O fascínio estonteante de um esplêndido Memorial: uma resenha sobre a obra “Memorial do Convento”, de José Saramago

 

                                             Raphael de Morais Trajano

 

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 24 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.         

 

“Memorial do Convento”, publicado em 1982, constitui uma escultura prosaica, oportunidade única para quem deseja estabelecer contato com uma literatura deslumbrante. Com o pretexto de relatar a história da construção de um convento em Mafra, no século XVIII, o autor expõe uma versão irreverente de acontecimentos que fizeram parte da história de Portugal, agora reinventados por seu embasamento e sua fantástica criatividade. Saramago transforma sua obra em um memorial de sonhos. O vencido ganha voz, mas não abandona a condição de vencido, para que não se torne mais um romance medíocre, com desfecho previsível, sem qualquer quebra de expectativa.

          O rei que prometeu levantar um convento caso Deus lhe presenteasse com um infante (D João V), a princesa austríaca que se tornou rainha de Portugal (D. Maria Ana Josefa), o padre que sonhava em voar (Bartolomeu de Gusmão), a mulher misteriosa que enxergava as pessoas por dentro e guardava as vontades dos homens (Blimunda de Jesus), o soldado que deixou a mão esquerda na guerra (Baltasar Mateus), o virtuoso músico italiano (Domenico Scarlatti) e outros magníficos personagens integram um romance permeado de maravilhas.

          Inspirado em fatos documentados, mas recheado de um elegantíssimo grau de ficção, “Memorial do Convento” faz com que o leitor assuma uma posição diante de aspectos geralmente ignorados e até desconhecidos por seres irreflexivos frente às exuberâncias expostas diariamente em páginas ilustradas da vida.

          A forma como a narrativa é desencadeada e suas doses de ironia refinada abrem extraordinários portais para reflexões acerca da história, do meio social e da humanidade em si, com suas “lepras” explicitadas de maneira crítica, metafórica e, sobretudo, alegórica.

          Não procuremos uma verdade na obra de Saramago, pois ela bem nos explica, com seus ares de grandeza, que a verdade não é única por ser multifacetada. Pontos de vista antagônicos são capazes de construir conceitos que se concatenam. A desconstrução da unidade verdadeira é apenas um dentre tantos compromissos estabelecidos entre a literatura e seu desbravador.

          Não é novidade que textos literários funcionam como espelhos. Saramago, em seu memorial, porém, cumpre um papel exacerbadamente superior, de uma magnitude que vai além do que se pode classificar como “de boa qualidade”. O reflexo dos reflexos! Um espelho personificado e dotado de mãos, a distribuir murros sobre a face do egrégio leitor, que se depara o tempo inteiro com críticas bem construídas, perfeitamente aplicáveis a  qualquer tempo, por seu conteúdo genericamente humano.

          Independente da época em que se situa, a humanidade possui virtudes, fraquezas (maiores que as virtudes), falsas modéstias, atrocidades (infinitamente superiores), hipocrisia, demagogia, covardia, ia, ia, etc. o livro torna possível e conveniente esse tipo de observação.

          Analisando a fundo a figura de Padre Bartolomeu, que enfrenta uma diversidade de perigos a fim de concretizar a criação de sua tão sonhada passarola, passeamos delicadamente pelas vielas da fantasia, de toda a utopia que enlaça o ser humano na persistência infindável por ensejos de autonomia e liberdade.

          Contagiados pela ânsia do padre, Blimunda, Baltasar e Scarlatti compram para si um sonho, batalhando com as forças que têm, que são muitas e grandiosas, para que não seja em vão o empenho de todos em realizar a façanha de ver o mundo do alto. O desejo torna-se unânime e sobrevive a ânsia de caminhar pelos céus.

          O livro nos convida a (re)pensar pontos pouco valorizados pela euforia mundana. Sua filosofia peneirada fere levemente, revirando e transformando as idéias, derrubando e construindo conceitos, ancorando num paradoxo extraordinário e purificador. Mas vale lembrar que, para que tudo isso aconteça, é necessário que o leitor estabeleça uma espécie de acordo com a obra, suas complicações e seu impacto em vestes de leveza. É primordial a aceitação de seu teor fictício e terminantemente proibido ser ignorante a ponto de contestar de forma violenta o conteúdo deste primor literário, pois não há nele o que deva ser massacrado, tenho em vista que seu intuito não é convencer-nos a respeito de nada.

          Sonhos! Os de Baltasar, Blimunda, Padre Bartolomeu, os do próprio Rei, os de D. Maria Ana Josefa, os do Infante, D. Francisco, os de Domenico Scarlatti, os sonhos do povo que necessita trabalhar na construção do tempo. Todos os sonhos movimentos pela crença, pela fé, pela certeza. O que movimenta a convicção? O que está além da compreensão, o que não habita neste campo, o que a igreja durante séculos prometeu que havia por trás deste inferno a céu aberto.

          As questões religiosas também são tratadas com extrema ironia. A soberania da igreja e a existência de um Deus manipulador, que favorece os fortes e permite que os fracos sejam vilipendiados, são pontos de partida para a abordagem de vários fatores. Pode-se traçar um paralelo com outra obra mais recente de Saramago chamado “As intermitências da morte”. Nela, o autor problematiza a questão da morte, deixando claro que da mesma sobrevivem todas as religiões, pois o homem segue na busca por algo que desconhece, escorando-se em vis preceitos, de seres que visam à concretização dos próprios interesses. Pensemos nisso.

          Há ainda a problemática da desigualdade, que aparece constantemente, destacando-se o tratamento recebido por seres pertencentes a camadas socias distintas. Ao deixar este mundo, vítima de desmame, o infante D. Pedro, que seria herdeiro da coroa portuguesa, recebe em Lisboa toda a homenagem devida a um cidadão de sangue azul, com os luxos e cerimônias merecidos. Já o filho caçula de Álvaro Diogo e Inês Antónia, sobrinho de Baltasar, foi só um anjinho a enterrar, como a tantos outros sucede, mal se dá pelo acontecimento...

          Se fôssemos relacionar, comentar e analisar todos os principais conflitos presentes em “Memorial do Convento”, seria necessário publicar uma obra exclusiva, extensa, ou melhor, infinita. Paraíso literário! Uma aula ministrada por um simples autodidata. Talvez sejam estas possíveis definições para este esplêndido memorial. Uma exibição em prosa da mais intensa poesia. Todos merecem a exuberância criativa do mestre Saramago.

Aplausos.