O Garfo
Por Al Duarte | 07/05/2008 | FilosofiaA Criança Kierkegaard quer ser garfo, esse é o seu desejo. Quer
espetar o que quiser na mesa. O garfo é algo comum de seu mundo
pueril, inda que ele seja um menino um tanto estranho. Mas ele vê
nesse elemento comum uma faísca, algo solto dos significantes, uma
espécie de centro absurdo, brilhante, desejável. O garfo é desejável
na conjunção com o seu território: a mesa e a pluralidade interativa e
heterogênia que a compõe; os bocados apetitosos, as falas, os
silêncios... para Kierkegaard, o garfo é tão mais saboroso do que a
comida, o garfo é o caminho de um delírio estomacal, de um banquete
cujo saborear e o mastigar têm ondulações para o fantástico. A criança
e não o filósofo Kierkegaard faz um devir-garfo, e nesse devir costura
ao seu corpo um universo, a mesa. Ele anexa a si mesmo esse meio,
tomando o garfo como porta de entrada, como fio condutor, como
ferramenta para escavação de tuneis, como passagem, porta que se entra
delirando-a, sendo-a, utensílio que se manobra enxertando-se nele,
numa cibernética doméstica. Dois leitos de rios se beijam, difícil
identificar as fronteiras desses dois "entes": um corpo de criança e
um garfo; o desejo dissolve os invólucros para gerar uma paisagem
maior, um todo que é maior que a soma das partes. O corpo é aumentado,
se expande na inumanização, na incorporação das coisas, no
despedaçamento do membros que se enxertam nas coisas da mesa. Aumento
do corpo, incorporação dos fantasmas nas coisas, para um aumento de
vida.
Um que desejo enfrenta a noção essencialista dos entes: o garfo é
garfo, substância acabada, determinada pela sua origem - e triunfa. E
o desejo é de ser garfo. Romper a bolha individualizante da essência,
que prende os seres em solidões hierarquizadas. O desejo é ser garfo:
coragem de assassinar a metafisica e o Deus Ocidental, de misturar os
fenômenos, ato dionisíaco, coragem de devir. Não é um sedentário
desejo de mímese, isso seria preguiça cristalizadora e interrupção do
processo; é um desejo criador, transformador de espaços em paisagens,
que enverga os incorpóreos para fabricar paisagens, evocador das
forças virtuais. A paisagem da mesa conjugada ao próprio corpo é uma
liberação epistemológica/epidermológica de um fervilhar de sentidos.
Mesa já não tanto como o lugar da comida, mas do jogo; não o lugar da
família, mas da impessoalidade paisagística produzida pelo desejo. O
garfo é uma porta, é uma linha, é um fio condutor, é uma ponte: o
desejo elétrico o perpassa é se dissemina pela mesa inteira fazendo
emergir signos. O corpo se despedaça e se recostura na mesa, também
despedaçada, farejando os "bons encontros", aumentando o seu poder de
afetar e ser afetado.
A criança Kierkegaard diz: "Quero ser um garfo, assim posso espetar
tudo que quiser na mesa". O garfo é perfeito, é útil, é belo, é
brinquedo, é caminho, é chave para o mundo-mesa.
O garfo é a coisa que encontrando-se com o corpo libera o desejo para
a vastidão das possibilidades, liberdade para comer. E comer o que
quiser está além da mera provisão fisiológica do corpo, há ludismo, há
um brincar, há circo além do pão.
O Velho Kierkegaard pai retruca, ameaça, ele, a voz do peso, das
forças instituídas, do império dos significantes solidificados: "E se
nós o impedirmos?" A Criança resiste, vaza, atravessa os orifícios que
só um fluídeo desejo como bússola sabe encontrar: " Eu espeto vocês".
O garfo agora é arma de ataque/defesa; um reflexo, uma intuição que
surge no momento do perigo, um instinto de defesa, de distância,
provoca um deslocamento dos sentidos, uma nova desterritorialização do
garfo, faz nascer uma Novidade. É um reflexo e não uma reflexão que
faz o garfo nascer de novo; o garfo é desterritorializado de sua
função mais uma vez e arrastado para uma região provisória de
ataque/defesa, de combate; não é mais um talher, é um tridente de um
diabo, é uma faca, é uma ameaça aos perigos, às forças reativas que
querem solidificar o seu devir. É preciso repetir: não foi o pregresso
linear de um reflexão que sobrepôs mais uma função ao garfo, foi o
ejacular intuitivo de um corpo ameaçado, foi o pensamento que surgiu
do/no susto. O garfo é desterrado da casa do papai/mamãe, de sua
natureza, e se torna pródigo, floresce.
O devir-garfo é a posição política do pequeno Sôren, é uma práxis
lúdico-bélica micropolítica; o comer-lúdico, o pão e o circo
conquistado a agônicas metamorfoses, a guerras que devem margear um
egoismo sadio, tal como explosões atomicas são a superfície que produz
a generosa luz do Sol, "Querer o meu não é roubar o seu" (Raul
Seixas), egoismo que é origem da generosidade.
O devir-garfo é muito mais uma liberação/amplificação de vida
somática, uma ação desmedida e dionisíaca, que distorce a razão e
estrangula os significantes imperiosos do que um conscientizar-se; não
é exatamente uma tomada de consciência que espezinha a alienação e
devolve a aptidão revolucionária. A consciência crítica iluminada pelo
conhecimento cientifico e limpa da obscuridade das ideologias não é um
a priori para um devir-garfo. É muito mais provável que o criticismo
seja uma pesadume, gravidade, ressentimento, introspecção,
substanciação do ser, auto compaixão, niilismo e burocracia mental
que queira fatiar, segmentar, e paralisar o devir-garfo, e impor uma
cronologia, uma gênese, um diagrama científico transcendente. O
devir-garfo é mais uma embriaguez que um raciocinismo, exige a "dança
da cabeça e dos pés", que "a cabeça não seja mais que uma víscera do
corpo"(Nietzsche). Talvez haja um a priori para o devir-garfo: um
devir-criança; é a criança e não o filósofo Kierkegaard que inventa o
devir-garfo. Há um árduo/delicioso caminho estreito para se chegar a
um devir-garfo, uma poda de asas que intensifica o vôo, mas essa
cosmogonia para se parir a si mesmo criança é de uma solidão artística
sem modelos, é um caminho que não se pode desenhar senão com os pés,
que não serve senão para os pés que o desenham.
O devir-garfo é um cumular e transbordar de pragmatismo, talvez por
isso não haja linguagem que dê conta de sua gênese, de seus estágios,
de seus a prioris. Nenhuma teoria como retrato dos movimentos
orogenéticos do devir-garfo! Tem ele um pragmatismo semelhante ao
pensar ou o aprender, onde não há mapas universais, um mapa seria um
burocrático juízo, um ponto convergente onde todos os devires se
solidificariam... tornariam a experiência em experimento repetível,
universal. Não há mapas dados de antemão para os pensares, não há
mapas para os devires.
O devir-garfo é um gaguejar da linguagem somática.
A Criança Kierkegaard conquistou para si um novo nome: o Garfo, era
assim que sua família passou a lhe chamar. Conquistou o seu nome se
despersonalizando.