«34. A noção de obrigação representou na filosofia moral dos dois últimos séculos um papel de primeiro plano. Foi Kant que sobretudo contribuiu para pôr em relevo este aspecto da vida moral. Sabe-se que para ele a obrigação advinha do caráter essencial do bem, a ação boa, sendo aquela que é realizada por dever.

Por outro lado, esta mesma noção é, frequentemente, hoje, contestada ou esvaziada de seu conteúdo. Contestada entre os defensores da moral, como: “sem obrigação nem sanção”; esvaziada do seu conteúdo entre aqueles que reconduzem a consciência à pressão das representações coletivas ou do super-eu.

Há, então, lugar para elucidar o fenómeno da obrigação na sua ligação com aquele do valor moral. Aqui não mais a nossa proposta não é de procurar se e como a consciência da obrigação é fundada na realidade, não mais em explicar a génese ou estabelecer universalidade.

Pouco importa que esta noção, como outros conceitos morais (os da responsabilidade por exemplo ou de lei) se apresentem primeiro à nossa carga de conotações sociológicas (estamos obrigados para com qualquer um, em razão de um benefício recebido, de um salário ou simplesmente de uma condição dependente, servir, etc.,), conotações que não criticadas servem, muitas vezes, para passar dum modo rápido mas indevido do dever a Deus – Age-se unicamente por isto: constatando de facto a presença, na consciência humana da noção de obrigação, nós podemos tirá-la clara no livrar dos elementos adventícios que a acompanham de ordinário. Como sempre, o nosso método será descritivo, não dedutivo, ainda menos polémico.» (FINANCE, 1967:74-75).

«35. Que há uma consciência de obrigação, um fenómeno de obrigação, a conduta e a língua humanas, isso são índices manifestos. É necessário abrir os olhos para ver que os homens – dizem para nada prejulgar – e aquilo que sob todas as formas culturais, são ou se pretendem, na sua vida prática, dirigidos, dominados por certas normas, regras ou leis, que se impõem a eles no interior (como quem diz sem constrangimento exterior) como uma força talvez incrível. Não se age na atração do prazer ou dum impulso do instinto vital. O que estas regras exigem é, muitas vezes, contrário aos votos e aos interesses da natureza sensível.

Isso não é mais uma necessidade física. A força, os meios não erram sempre para violar a lei. O que não é possível é em violando subtrair-se à influência de fazer que ela não seja mais lei, que não condene aqueles que a violam. E, precisamente, porque falamos de violação é que: o homem se sente ligado; ele pode fazer o que não deve fazer-se, mas, se ele o faz, não pode fazer que não seja – e se ele é sincero, não se reconhece, censurado ou desprezível.

Ele tem por amor da vida ou de seus prazeres sacrificado suas razões para viver. A sua vida, tal como ele a faz por sua liberdade é, então, sem razão, axiologicamente absurda, privada da sua justificação. De onde o fenómeno do remorso, e que lá no meio onde a consciência é suficientemente evoluída, difere completamente do desgosto causado por uma boa ocasião perdida, um disparate ou um engano.

De lá, ainda, a ideia se espalha de uma certa dualidade no homem, ideia que é, por vezes, desenvolvida e endurecida em sistemas francamente dualistas, opondo vivamente o espírito e a matéria, a alma e o corpo. De lá, enfim, a ideia da consciência, como guia e juiz; de lá as expressões: minha consciência ordena; minha consciência me interdita; minha consciência me censura; a voz da consciência; o olho da consciência.» (Ibid. 75-76)

«36. A obrigação exprime-se sob a forma de uma necessidade. Por vezes ouvimo-nos dizer: É preciso agir assim! Isto não está como é preciso. Portanto esta necessidade é toda ela de uma outra ordem que a necessidade física. Sem dúvida esta diferença é ela pouco percetível, para uma consciência ainda grosseira: a obrigação moral, salvo talvez em casos excecionais, não se distingue da pressão social exercida através de interdições e de tabus.

Pouco a pouco, entretanto, da pura consciência da necessidade, emerge a consciência do valor que justifica esta necessidade, a consciência também da liberdade que diferencia a necessidade moral da necessidade natural. O vocabulário adapta-se a esta tomada de consciência: temos o obrigatório ao lado do necessário.

