O humanitário          

                   Um senhor apoquentado por estar atrasado no relógio do tempo, aguardava ansioso a passagem de um táxi que lhe levasse ao local de coleta do santo pão de cada dia, quando desponta na esquina o velho coletivo da empresa irmãos apaulado.

                   Analisando a precariedade das ruas que o cercavam e os poucos táxi para muito uso, acenou a solicitação de parada e embarcou apressado no útil-desconfortável coletivo, que fazia a linha circular.

                   Dentro, em meio aqueles caquéticos corpos suados e o esforço sobre-humano para se respirar em função da poeira e do perturbante calor do verão causticante, aconteceu o imprevisto:

                   - Há uma pessoa desmaiada no banco traseiro, gritou a cobradora.

                   Ele, impulsionado pelo lado humano que sempre lhe caracterizou, partiu em ajuda à vítima causadora daquele grito. Era uma criança, constatou ao se aproximar. Pelo raquitismo e a maneira de trajar estimou pensativamente, com sua experiência de cidade grande, a causa daquele chocante desfalecimento infantil.

                   - É fome, dona Maria? Perguntou uma lambisgóia de cor preta e cabelos chamuscados, que mais parecia à imaginação da morte.

                   - Não, minha filha. É epilepsia. Respondeu calmamente a mãe moldada pelo sofrimento.

                   - Motorista, por favor, dobre a esquina e pare em frente ao pronto socorro, gritou o altivo senhor.

                   - Não posso meu cumpade, é contramão e não vou me arriscar a multas, respondeu serenamente o condutor.

                   Mas, na mente do infatigável senhor mil ideias fervilhavam em busca de solução que pudesse safar-lhe daquela situação aflitiva que lhe revivia um passado distante: o barco navegava calmamente nas caudalosas águas do baixo Purus. Na proa, três lindas crianças entretiam-se com um pequeno símio da família dos acaris. O velho piloto, frente à visão tão puerícia, deixou que o barco seguisse o curso do rio a seu bel prazer. Em coisas de segundos tudo aconteceu. O barco guinou bruscamente em um violento redemoinho d’água e um galho de imbaúba varreu impiedosamente aqueles três corpinhos inocentes. O símio, mais dado às aventuras, saltou acrobaticamente em um galho de junco, porém as suas crianças pagaram um alto tributo pela bela visão do piloto do pequeno barco, sendo tragadas pelas barrentas águas do caudaloso Purus.

                   Foi trazido à realidade dos fatos por um segundo grito, que mais expressava medo do que vontade de ajudar. Desta vez foi a imaginação da morte quem aboiou:

                   - A mulher também desmaiou!

                   Realmente, espumando e tomada por violentos estremecimentos a epilepsia fazia-se notar mais uma vez naquele já sofrido corpo de mãe. Cresceu a vontade de ajudar no coração daquele predestinado senhor que, num impulso desesperado, sacou de um revólver e ameaçadoramente falou para o condutor abnegado às leis:

                   - Se queres ver a tua família por mais vezes pára em frente ao Pronto Socorro. Um presságio de morte passou a dominar as emoções no coletivo. Olhares assustados presenciavam aquela severa vontade de ajudar, transparecida naquele dedo que cada vez mais pressionava o gatilho ao rosto frio e impassível do condutor que, para o alívio de todos, aderiu à ordenança do seguro e autoritário senhor.

                   Ao brecar indignado frente ao Pronto Socorro, a cena chamou a atenção de dois guardas que patrulhavam o trânsito. Espancado e algemado frente aos atônitos passageiros, o valente homem ainda exclamou:

                   - Leve-as ao Pronto Socorro!

                   Impelido para fora não teve o direito de ver o seu intento realizado.

                   Sem qualquer versão de defesa o seviciado senhor foi jogado atrás das grades, com aquela educação de contos e filmes policiais.

                   Às primeiras horas do novo dia, o manietado homem recebeu uma visita afagadora. Sorriso radiante nos lábios o motorista do coletivo fez-se aparecer estendendo-lhe um bonito buquê de flores, com um bilhetinho que dizia: o senhor está livre e muito obrigado pelo belíssimo exemplo. A pobre mulher, infelizmente, não resistiu ao tratamento, mas conseguimos salvar o fruto do seu ser. A criança está recuperada da maldita epilepsia e eu lhe aguardo para tirá-la da orfandade, por sentir-me indigno da guarda por ela.

                   Umas meias dúzias de lágrimas teimosas regaram o pequeno buquê de flores, enquanto o pensamento do ex-presidiário agradecia ao único ser que o compreendia...