O INFANTICÍDIO INDÍGENA SOB O ESCOPO DO UNIVERSALISMO CULTURAL: A FRONTEIRA CONSTITUCIONAL ENTRE O GARANTISMO PENAL ESTATAL E O ETNOCÍDIO¹

Marcos Henrique Sacramento Brito e Mozaniel Vaz da Silva²

RESUMO

A proposta do presente artigo científico é analisar de forma interdisciplinar a temática do infanticídio indígena e, especificamente, da problemática relacionada ao fato de que, a proteção de caráter constitucional do direito fundamental à vida, uma vez aplicada na tutela penal contra os casos de infanticídio de crianças nascidas nas tribos indígenas do Brasil, leva a um desgaste dos próprios alicerces culturais de tais tribos, que certamente se encontrarão fragilizados pela intervenção estatal mais violenta e repressiva consubstanciada no exercício do jus puniendi. Desta maneira, o processo penal como manifestação formal da tutela penal ao bem jurídico do direito à vida, não pode ser aplicado de maneira usual sem que incorra em danos graves às tradições e manifestações sócio-culturais das tribos onde tais práticas se inserem, tradições estas também protegidas em âmbito constitucional. Desta forma, e mais do que nunca, o Direito Processual Penal e o Direito Penal como um todo, devem se revestir com os mais rigorosos mandamentos constitucionais e, dentre estes, o princípio da proporcionalidade que aqui será aplicado sob a ótica antropológica da ética argumentativa. Portanto, em um cenário onde a ação penal assim como sua abstenção, produzirão ambas, danos e restrições a direitos fundamentais, é primordial que haja um filtro que torne razoável a aplicação da proporcionalidade no caso concreto, e é neste contexto que a teoria da ética argumentativa se insere enquanto embasamento antropológico-constitucional apto a estabelecer a fronteira entre o garantismo penal e o etnocídio das tradições cada vez mais ameaçadas, dos povos indígenas brasileiros.

INTRODUÇÃO

No tocante à ordem jurídica atual, estruturada a partir e em razão do Estado Democrático de Direito Brasileiro, tem-se como basilar a proteção dos direitos mais fundamentais à manutenção da condição humana sendo que, indubitavelmente, o direito à vida destaca-se como o principal deles. Nesse sentido, a guarda e proteção de um direito tão primordial como o direito à vida justifica uma série de ramificações nas mais diversas áreas jurídicas, de forma a que se efetive uma maior expansão do alcance estatal às situações e condições decorrentes do direito supracitado. Dentro desta rede de garantias, certamente a proteção perpetuada pelo Direito Penal ao direito à vida (agora transformado em bem jurídico), fornece a mais célere forma de tutela estatal, seja através do garantismo decorrente da fragmentáriedade da ultima ratio penal, seja através do manejo do monopólio estatal ao jus puniendi.

Entretanto, tal poder de punir, atribuído ao Estado, encontra em casos concretos uma série de limitações materiais e formais, e dentro dessas limitações insere-se a problemática da prática (existente há tempos anteriores até mesmo à colonização brasileira) do infanticídio como prática cultural ainda hoje praticada por povos indígenas. De certo, apesar dos mandamentos constitucionais e penais relacionados a proteção do direito à vida dirimirem como único caminho para tais hipóteses a aplicação de todo o rigor do jus puniendi, tal poder encontra-se em conflito real e atual com outra forma de proteção constitucional: a proteção da identidade cultural e étnica dos povos indígenas, o que inclui a gerencia de seus valores e práticas sociais. Em termos gerais, se por um lado a proteção do direito à vida é um dos mandamentos mais fundamentais da Constituição Federal, por outro, a violência monopolizada e perpetuada pelo Estado como forma de satisfação do seu direito/dever de punir ao ser aplicada ao sistema cultural próprio das populações indígenas ganha contornos ainda mais dramáticos podendo levar à um verdadeiro extermínio cultural com aval do próprio Estado. Desta forma, a aplicação da teoria do universalismo cultural através de interações pautadas na negociação e na dialética, aplicada aos casos de infanticídio indígena poderia estabelecer um contorno constitucionalmente satisfatório ao garantismo penal de forma que não haja lesão excessiva à identidade cultural indigenista.

  1. AS FACETAS ATUAIS DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E SUA TRANSFORMAÇÃO EM BEM JURÍDICO PASSÍVEL DE TUTELA PENAL 

O direito à vida, antes de direito inerente à Constituição Federal é um direito fundamental e universal do homem. Apesar das diversas formas na qual tal direito vem sendo desrespeitado durante a história, e mesmo atualmente. É pacífico por boa parte da doutrina mundial que no rol dos direitos fundamentais do homem, o direito à vida se encontra no topo, alocado como direito indisponível e muitas vezes tomado como norte irradiador de diversas outros princípios e deveres de decorrência lógica, como o direito à saúde, assistência, combate à fome entre outros. Desse sentido, assim versa o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que fora aprovado na XXI sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas: “O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei, ninguém poderá ser arbitrariamente provado de sua vida. (Parte III, art. 6)”. Como se pode inferir a primazia de tal direito não é mera faculdade deliberativa mas uma verdadeira diretriz principiológica que cada vez mais inspira o desenvolvimento de normas proativas em defesa da vida, como é o caso do Brasil.

