Resumo

No dia 31 de agosto de 2016, ocorreu no Brasil um evento histórico importante com repercussões nacional e internacional: 61 Senadores votaram a favor da cassação definitiva do mandato da presidente Dilma Rousseff, afastada da presidência desde 12 de maio de 2016 no âmbito do processo comumente chamado impeachment. Este evento permanecerá marcante na memória social e histórica do povo brasileiro. Ao longo do acompanhamento do mesmo, há de interrogarmo-nos sobre o que é verdadeiro e falso à medida que tudo pareceu - na defesa, na acusação e no Plenário, onde se interagiam partidários e oponentes da Dilma - verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Este verdadeiro falso ou falso verdadeiro se articulou em torno do uso de uma palavra-chave: golpe. Com efeito, os partidários da Dilma - falando do impeachment - denunciaram um golpe, os seus adversários e acusadores contra-atacaram sustentando que não é golpe. Daí o dilema de determinar se o impeachment é golpe ou não. Mas, como ele não pode ser os dois ao mesmo tempo, pois o artigo tem um duplo objetivo: analisar se realmente o impeachment brasileiro - na sua complexidade - pode ser considerado como um golpe; entender se, talvez, o emprego deste conceito não tenha sido excessivo e em que medida esta excessividade influenciou a decisão final do Senado por ter sido tomada por uma esmagadora maioria.

Introdução 

A obtenção da medalha de ouro dos Jogos Olímpicos pela primeira vez na historia futebolística brasileira - uma conquista tão sonhada desde mais que 100 anos - e o impeachment abriram uma outra página na historia contemporânea do Brasil. Com o impeachment o país, por uma outra vez, atraiu as notícias mundiais. Como todo fato histórico, o impeachment brasileiro tem uma origem e ocorreu num contexto social, político e econômico bem peculiar. Gostaríamos de lembrar três cenários históricos fundamentais que deixaram mais ou menos claro um pressentimento original de impeachment. O primeiro começou com a oposição declarada do vice-presidente à Dilma. Com efeito, numa carta enviada à presidente em 2015, Michel Temer deixou claros seus sentimentos de desconfiança e de desconforto dentro do governo dirigido pela senhora e chamou a atenção dela sobre a necessidade de reunificar o país. ''Tenho mantido a unidade do PMDB apoiando seu governo [...]. Isso tudo não gerou confiança em mim. Gera desconfiança e menosprezo do governo[1]''. Segundo este trecho do conteúdo da carta, Temer se sentiu menosprezado e humilhado pela presidente.


O segundo cenário se relaciona, poucos tempos depois, à ruptura, em março de 2016, do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) com o governo da Dilma lembrando que este partido esquerdista era o melhor aliado íntimo de combate do PT há muito tempo. A partir daí, podemos dizer que Dilma começava a se enfraquecer e estava caminhando, gradativamente, para um processo de destituição. O terceiro elemento que não devemos nos escapar, é este abandono silencioso da Dilma pelo seu próprio partido, o PT (Partido dos Trabalhadores), que ficou calado e passivo durante suas acusações. Ainda muito menos discutido, embora interessante, este aspecto merece uma atenção peculiar. Com efeito, o partido se mostrou desconfiante e indiferente ao caso da Dilma e parecia ser mais interessado a outros assuntos como, por exemplo, uma eventual reforma em vez de um acompanhamento solidário à senhora. Ou seja, o PT procurava afastar-se e fugir de um dos seus líderes em dificuldade por toda parte, porque está querendo salvar sua pele deixando-o afogar.

Dilma mesma a um certo momento sentiu a falta deste apoio. Ela tinha muito pouco apoio deste partido de esquerda que chegou ao poder pela primeira vez com a eleição do Lula em 2003. Enquanto que Dilma estava enfrentando seus acusadores e oponentes, o PT se mostrou muito mole. Era possível observar, ademais, apesar de uma pequena minoria de senadores do PT que a defenderam, uma grande falta do apoio deste partido à Dilma até falar de uma ausência flagrante. Em outras palavras, o PT se afirmou impotente a assumir a defesa da sua própria chefe e a acompanhá-la nas suas adversidades. Portanto, durante o processo de impeachment percebemos que Dilma estava sozinha em frente de um duplo dilema: as acusações pertinentes e dolorosas dos seus adversários e a traição de alguns dos seus antigos e melhores partidários e aliados que a abandonaram num momento crucial em que ela precisava mais deles.

Além desses fatores, o processo de impeachment ocorreu num contexto social, político e econômico difícil para o Brasil: graves crises econômicas; inflações; desempregos; aumento dos produtos alimentares de primeira necessidade; escândalos de corrupção da Petrobras; denuncias contra megaeventos socioculturais com custo altíssimo (por exemplo, os Jogos Olímpicos cujos investimentos custam 51% do orçamento, U$ 4,6 bilhões segundo o jornal Folha); programas sociais do governo dificultados; movimentos sociais; Lula, o líder carismático do PT, perante a justiça enquanto que Dilma tentou nomeá-lo como ministro da Casa Civil, etc. Eram, entre outros, alguns fatos que precederam o impeachment. Não podemos, no entanto, esquecer o papel significativo de uma certa imprensa de direita no Brasil que, nas suas propagandas midiáticas, participou fortemente da desestabilização e do enfraquecimento da Dilma, do seu governo e do seu partido. Assim, enquanto que estamos assistindo um momento muito difícil do PT, o processo de impeachment nos convida a perguntar se não se trata de uma queda consumida ou de um fim deste partido na medida em que dois dos seus líderes principais, Lula e Dilma, estão sendo processados pela justiça brasileira.

