-los e, por conseguinte obterem proteção e prosperidade “Os gregos estavam convencidos de que, se um só dia se esquecesse esse banquete, logo o Estado ficava ameaçado de perder o favor dos seus deuses” (COULANGES, 1975, p. 125), em contrapartida a religião para Sócrates era algo bem subjetivo; “Este Deus, ao serviço do qual Sócrates realiza a sua obra de educador, é um Deus diferente dos deuses em que a polis acreditava. Se era principalmente nesse ponto que a acusação contra insistia, então acertava realmente no alvo” (JAEGER, 1969, p. 539).

Ademais, talvez um dos maiores erros de Sócrates mediante o contexto o qual estava inserido, era uma Atenas que fervilhava a paixão pela política, uma vez que o filósofo nunca se fez político, muito menos almejava ser político, como ratifica Isidor Stone: “Sócrates não apenas não participava da vida da cidade como também pregava a não-participação. Era essa – conforme ele diz aos juízes na Apologia – sua missão. Afirma ele: ‘Outra coisa não faço senão andar por aí convencendo-os, moços e velhos a não cuidar do corpo, mas proteger a alma’ (2005, p. 147).

Um julgamento tão controverso quanto instigante e que explicita o forte teor da propagação do conhecimento seja ela vinda donde vier, mais contudo será Sócrates que mesmo não tendo condições financeiras mais detinha uma oratória invejável, vítima desse processo jurídico ou suas ações realmente deliberaram contra o sistema posto, ou será esse sistema um primórdio do que se vincula hoje estruturalmente falando, onde quem possui o poder econômico, procura consequentemente monopolizar o conhecimento, a informação para manter seu patrimônio pessoal?

3 O JULGAMENTO DE SÓCRATES E O REAL CRIME

Para a proposta análise partiremos do estudo do próprio julgamento, discutindo as principais acusações, e refutações, contextualizando-as.

Levado à Heliéia, o julgamento se deu perante a júri, as citadas dikasterias, e o próprio Sócrates escolheu fazer sua defesa. As acusações a ele atribuídas no processo foram a de que investigava a abóbada celeste e tornava mais forte a razão mais débil (PLATÃO, 2003), além disso, ensinando tais coisas aos jovens os corrompendo.

Ora, tais acusações são as que foram colocadas em sentido formal, no entanto, é necessário explicitar o sentido real desse julgamento. Sócrates deixa claro que essas acusações vêm de longa data: “Esses cidadãos atenienses, que divulgaram tais coisas, são os acusadores que eu temo; [...] Pois esses acusadores são muitos e me acusam já a bastante tempo” (PLATÃO, 2003). Sócrates assim dizia, porque sabia que era capaz de refutar as acusações colocadas no atual julgamento, porém, não conseguiria fazer esquecer o desprezo já enraizado que alguns sentiam dele.

Tal desprezo provinha de uma classe que preservava o atual modelo de democracia, e que era criticado por Sócrates em sua filosofia. O historiador Will Durant pontua:

[...] os funcionários do Estado não deviam ser escolhidos com base no poder ou na riqueza; a tirania e a plutocracia são tão más quanto à democracia; o razoável meio-termo deve ser a aristocracia na qual as funções do Estado se restrinjam aos que provam estar mentalmente aptos para as desempenhar. (DURANT, 1957, p. 34)

A própria aristocracia oligárquica é que perseguiam as ideias de Sócrates.

Quanto ao julgamento, Sócrates defende-se da primeira acusação, de investigador das coisas celestes, afirmando que ensina a própria sabedoria humana, e para corroborar, declara a confissão do Oráculo de Delfos. Tenta refutar o Oráculo, perquirindo sobre a sabedoria de várias pessoas da cidade, provando a estas que, nada tinham de sábias, demonstrando assim ser ele o verdadeiro sábio. Nisto, Sócrates também encontra o ódio de seus adversários.

A outra incriminação, é que Sócrates seria o culpado pela corrupção dos jovens. O filósofo se defende perquirindo Meleto, seu acusador. Afirma que eles é que o imitam, e provando não fazer isso intencionalmente, se vale da lei, alegando que tal delito não seria passível de pena, e sim, apenas uma advertência.

A preocupação com o futuro dos jovens, e corrosão do sistema democrático e moral ateniense era preocupante, pois os jovens eram o futuro, e a eles estavam ligados todas as posteriores funções sociais. A acusação que recai sobre Sócrates então tinha causa pública (graphé), pois interessava ao bem-comum da sociedade. Por sua filosofia colocar a razão sobre a tradição, e moralidade à luz da consciência individual, colocava em duvida qualquer crença ou costume, justificando algumas acusações ou desprezos (DURANT, 1957). Logo a ele atribuíam a irreligião da época, a constante rebeldia dos jovens, e democracia que já estava decadente.

Na verdade, Sócrates consegue vencer seus acusadores, refutar por meio retórico os crimes no qual era acusado, no entanto, ainda recebe a morte. A sua condenação a morte foi parte do seu posicionamento ao assumir a sua defesa, portanto, Sócrates legitimou o seu óbito.

