O GALà Armando Galan foi meu colega de classe no terceiro e quarto ano primário. Era desengonçado, vermelho como um pimentão e expressão de poucos amigos. Quando sentei ao seu lado na nova escola, recém construída, com carteiras novas, com cheiro de tinta fresca, fiquei assustado e bem teria preferido que fosse algum outro colega, mas como cheguei atrasado para a aula e era o único lugar disponível não havia o que escolher. Pensando bem, eu jamais teria coragem de me recusar a me sentar ao seu lado como fez um garotinho mimado em outra ocasião. A aula começou e eu tive pouco tempo para investigar meu novo parceiro. Aos poucos criei coragem e perguntei seu nome. “Armando Galan”, respondeu ele com uma voz um tanto rouca e seca. Ele tinha uma caligrafia horrível, bem pior do que a minha, que já não era nada excepcional. Escrevia com nervosismo, colocando a língua para fora e apertando o lápis sobre o papel o que gerava sérios problemas quando precisava apagar algum erro. Só faltava mesmo tirar o sapato e apagar o erro com o salto de borracha como fazia o personagem Manuelito do Quino nas saudosas tiras da Mafalda. Armando não tinha amigos na classe e pode-se dizer que eu era, sinceramente, seu único amigo na turma. Mas ele tinha lá suas qualidades, era um computador em matéria de raciocínio lógico-matemático. A professora colocava o problema na lousa e antes que alguém pudesse falar alguma coisa, ele já tinha a solução. Mas era apenas em matemática, que, infelizmente, ele era competente. Sua letra era um arraso de feia. Não dava para entender nada e seus cadernos eram rabiscados, sujos e amarrotados. Mas acabamos fazendo uma parceria. Ele me ajudava nas minhas dificuldades com cálculos e eu a ele em linguagem, história, geografia e ciências e assim tocamos o curso primário nos dois últimos anos sem muitas dificuldades. Um dia a professora solicitou que fizéssemos uma atividade em casa junto com o colega de carteira e o Armando ofereceu espontaneamente a casa dele. Sua mãe, uma senhora falante e simpática, não ajudava muito o nosso Armando. Seu primeiro comentário quando viu o meu caderno, foi elogiá-lo e criticar o dele, que não gostou muito da comparação. De minha parte achei que foi um exagero, pois eu não era um primor em termos de capricho, mas um elogio sempre é bom para o ego. Até hoje não entendi o problema do Armando Galan, que de Galã não tinha absolutamente nada, mas no fundo era um bom garoto. Depois de ter ido a sua casa, resolvi convidá-lo para jogar uma pelada em minha rua, que era sem saída e dava para brincar sem receio de um atropelamento. Ele apareceu, mas logo descobri que não foi uma boa idéia o convite. Ele era muito ruim de bola, praticamente sem noção do esporte bretão. Por azar, um menino da turma levou uma bola de borracha a qual ele tinha o maior dos cuidados. Não deu outra, o Armando deu uma bica na pelota que ao bater numa cerca estourou na hora. Ficou desagradável. O dono da bola me responsabilizou por ter trazido um grosso para jogar. Fiquei constrangido, mas não podia fazer nada e o Armando saiu de fininho para não correr o risco de apanhar da molecada revoltada com a perda da única bola disponível. Depois disso, nunca mais o convidei. Primeiro porque era um nó cego em matéria de futebol e depois não queria vê-lo apanhar do meu vizinho que sempre me lembrava de minha responsabilidade pela sua bola perdida. Terminamos o curso primário e raramente via o Armando e quase sempre na igreja do bairro. Não havia muito que conversar com ele. Não tinha assunto, nem novidades. Estava sempre de mau humor e provavelmente nunca conseguiu fazer amizades que dirá ter uma namorada. Alguns anos depois encontrei um colega de turma que morava próximo ao Armando que trouxe algumas novidades sobre ele, que não eram muito boas. Disse que ele era meio maluco e que havia se tornado uma pessoa muito complicada, roubando dinheiro de casa para beber, gerando sérios aborrecimentos para a família. O que terá acontecido com o Armando Galan? Um garoto bamba em cálculos que tinha dificuldades de comunicação e que era rejeitado pelas pessoas pela sua aparência estranha e mau humor. Teria sido o Armando um autista, ou melhor, dizendo um ásperger? Naqueles velhos tempos de periferia quem iria se preocupar com isso? Todos o classificavam como meio maluco como disse o colega que era seu vizinho. Pobre Armando! Poderia ter sido um gênio em matemática ou física se tivesse tido uma boa orientação, como o Einstein, que dizem ter sido, também, um ásperger? De família simples, sem muitos recursos, o meu companheiro de classe se perdeu por aí e eu que era seu único amigo na turma, que havia visitado a sua casa, conversado com sua mãe, não mantive a amizade, que talvez pudesse ter feito alguma diferença em sua vida. E eu me pergunto: por que eu aqui com meus botões estou a me lembrar de um colega de classe no longínquo curso primário sem nenhum propósito? Ou teria?