A necessidade moral vem pouco a pouco a proclamar a sua autonomia para trazer à pressão social: acima das leis, das regras, das normas próprias do clã, da tribo, da cidade, destacam-se da consciência aquelas que convêm ao homem, enquanto homem – estas leis não escritas que Sófocles celebrou pela boca de Antígona. De ordinário, a obrigação é trazida por um legislador divino. É um facto, portanto, que a consciência da obrigação se encontra, por vezes, no tempo dos agnósticos, ver também nos ateus.» (Ibid. 76)

«37. Da consideração objetiva, passe-se como precedentemente, à reflexão sobre a nossa própria experiência moral. Todos nós temos vivido de momentos onde a necessidade do dever fez-se mais imperiosa, ver trágico sob uma forma ora positiva, ora – e mais vezes talvez – negativa.

Eles podem fornecer uma excelente matéria à nossa análise, todavia, independentemente de que eles permaneçam no segredo de cada um, o elemento propriamente moral encontra-se quase sempre misturado dum modo inextrincável ao elemento social (peso dos costumes, das opiniões recebidas, desejo de ser aprovado, temor de ser censurado, etc.) e, sobretudo, o elemento religioso (temor de ofender a Deus).

Esta mistura é benéfica. Os elementos assim associados reforçam-se mutuamente, mas não facilita a nossa pesquisa. Uma reflexão rigorosa permitiria, sem dúvida, isolar o fator ético, mas aqui ainda teremos vantagens a partir dum caso fictício, convenientemente escolhido.

Suponhamos então – para variar os exemplos – que a ocasião se nos oferece em adquirir uma grande herança, falsificando um testamento. A vantagem económica de uma tal operação mete-se pelos olhos, mas pode juntar-se isso a uma real utilidade social.

O dinheiro, assim obtido, iria para boas obras, manutenção de escolas, hospitais, em lugar de ficar na posse de um herdeiro gastador ou debochado (semelhantemente, uma dose de veneno, oportunamente administrado foi por vezes poupado à humanidade pelos caprichos de um déspota).

Há sem dúvida inconvenientes. Podemos ser descobertos, parados, condenados. Arriscamo-nos a perder a estima, a confiança dos outros, a credibilidade e a honra. Portanto, pode-se imaginar um crime perfeito, onde estas probabilidades sejam praticamente nulas.» E, no entanto, tudo considerado, não é preciso isso. É claro como dia. Mas o que é que isto quer dizer? Que é que há sob o que não é preciso? Ensaie-se para ver melhor. (Ibid. 77).

«38. Eliminemos, primeiro, os elementos estranhos à moralidade. A previsão das consequências deploráveis. Vimos por que razão. Entretanto, há nisso um parecer que a nossa hipótese não exclui: o remorso. Isto entendido, nada revelará a minha fraude, mas se escapa nos outros, eu não me escapo mais a mim mesmo, eu serei o meu próprio carrasco. O temor do dever condenar-me a mim, não é a essência da obrigação?

É preciso distinguir. O sentimento do remorso pode ser encarado sob dois aspetos: materialmente como sentimento penoso; formalmente (segundo a intenção que dá um sentido a este facto psíquico), como sentimento penoso merecido. Se eu falsifico este testamento, eu sofrerei o dever de fazer o que não devia fazer.

Ora sob o primeiro aspecto, a previsão do remorso não tem, evidentemente, nenhum carácter ético. O mesmo sentimento desagradável pode ser experimentado fora de todo o contexto da moralidade, por exemplo, quando se age contra o seu hábito ou contra os usos. Certas pessoas não podem dormir sem ter três ou quatro vezes verificado se a porta do quarto está bem fechada, se não há ladrões debaixo da cama, etc., ou sem ter arrumado, deste ou daquele modo, as suas roupas.

 Importa notar aqui que a intensidade de um acto psíquico não depende unicamente do seu conteúdo objetivo. Por vezes está-se muito mais perturbado por um receio que a gente sabe ser vão, ou porque a gente terá faltado a um costume que sabemos ser ridículo, que pela violação de uma lei, que sabemos, portanto, ser justa e santa.

Tudo como o que uma mulher é mais comovida pela morte do seu cãozinho que daquele outro desconhecido que ela apreende pelo seu jornal, não teríamos razão para concluir que ela estaria disposta a sacrificar um homem para salvar o seu cãozinho.

Sob o segundo aspeto – como desprezar o motivado, o merecido – o remorso e, portanto, a previsão do remorso, tem bem esta viés, um caráter moral, mas o caráter dele vem todo inteiro do que motiva e merece desprezar: a violação do dever. Isto é dizer que a questão fica completa. A previsão do remorso não pode constituir a consciência da obrigação, pois que ela a supõe. Não haveria remorso nem por consequência previsão de remorso se eu não me sentisse obrigado de fazer o que eu me censurava de ter errado.

As palavras, ainda aqui, são ambíguas. Eu não deveria fazer isto, não tem sempre uma significação moral. Um candidato hesita, no exame, entre duas respostas e escolhe a pior.