Se tivesse se defendido utilizando o argumento da liberdade de expressão e invocando as tradições fundamentais de sua cidade, creio que ele facilmente teria conseguido fazer com que o júri vacilante se decidisse em favor da absolvição. [...]. Talvez um dos motivos pelos quais não adotou essa tática seja o fato de que, se nesse caso Sócrates saísse vitorioso, seria também uma vitoria dos princípios democráticos que ele ridicularizava. (STONE, 2005,  p.236)

André Bonnard resume bem este julgamento de forma sucinta:

Sócrates, cujas conversas sempre satisfaziam a sua expectativa, vai ser arrastado pelos poderosos do tempo, pelos chefes da democracia novamente triunfante, perante um tribunal popular, e o filósofo mal se defende, provoca os seus juízes parece procurar a morte, como se ela devesse afirmar, mais com clareza que a vida lha fizera, o que ele tinha para dizer ao seu povo. Assim, Sócrates bebeu a cicuta. (BONNARD, 1972, p. 97)

Os atenienses se arrependeram do erro cometido a Sócrates, e condenaram os seus acusadores, e a alguns os hostilizaram e desprezaram até a morte (DURANT, 1957).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Revela-se durante toda Apologia, um Sócrates não preocupado em declarar-se inocente, ou procurar meios para que tal afirmativa viesse a acontecer, pois poderia apresentar testemunhas, que eram de grande valia dos tribunais da época, que garantissem sua índole como um homem honesto, ou proferir a vontade divina os seus ensinamentos. Sócrates encarregou-se de sua defesa, utilizando satisfatoriamente argumentos filosóficos e nas demais acusações houve uma verossimilhança com o que realeza nos ginásios, nas ágoras de Atenas.

Nos discursos de Apologia de Platão, vemos um Sócrates que já preverá tal acontecimento, sendo que o próprio torna ineficaz a sua defesa, (a exemplo Sócrates não citas leis escritas como argumento para sua defesa) e sustentando até o último instante o que fizera pelas ruas atenienses, é o que mostra Platão no livro ‘A República’: “Portanto, não é esta a definição de justiça: dizer a verdade e restituir aquilo que se recebeu” (p. 16).

Sócrates durante todo o proceder do julgamento já ver a morte com traquilidade e solução, negando o pedido de seus discípulos em fugir e como se tem na Apologia; “Cidadãos atenienses, eu vos respeito e amo, mas obedecerei aos deuses em vez de obedecer a vós, e enquanto eu respirar e estiver na posse de minhas faculdades, não deixarei de filosofar [...]” (PLATÃO, p.67).

O julgamento de Sócrates expressa um leque de erros e de configurações do que pode vir a ser crime para a época, de certo que nem todas as acusações feitas contra Sócrates eram de cunho verídico, nem que os seus acusadores eram exemplos a serem seguidos, nem que o júri mal instruído ou subordinado e na carência de chegar a verdade, no contexto em que revela que a democracia tinha lá suas limitações e que Sócrates na sua defesa, mais claramente, nas entrelinhas de sua defesa, declarava a ignorância de seus compatriotas.

 

REFERÊNCIAS

 

 

BONNARD, André. Civilização Grega: de Eurípedes à Alexandria. Lisboa: Estúdios Cor, 1972.

COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia; história e grandes temas. 16ª ed. reform. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2006;

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito as instituições da Grécia e de Roma; tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: HERMUS, 1975;

DURANT, Will. A História da Civilização. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.

GOTTLIEB, Anthony. Sócrates: o mártir da filosofia. Tradução de Irley Fernandes Franco. São Paulo: Editora UNESP, 1999; (Coleção Grandes Filósofos)

HADOT, Pierre. O que é filosofia. 2ª ed. São Paulo, Edições Loyola, 1999;

JAEGER, Werner, (s.d.). – Paideia, Lisboa: Editorial Aster, 1969;

JARDÉ, Auguste. Grécia Antiga e a Vida Grega. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1977.

MELO, José Joaquim Pereira; SOUZA, Paulo Rogério de. A Influência da Religião na Organização da Sociedade Grega no Processo de Transição do Gênos para Pólis. Achegas.net, Rio de Janeiro, n. 37, p. 26-41, maio/junho, 2008. Disponível em: <http://www.achegas.net/numero/37/joaquim_37.pdf>. Acesso em: 12 de maio de 2010.

PLATÃO. A Apologia de Sócrates. Tradução de Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ed. Escala; (Coleção Mestres e Pensadores)

_________. A República. São Paulo: Martin Claret, 2003.

SOUZA, Raquel de, O Direito Grego Antigo. In:WOLMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. 4. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. Cap. 4. p. 77-112.

STONE, I. F. O julgamento de Sócrates. Tradução Paulo Henrique Britto; apresentação Sérgio Augusto – São Paulo: Companhia das Letras, 2005;



(*) Paper apresentado como requisito para aprovação na disciplina História do Direito do curso de direito da UNDB, ministrado pelo professor Ms. Elton Fogaça;

[1] Graduando do 1º período do curso de Direito Vespertino da UNDB, [email protected];

2 Graduando do 1º período do curso de Direito Vespertino da UNDB, [email protected].