Segundo lição de clássica de Canotilho (2000, p. 526):

“O direito à vida é um direito subjetivo de defesa, pois é indiscutível o direito de o indivíduo afirmar o direito de viver, com a garantia da "não agressão" ao direito à vida, implicando também a garantia de uma dimensão protetiva deste direito à vida. Ou seja, o indivíduo tem o direito perante o Estado a não ser morto por este, o Estado tem a obrigação de se abster de atentar contra a vida do indivíduo, e por outro lado, o indivíduo tem o direito à vida perante os outros indivíduos e estes devem abster-se de praticar atos que atentem contra a vida de alguém (...) o direito à vida é um direito, mas não é uma liberdade”.

Nesse interim, observa-se, segundo argumentação do renomado doutrinador, que o direito fundamental à vida possui uma faceta negativa e outra positiva, correspondente ao dever de não matar e proteger a vida do indivíduo, respectivamente, facetas estas exigíveis tanto do Estado em face do indivíduo quanto por parte dos sujeitos em relação uns aos outros. Porém não se restringe a isso, tal direito é muito mais amplo do que a simples garantia de vida biologicamente falando (o que atualmente também já não é tão simples juridicamente falando, vide discussões sobre eutanásia e distanásia que não são objetos deste artigo), de forma mais ampla, abrange também o direito a uma vida saudável, o que por sua vez leva em conta uma série de fatores culturais, sociais e econômicos que determinarão o contexto de vida digna a depender das peculiaridades do caso concreto assim como de cada indivíduo em sua particularidade.

Devido a importância internacionalmente conferida a este direito/princípio, as estruturas jurídicas mundiais vem desenvolvendo tratamentos legislativos e judiciários aptos a conferir uma devida proteção à vida juridicamente tutelada, e no Brasil não foi diferente. No ordenamento pátrio tal direito é elencado à categoria de princípio no caput do artigo 5º da Constituição Federal, tornando-se base fundamental do Estado Democrático de Direito e, consequentemente, tutelado direta e indiretamente na grande maioria das normas infraconstitucionais do país. Dentre estas normas infraconstitucionais, destaca-se o Código de Processo Penal que reserva seu artigo 121 à precípua proteção à vida, com o a tipificação e cominação de pena ao ilícito penal do homicídio, assim como outras modalidades delitivas decorrentes daquela, tais quais o aborto e o infanticídio, por exemplo. Em todos estes tipos penais, o que se observa é a transformação do direito à vida em bem jurídico penalmente relevante, mais que isso, transformando-o em bem jurídico por excelência, aquele que historicamente atribui os alicerces axiológicos do próprio Direito Penal e funda (com sua supressão) o crime por excelência: o homicídio.

Entretanto, apesar da proteção historicamente conferida ao direito à vida, é notável que, atualmente os princípios e diretrizes constitucionais regem-se por um meta princípio fruto da modernidade e da necessidade de amoldamento do direito ao caso concreto: O princípio da proporcionalidade também denominado proporcionalidade em sentido amplo. Este princípio, de cunho hermenêutico e metodológico, determina que nenhum direito é absoluto, pelo contrário, são em maior ou menor grau flexíveis de forma que possam ser razoavelmente aplicados segundo os ditames da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Nesse sentido insere-se o direito à vida. Apesar do que a exposição inicial possa levar a crer, mesmo este direito fundamental não absoluto sob as lentes da hermenêutica moderna, vez que a vida pode ser também entendida como vida digna, sob tal ponto de vista interpretativo o direito à vida é passível de restrições lastreadas em um exercício de ponderação e proporcionalidade face a outros princípios de igual relevância para a noção de vida digna como a dignidade da pessoa humana e os valores culturais específicos na qual um indivíduo se insere.

É sob esta lente da ponderação que é inserida a temática da prática de infanticídio por alguns povos indígenas nacionais como método tradicional de proteção a vida e sustentabilidade da própria comunidade, que do ponto de vista da cultura indígena é vista como um super indivíduo e cuja prioridade de manutenção supera a individualidade de cada membro da tribo. Cabe ressaltar que, tal problemática encontra-se longe de ser pacífica, uma vez que priorizar a universalidade do direito à vida, aplicando o mesmo de forma exacerbada, nestes casos do infanticídio indígena, além de efetivar uma violação à integridade cultural pode facilmente corresponder à um verdadeiro extermínio cultural de tais povos denotando um dano irreparável ao direito fundamental à liberdade cultural, tão gravoso quanto a própria lesão ao direito à vida. Ciente de quão sensível e polêmico tal tema pode ser, este trabalho não objetiva defender integralmente um ou outro lado na antinomia de princípios fundamentais, mas, pelo contrário, expor as mazelas dos métodos atuais e expor as novas metodologias sócio-hemenêuticas de cunho dialético, aptas a melhor orientar a elaboração e aplicação de normas baseadas essencialmente no Civil Law ocidental no contexto cultural dos povos indígenas tradicionais, já largamente ameaçados na atualidade.

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