O jogo da linguagem em Alice no país das maravilhas 

Karen Tatyane Cavalcante dos anjos *

Resumo 

O presente artigo discute algumas vertentes de sentidos e aspectos da linguagem em Alice no país das maravilhas de Lewis Carrol publicada em 1865, mais precisamente o capítulo IX, relacionando com outras narrativas literárias, sendo estas do gênero infantil ou não. 

Palavras-chave: linguagem, sentidos, país das maravilhas, paradoxo.

Alice no país das maravilhas (Alice in wonderland) conta a história de Alice, personagem criado por Carrol sem nenhum referencial da realidade. A menina conversa com a irmã quando de repente vê um coelho branco falante entrando numa toca e o segue. A partir daí começam suas aventuras em um mundo totalmente sem sentido, cheio de personagens malucos sem nenhuma lógica no que dizem ou pensam aos olhos de Alice. A narrativa convoca a capacidade de reordenar as significações. Os encontros de Alice leva a pensar a própria linguagem de modo que se torne linguagem redefinindo os próprios limites do mundo.

No capítulo IX da obra, Alice reencontra-se com a Duquesa no jogo de croquet. Elas começam a conversar e a Duquesa lhe diz sobre a moral das coisas. Para Alice, como tudo o que está vivendo naquele mundo, nada do que a Duquesa diz faz sentido.

(...) _ O jogo está melhorando agora – disse, a fim de dar prosseguimento à conversa.

_ É mesmo – concordou a Duquesa. – E a moral disso é: “Oh, é o amor que faz o mundo girar”. (...) (P. 102)

 

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*Acadêmica do VII semestre do curso de Letras da UNEMAT

O jogo da linguagem é perceptível, os sentidos derivam, não há moral da história estabelecida como em outras narrativas infantis, pois a moral da história, na verdade, é sempre arbitrário. Alice funda um lugar lúdico em relação à linguagem, é um personagem fantástico que não está ligado a nada que seja real, não há nenhuma mensagem ou moral para ser tirada da história.

Chapeuzinho vermelho, a versão de Charles Perraut (1697), conta a história da menina que foi levar doces para sua avó e, no caminho encontrou o lobo que a fez ir por outro caminho, e assim chegou primeiro à casa da vovó, devorou-a e ficou esperando pela menina. E quando esta chegou a devorou também. Como na maioria das narrativas infantis, há no final de Chapeuzinho vermelho a moral da história.

Vemos aqui que as crianças

Sobretudo as meninas,

Belas, bem proporcionadas e gentis,

Fazem muito mal de ouvidos a qualquer um,

E que não é coisa de espantar

Que assim fazendo o lobo as coma.

Digo o lobo, porque todos oslobos nem

São da mesma espécie:

Há aqueles de um humor cortês.

Sem ruído, sem fel e sem cólera,

Que, familiar, condescendentes e doces,

Seguem as jovens moças

Até suas casas, até nas ruas.

Entretanto! Quem não sabe que esses lobos tão doces

De todos os lobos, são os mais perigosos. (Perrault, 1697)

Essa questão da moral da história está ligada ao fato de as narrativas infantis estabelecerem aquilo que deve ser aprendido pela criança que as lê, como se esta fosse um pacote vazio onde devem ser depositadas todas as coisas consideradas boas, para que a infância seja maravilhosa e muito bem aproveitada e, ao mesmo exige que o ser infantil comporte-se como adulto quando tenta ensinar essas lições impondo o significado.

Em Alice no país das maravilhas acontece ao contrário, as questões são outras, não há nenhuma preocupação se há realmente uma moral da história ou qual seja ela, pois cada um que a lê e em cada situação que a lê pode tirar suas próprias conclusões. Na fala da Duquesa, por exemplo, em que se pode relacionar o fato de o jogo estar melhorando com o amor? Mas ela encontra moral da história para tudo o que Alice ou ela mesma diz, quando na verdade não existe moral alguma, ou existem muitas, dependendo de quem ouve ou lê e em que momento o faz.

É possível perceber esse jogo da linguagem também em A hora da estrela, ultima obra publicada por Clarice Lispector. Através da personagem Macabéa, o narrador brinca com a linguagem. Um dos exemplos é o momento em que Macabéa conhece Olímpico de Jesus, e enquanto passeiam com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, ela diz a Olímpico: _ Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor? (P. 44). A relação da personagem Macabéa com o mundo é limitada e indefinida, ela só enxerga o que está a sua volta e de forma empírica. Ela reproduz automaticamente o que lhe é dito ou ensinado sem refletir os sentidos. Ela ouve a Rádio Relógio e reproduz tudo para Olímpico de Jesus o questionando, pois não entende nada.

_ Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado Alice no país das maravilhas e que era também um matemático? Falaram também em élgebra. O que é que quer dizer élgebra?

(...) Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos assim: tic-tac-tic-tac-tic-tac. A Rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura? (...) (P. 50)

Macabéa não faz sentido nela mesma, e o que ela diz não tem sentido para os outros personagens.

Já Alice, é o mundo que não faz sentido para ela, o país das maravilhas e seus personagens simbolizam o mundo dela e todas as dúvidas, tudo o que ela não entende enquanto ser infantil no mundo dos adultos, ou em seu próprio mundo. A passagem de Alice pela toca do coelho branco logo no início da história significa o mundo virando de cabeça para baixo, ou seja, tudo o que é lógico agora não tem sentido. A conversa que ela tem com a duquesa é totalmente sem lógica para ela.

(...) _ Acho que eu entenderia melhor - falou Alice, muito educada - se tivesse isso por escrito. Porque não consegui acompanhar bem o que a senhora disse. (...)

(...) _ Por favor, não se preocupe em dizer nada + longo do que isso – solicitou Alice.

_ Ora, preocupação nenhuma! _ continuou a Duquesa. _ Dou a você de presente tudo que disse até agora.

“Presente mais sem graça esse, não?” pensou Alice. “Ainda bem que as pessoas não costumam dar presentes de aniversário desse tipo!” (...) (P. 103)

Em Alice no país das maravilhas é possível, a partir da linguagem, identificar as séries de paradoxos discutidas por Gilles Deleuze em Lógica do sentido (1974). Para Deleuze uma série de sentidos puxa outra série de sentidos, é o que se dá tanto no capitulo IX quanto em toda a obra de Carrol, fazendo-se possível explorar muitas possibilidades de sentidos.

Como sabemos a literatura é arte, e para Deleuze a arte é referencializada a ela mesma, portanto não pode ser cópia do real, mas aquilo que significa em si mesmo para um passado, em seu presente e para um futuro, ou seja, o puro devir, causando sensações no leitor. Alice é para ele uma nova portação de sentidos, o seu presente organiza e cria um passado e organiza e cria também um futuro, uma verdadeira obra de arte.

O paradoxo deste puro devir, com a capacidade de furtar-se ao presente, é a identidade infinita: identidade infinita dos sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito. É a linguagem que fixa os limites (...) mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à equivalência de um devir limitado (...). (DELEUZE, 1974 – P. 02)

No capitulo IX, Alice encontra-se também com a Tartaruga Falsa que por ordem da rainha lhe conta sua história, que para Alice não há lógica alguma.

(...) _ Tivemos a melhor educação possível. Para falar a verdade, íamos a escola todos os dias. (...) (P. 108)

(...) _ E quais outras matérias vocês tinham?

_ Bom, tínhamos aula de Escória...  – respondeu a Tartaruga Falsa, contando as matérias com as patas. – Escória Antiga e Moderna... e Mareografia. Depois, aula de Despenho... A professora de Despenho era uma Enguia velha, que costumava aparecer uma vez por semana. Ela nos ensinava despenho, endosso e tintura ao molho. (...) (P. 109)

Pode-se dizer que é a partir destas inversões na linguagem e na própria história que se constituem as aventuras de Alice. Segundo Deleuze (, esta obra de Carrol apresenta o deslocamento dos sentidos da profundidade e da superfície com que ele trabalha. Alice entra na toca do coelho branco e no final quando acorda daquele sonho que parece infinito tudo volta à superfície. Esse deslocamento funda as séries de paradoxos, os vários sentidos afirmados ao mesmo tempo. Isso coloca a obra de arte como inacabada sempre, pois os sentidos são infinitos, uma vez que não há acontecimento absoluto, cada vez que se lê pode ser algo diferente, é infinito, os sentidos estão na materialidade da língua. Assim a obra de arte já significa em si mesma, só existe o presente, pois o devir é que cria um passado e um futuro.

Alice no país das maravilhas é considerada uma obra fantástica, pois se refere logo ao sentido e o relaciona diretamente ao paradoxo. Não imita qualquer realidade, significa em si mesma, é uma verdadeira obra de arte que se desdobra muito além daquilo que se vê, onde o puro devir não é mais um fundo que murmura, mas sobe a superfície das coisas e se torna impassível.  

Referências Bibliográficas 

CARROL, Lewis. Alice no país das maravilhas. São Paulo: Martin Claret, 2007. 145 p.

PERRAULT, Charles. Chapeuzinho vermelho. Porto Alegre: Kuarup, 1697.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1977. 87 p.

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido; tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974.