Eu teria dado resposta de outra maneira, dirá ele mortificado; entendamos: isto era então a condição para ter êxito. Nada de mais aqui, diria Kant, que um imperativo hipotético, uma regra da prudência ordenada à comodidade.

Uma consciência por pouco que seja exercida apanha de improviso a diferença entre: eu não deverei dar esta resposta e eu não deverei enganar. O remorso é qualquer outra coisa que o arrependimento de uma boa ocasião perdida.

De resto, suposto que a partir de uma pilula ou de uma operação cirúrgica, me seja possível prevenir todo o sentimento de culpabilidade, esta segurança não mudaria nada ao imperativo moral, pelo contrário, perante esta hipótese, eu vejo claramente surgir um novo dever – aquele de recusar estes meios de violar impunemente o meu dever.

Muitos quererão hoje eliminar a consciência de culpabilidade que eles consideram como um sentimento mórbido. Mas se há, com efeito, uma consciência de culpabilidade, que procede de processos obscuros do subconsciente, de recordações ou de desejos recalcados, ou mesmo simplesmente de um julgamento falso e que, em consequência, deve ser tratado como uma doença, ou dissipado como uma ilusão, há disso uma outra, a verdadeira, que nasce de um julgamento correto da razão prática da qual ela é a ressonância afectiva.

Esta é boa, salutar e indispensável numa vida humana, onde a desordem moral ocupa sempre um lugar. É preciso, somente, trabalhar em harmonizar, cada vez mais, com o julgamento da razão de forma que a reação afetiva se proporcione ao valor (ou antivalor) objetivo.» (Ibid. 77-79)

«39. Eliminar-se-á, da mesma maneira, o temor das sanções sociais (perda de reputação, por exemplo) não somente porque na hipótese encarada, elas seriam evitadas, mas sobretudo porque a sua previsão, pode bem constituir um motivo eficaz de evitar o delito, mas nulamente, de sua natureza, um motivo moral.

O receio da sanção, como o do remorso não afastam a moral, logo que a sanção é temida como sanção merecida – se eu agi assim me desprezarão – e justamente – porque eu terei feito o que não preciso fazer. Não é preciso. A questão permanece.

E isto vale, mesmo se a sanção é uma sanção divina. Ela também não tem valor moral porque ela é suposta como proceder de um Deus justo. No caso onde – por uma hipótese absurda – o mal deveria ser recompensado e a virtude punida, ele não precisaria mais evitar isso, de um e praticar o outro. A tal ponto que o que pretenderia observar na lei moral somente a fim de evitar o castigo (por receio indignamente servil - como dizem os teologistas), ficaria abaixo do limiar da moralidade.

Recorde-se, portanto, o princípio da indução dos valores. É muitas vezes através da aprovação desejada e procurada dos familiares dos Mestres, dos camaradas admirados que a criança se eleva ao autêntico amor do bem.

Enfim, nós eliminamos, na nossa análise, os diversos sentimentos, impressões ou emoções que acompanham, de ordinário, a consciência da obrigação e sem os quais isto estaria como desarmado, mas não se confunde com ela.

Sobre isso diremos outro tanto da pressão exercida pelas representações, coletivas ou pelo super-eu, à qual os sociólogos, de uma parte, os psicanalistas de outra, pretendem reduzir o caráter imperativo do Dever.» (Ibid. 79-80)

«40. Depois de todas as eliminações, o que fica? Pode-se responder: fica tudo, fica o essencial. Não devo falsificar o testamento, não é necessário. Experimente uma necessidade, mas de um género todo especial.

Ela me orienta sem ser em mim, ao modo de uma determinação subjetiva, isto é, de uma determinação que afecta o sujeito nele mesmo, na sua realidade concreta, orientado os seus actos desde o seu primeiro surgimento (porque as minhas terminações nervosas, receberam uma certa determinação a seguir a uma queimadura, a minha consciência é uma consciência dolorosa). Nada disso, no caso da obrigação moral.

O conhecimento do dever, tanto como, não importa que outro conhecimento, não muda nada ao meu ser natural e isto porque a necessidade da obrigação não é uma necessidade física e ainda menos uma necessidade metafísica. É uma necessidade que não somente não exclui a liberdade, mas não tem sentido se não por ela. A obrigação moral é a necessidade própria da liberdade.» (Ibid. 80-81)

Bibliografia

FINANCE, Joseph de, S.J, (1967). Éthique Générale. Roma: Presses de l’Université Grégorienne (Tradução Capítulos: 34, 35, 36, 37, 38, 39 e 40). 

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo

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