O Fantasma De Um Olho Só


Dentre os muitos apelidos angariados, sempre graças a uma observação severa dos fatos, pândega foi o que mais lhe agradou. Nalguns lugares é tido como missionário. Não fosse ele, atestam, e iriam acreditar que Gregório de Matos não passava de “um reles boêmio, quase louco, sujo, a percorrer os engenhos do Recôncavo de viola em punho”. Mas ele tirou isso a limpo, colocando nos anais que o poeta baiano fora de fato o “Homero de Lundu”, e que dentre tantas quadras escreveu: “não há mulher desprezada, galã desfavorecido, que deixe de ir ao quilombo, dançar o seu bocadinho”.

Mesmo com um olho, ele enxergava bastante.

Viu um casal que se amou tanto, que optou pelo desamor, até tornar a se amar tanto outra vez.

Quando não via, ouvia dizer, e bastava ouvir dizer para ir conferir. Afinal, esta era sua missão. Certa vez proclamaram que a modinha era proveniente da Europa. Disseram isso em pleno século XX. Mas como a sua missão remontava ao tempo das naus, sua observação  era acurada e sua memória infalível, ele resgatou para a pátria a qual fora designado a verdade sobre a modinha. Nasceu no Brasil ainda colônia, assevera ele,  com “os toques e músicas lascivas” do mulato carioca Domingos Caldas Barbosa, que sacudiu a corte lisboeta de Dona Maria I dedilhando versos às mulheres com a malicia de seus estribilhos.  Dez anos antes Caldas Barbosa o mesmo fazia na boemia carioca. Data: 1762.

Eis porque o chamam de missionário. Ele se detém sobre os fatos, regatando-lhes a pureza original. Mesmo que todos esqueçam depois. Aliás, justamente por tanto esquecerem, ele acabou se tornando um vulto.  

A questão das naus, por exemplo, sempre lhe deu nos nervos, principalmente quando ensinada erroneamente às crianças, que cresceriam com conceitos errôneos. Ele nunca se conformou com a versão, que poderia fazer algum sentido no século XVI.

- Mas no XX, tenha dó(!) - exclama ele alterado, desatando a falar - será possível? Os integrantes de uma armada espanhola, fundeada na ilha de São João, MA, depararam-se com o irrefutável indício da presença portuguesa no mesmo cenário, quase um século antes, inscrito no tronco das árvores -1438. Quer mais? A  desastrada expedição de João Coelho, 1488. E as incursões de Duarte Pacheco Pereira? Navegante de primeira linha, que já mandava cartas para D. Manoel I, veja só os trechos: “...e tanto se dilata a sua grandeza e corre com muita longura, que de uma parte nem de outra não foi visto nem sabido o fim e cabo dela...”, escrevera ele, onde mais adiante arremata que ao longo dessa imensa costa “ é achado muito e fino Brasil com outras muitas cousas de que os navios nestes reinos vêm grandemente carregados...”

Ele coça o olho restante, irritado, pois diante de tanta documentação, qual motivo insistirem com a ladainha de um tropeço aleatório de naus?

- Nunca entendi isso – desabafa ele cansado – então não sabem que  em tal jornada, além da poética presença de Caminha, Pedro Álvares tivera também por companheiro o experiente, e já conhecedor do Brasil, Duarte Pacheco Pereira?

Numa das raras entrevistas que concedeu, registrou-se o trecho quando ele passa a responder piscando o olho, e iniciando as sentenças com tom jocoso:

- Como vocês podem ver...  minha missão “desde saída entortou”.
A natureza dos fatos tem sido um vulto, isso sim. Foi mais fácil para eles me transformarem num fantasma. Mas eu não desisto. Mesmo com um olho só, continuarei meu trabalho.

- O que aconteceu com o outro olho? – indaga o jornalista.

- Aconteceu? Nada. Nasci assim. Por isso me enviaram nesta missão. Disseram que se eu tivesse dois olhos, não agüentaria.