O ITALIANO DA  AVENIDA KLEBER

 

Meu aprendizado de francês vem me proporcionando algumas experiências deliciosas. Uma delas é caminhar cantarolando

“Je m'baladais sur l'avenue le cœur ouvert à  l'inconnu 
J'avais envie de dire bonjour à  n'importe qui....” 

Acho que tenho esse direito. Até que sou discreto se comparado com uns franceses malucos que vejo berrando pelas ruas ou pelo metrô.

Tudo bem que dessa vez eu não estava na Champs-Elysées, mas próximo, na Av Kleber, a uns cem metros do Arco do Triunfo. Tudo bem também que eu não tinha tantos motivos para estar feliz, pois voltava do Banco do Brasil. Paguei uma montanha de impostos para retirar uns míseros eurinhos para a baguette nossa de cada dia.

Ao contrário da canção, que pena, não foi com o “inconnu” que eu cruzei, e muito menos com a garota que povoou a imaginação do autor. Na verdade, foi um velho conhecido. Juro que aconteceu. Segue a história:

Há uns dois anos, passeávamos eu e minha esposa de mãos dadas pela citada Av. Kleber quando um homem de boa aparência e sorriso farto, dirigindo devagar pela pista lateral, parou o carro e acenou para nós com um mapa na mão como quem quer uma informação.

Quando nos aproximamos ele baixou o mapa e, com muita simpatia, nos cumprimentou, perguntou de onde éramos, elogiou o Brasil, disse que era italiano e jogou sua conversa. Dizia ser um executivo da Armani, que estava voltando para Milão, teve um problema no cartão de crédito e por isso nos oferecia umas roupas que tinha no carro, a troco de uma ajuda para a gasolina da volta.

Já no início da conversa percebemos tratar-se de um picareta. Demos um no outro aquele aperto de mão com que os casais se comunicam e iniciamos os procedimentos de retirada. Ao perceber, ele começou a pedir dinheiro explicitamente. Por quaisquer dez euros poderíamos ter levado um “armani" (minúsculo mesmo).

Rimos da situação, de nós mesmos e do italiano de boa conversa. Isso porque éramos turistas em estado de graça em Paris.  Se um zé mané desses nos abordasse em São Paulo ou no Rio, possivelmente ficaríamos muito bravos com a cara de pau, com o tempo que perdemos, com a desfaçatez e por aí vai.

 

Dois anos se passaram.  O episódio banal já esquecido. Meu jeito de andar em Paris, entretanto, mudou. O casamento da minha filha e o nascimento da minha neta me fizeram melhorar um pouco o meu francês e quando estou por aqui vivo à caça de oportunidades de praticá-lo. Puxo prosa até com as estátuas.

Pois uma oportunidade dessas surgiu na mesma Av Kleber. Pra variar eu ia ao Banco do Brasil. Incrível. O mesmo italiano, com mesmo mapa na mão.

Dessa vez fui consciente, para tentar gastar meu francês. Ao ver que eu era brasileiro, porém, ele começou a falar uma mistura de francês, italiano e português, tentando me agradar, numa salada que não me interessou.

Desisti de continuar a conversa e fui embora com a frustração de quem não atingiu seu objetivo, que era usar o meu melhor francês para dizer que no Brasil as pessoas como ele são chamadas de picaretas ou vigaristas.

Na conjuntura atual, para ficar bastante tempo em Paris, sendo cliente do Banco do Brasil, é preciso voltar muitas vezes à Av Kleber, pois a quantidade de euros por saque é limitada.

Eis que numa dessas voltas, nosso amigo da Armani me deu uma terceira chance! Nem acreditei!

Das duas uma: já mereço até ser considerado parisiense, pois ser abordado três vezes pelo mesmo malandro é uma marca de intimidade com a cidade que poucos têm ou, na cabeça do italiano sem memória, eu devo ter uma baita cara de otário!

Dessa vez, sem ser pego de surpresa, aproximei-me, disse que era brasileiro mas queria falar francês.

Ele se agigantou. Disse que era milanez e que os milaneses têm muito em comum com os brasileiros (talvez se achem igualmente malandros). Emplacou a conversa da Armani, da falha do cartão de crédito, do dinheiro da gasolina, me mostrou as blusas, me fez tocar para ver que eram daquilo que no Brasil chamava “couro”. Eu disse, “oi, le cuir”. Aí ele concluiu dizendo que eram um presente para mim. Eu respondi,

---- Pour moi, pourquoi?

Ele disse que eu retribuiria lhe dando o dinheiro da gasolina.

Meu francês debutant foi suficiente então para travarmos o seguinte diálogo:

            ---- Posso te dizer uma coisa?

            ---- Sim.

            ---- Há dois anos você me abordou aqui mesmo com essa história. Duas semanas atrás também. Faz dois anos que você tenta voltar pra casa? Esta é terceira vez que você me aborda. Vamos tirar uma foto pra comemorar?

Disse isso colocando a mão no bolso para pegar o celular. Nosso papo até então tinha sido tão amistoso que num primeiro momento ele até esboçou um sorriso, como se fosse consentir. Mas foi só por um segundo. Ao cair em si, tratou de ligar o carro e partiu gritando,

            ---- Pas de photos! pas de photos!

Eu ao lado rindo e respondendo,

            --- Pour le Facebook!, pour le Facebook!

Senti-me o próprio ator das pegadinhas do programa de TV, correndo atrás da vítima em fuga.

Ele virou a primeira esquina e eu, de alma lavada, cheguei à Champs-Elysées  rindo alto e sozinho, engrossando o coro dos franceses malucos. Afinal, como diz a canção,

            “Il y a tout ce que vous voulez aux Champs-Elysées”.