A LÍNGUA ENVERGONHADA

Não tem (tradução)

 Noel Rosa

O cinema falado é o grande culpado da transformação
Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez
Lá no morro, seu eu fizer uma falseta
A Risoleta desiste logo do francês e do Inglês
A gíria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou
Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote
Na gafieira dançar o Foxtrote
Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição
Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português
Amor lá no morro é amor pra chuchu
As rimas do samba não são I love you
E esse  negócio de alô, alô boy e alô Johnny
Só pode ser conversa de telefone.

 

As palavras em inglês são mais chiques do que em português. Prova disso é a profusão de expressões em inglês nas placas e publicidades do comércio e serviços.  Entrega virou delivery. Desconto se transformou na estranha expressão Off. Uma agência de turismo substituiu férias por vacance. Isso sem contar as palavras que vieram associadas à tecnologia da informação como mouse que designa o aparelhinho que funciona como cursor na tela do monitor. Apagar sumiu da linguagem e virou deletar, não só como linguagem ligada ao computador, mas também em outras situações. Competidores num determinado mercado agora são players. Os casos se transformaram em cases. Adequar um produto às necessidades do consumidor encontrou uma palavra mágica: customizar, que muita gente confunde com custo, mas vem do inglês customer (cliente).

Outro dia ouvi de um professor bastante conservador no que se refere aos cuidados com a língua, que ficou horrorizado quando um aluno lhe perguntou se podia deletar uma palavra que havia escrito erroneamente na prova. “Nós temos outras palavras para designar isso sem recorrer a outros idiomas como: apagar ou eliminar”, lamentou indignado. Esquece ele que muitas das palavras que utilizamos em origem bem distante do idioma de Camões.

Essa situação deixa a impressão de que somos envergonhados por falarmos o português, uma língua de subdesenvolvidos, de subalternos no concerto econômico mundial. Portanto, é preciso dar um upgrade nos negócios, utilizando o vernáculo da globalização, o inglês. Essa língua anglo-saxônica, que no século XVII era falada por menos de sete milhões de pessoas, hoje alcança um bilhão se considerarmos o seu uso como segunda língua. A culpa disso deve ser tributada ao velho império inglês, que nunca via o por do sol, pois se estendia do Oriente ao Ocidente, envolvendo boa parte da América, Austrália, África e Ásia. A língua de Shakespeare se espalhou com os produtos da indústria inglesa e a influência do seu vastíssimo império.

O que os ingleses começaram, os norte-americanos continuaram com extrema eficiência ao se transformarem na maior potência capitalista do globo. Com as inovações dos meios de comunicação, radio e televisão, no desenvolvimento do cinema, fotografia, gravações fonográficas etc colocaram o inglês na garupa

Mas o francês também teve sua época de ouro que começou no início do império brasileiro. Muitas expressões francesas ganharam até o direito de figurarem no dicionário, como: chofer, cabine, godê, guache, boné, bufê entre tantas outras. Mas com a expansão do capitalismo inglês o idioma de Zola, Victor Hugo e Flaubert ficou para trás. Como o francês saiu do currículo escolar, começa a se tornar raro encontrar alguém que fale o idioma.

Já se atribuiu também ao cinema falado a culpa pela difusão do idioma inglês. Noel Rosa imortalizou, nos anos 30, o tema através do samba “Não tem (tradução)” cuja letra, representou uma crítica aos novos costumes propagados pela introdução da fala no cinema, cujas imagens acompanhadas apenas de música ao vivo nas salas de exibição.

Hoje, por falta de um Noel, com suas letras satíricas e bem humoradas, ainda não criamos um samba, um rock ou Fox-Trote que satirize as conversas da era da tecnologia da informação. Mas quem sabe alguém se inspire no tema com uma letra dizendo: “Esse negócio de deletou, configurou, roteador... / Só pode ser conversa de computador”.