O artigo não vai enfatizar todos esses fatores, mas pretende destacar algumas reflexões sobre o impeachment. Para isso, num primeiro tempo, nossa tarefa consistirá em entender o sentido histórico do impeachment que, desde seu início, é qualificado de golpe pelos partidários e advogados da Dilma. Na segunda parte, pretendemos discutir os caráteres legal, constitucional e institucional do impeachment tal como é concebido no campo político brasileiro. Tentaremos, em terceiro lugar, ressaltar dos argumentos da defesa e do discurso de depoimento da Dilma uma certa excessividade no uso do conceito de golpe e buscaremos determinar em que sentido esta excessividade influenciou a decisão final senatorial de 31 de agosto de 2016 de que resultam duas consequências previsíveis importantíssimas: Por um lado, Dilma Rousseff perdeu a comanda definitivamente do país mesmo se, felizmente, ela não seja impedida de exercer por um período de oito anos seus direitos civis e políticos, por outro lado, seu antigo vice-presidente, Michel Temer - suspeitado de ser o principal conspirador e traidor desta destituição - se tornou, automaticamente, o presidente atual do Brasil para assumir o resto do mandato da presidente destituída. Por fim, se a quarta parte quer entender o lógico de votação do impeachment no Senado, num quinto tempo, verificaremos alguns problemas que põe este argumento de golpe.

  1. O significado histórico do impeachment brasileiro

O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff já, desde seu início em outubro de 2015, se inscreveu nos anais da historia não somente do Brasil, mas também da historia mundial. Por que? Primeiro, pelo fato de que o Brasil - a despeito de todas as realizações e de todos os progressos sociais e  econômicos nos últimos dez anos do Partido dos Trabalhadores (PT) - não tinha medo nem vergonha de acusar de corrupção, de crime de responsabilidade e de crimes fiscais aquele regime político, que, desde a acessão de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, conseguiu reduzir consideravelmente a pobreza e permitiu ao país se tornar, entre 2012 e 2014, a sétima maior economia mundial. É preciso ter muita coragem e audácia para fazer isso. Em segundo lugar, é pela primeira vez na historia política brasileira que uma presidente envolvida num processo de impeachment, acusada e afastada do seu poder demonstrou tanta perspicácia, coragem, determinação, força e perseverança para ir até o fim na comprovação e na defesa da sua inocência perante um tribunal legislativo que representava o Senado federal brasileiro. 

O terceiro aspecto histórico do impeachment vem de um sentimento pessoal, porque era pela primeira vez da minha vida de jovem que eu assisti, desde o início até o julgamento final, um processo de destituição tão contraditório, confuso e controverso de uma presidente oriunda das eleições democráticas. Ator e construtor da historia, todo ser humano sonharia viver um momento histórico excepcional como este na sua vida. De fato, como o terremoto do Haiti, em janeiro de 2010, o impeachment brasileiro, malgrado sua perplexidade e complexidade, foi um dos grandes momentos históricos marcantes da minha vida que me acrescentou uma compreensão a mais do Brasil. Uma satisfação pessoal certo, mas também uma grande confusão. Satisfação não no sentido de alegria, de contentamento, de comemoração, de festividade, pelo contrário, de profundos confusão e questionamentos sobre o que traduziria realmente este processo. Por fim, o impeachment constitui um momento histórico interessante tanto pelo Brasil como pelo mundo na medida em que desde seu início até seu fim era super difícil identificar quem estava certo ou errado; quem dizia a verdade ou a mentira; quem enganava o povo - a eterna vítima - e quem queria salvá-lo. Era um processo muito duvidoso. 

Em resumo, além da sua historicidade, o impeachment era marcado pelas suas dúvidas e confusões. Era complicado localizar o lugar de onde se sairia a verdade ou a mentira; dissociar o verdadeiro e o falso. À ideia de golpe a acusação e os senadores oponentes à Dilma sempre respondem pela legalidade, constitucionalidade e legitimidade do impeachment defendendo que se trata de um processo que está sendo conduzido sem espírito de passionalidade, de emoção e de injustiça. Eles eram, radicalmente, convencidos que estavam na verdade, a constatação não era diferente no lado dos partidários da senhora. Nesse caso, só a historia - no seu papel de prospectividade - poderá dizer no futuro quem estava certo ou errado, saberá classificar e separar verdade e mentira. Pois, a historia não existe só para explicar o passado nem não se escreve unicamente no passado, ela é também prospecção no futuro da consequência dos atos cometidos no presente. Dito de outra maneira, as ações presentes de hoje, que se tornam passadas pela amanhã, ao entrarem nos anais da historia social e humana, determinam o futuro. Podemos assim dizer que a historia é presente, passado e futuro e o impeachment brasileiro se inscreve num dinamismo histórico e sociológico de falso verdadeiro e verdadeiro falso.

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