Ex-jogador

Quando me disseram que ele estava morando por aqui por perto, não pude perder a oportunidade. Eu precisava encontrá-lo. As últimas notícias a respeito dele não eram nada boas. Disseram que ele estava se acabando na bebida. Eu precisava falar com ele antes que fosse tarde demais. Por isso, perguntei a uma porção de pessoas antes de localizá-lo no ponto local onde costuma filar uma bebida, um boteco bem simples, no bairro onde moras de favor segundo me informaram. Bebe todos os dias, a maioria por conta da casa. Eu chego ao local e ele está exatamente onde disseram; na mesma mesa de sempre. Bem abatido fisicamente, parece que vai cair da cadeira a qualquer momento, tamanha é a apatia que demonstra; seu olhar é perdido, suas mãos levemente trêmulas. Não lembra em nada o craque que já foi.

Aproximo-me para iniciar o diálogo mais esperado de minha vida nos últimos trinta anos. Ele percebe minha presença, mas nem se dá ao trabalho de olhar-me. Parece não fazer diferença.

― Bom dia. O senhor sabe quem eu sou?

― Sim, eu sei.

― Bem, eu já esperava. Já apareci inúmeras vezes na TV devido ao sucesso de minha carreira empresarial. Mas o motivo de eu estar aqui está relacionado com isso apenas em parte, o que, na verdade, significa muito para mim. Pode não parecer, mas eu acompanhei sua carreira desde quando o senhor jogava futebol de salão no Ríver, aquele time de bairro que o senhor defendeu quando ainda tinha uns 20 anos. Eu era apenas um garoto de 16 anos e tinha ido assistir a um jogo do seu time contra outro num torneio anual em nosso bairro. Eu me lembro de que naqueles dias eu estava passando uma crise existencial sem tamanho. Estava muito desacreditado de mim mesmo; a pressão do vestibular; a crise no casamento de meus pais; meu complexo de magreza... Eu me sentia um lixo inútil; estava realmente mal a ponto de querer tirar minha própria vida. Eu gostava de assistir futebol, mas aqueles jogos de futsal não mais me empolgavam. Mas, naquele dia, não oi um jogo qualquer: eu chegara atrasado ao ginásio municipal devido a um problema que precisei resolver antes de ir. Cheguei lá e o jogo já tinha uns quatro minutos de tempo jogado; procurei um lugar para sentar e, quando me acomodei vi um lance que me encheu os olhos: o atacante deu um chute bem forte quase á queima roupa, pois estava bem na entrada da área, que é pequena, e o goleiro conseguiu, num lance de extrema agilidade, tocar na bola e forçá-la a bater no travessão, o que já fora um milagre. Mas, com a força do chute, a bola voltou para o chão, bateu e subiu de novo; com os defensores caídos no chão, pois se jogaram para tentar interceptar o chute, a bola voltou a cair, só que agora bem mais devagar, e sem zagueiro em condições de afastá-la da área. Ela descia praticamente no pé do mesmo atacante que chutara, só que agora mais perto do gol. O goleiro, assim como os zagueiros, estava também no chão, sem tempo para se levantar e agarrar a bola. Todos no ginásio imaginaram o mesmo que eu: o atacante não vai chutar a bola ainda no ar em direção ao gol, pois ela está bem à sua frente, os defensores batidos e o gol, enorme, aberto pronto para ter suas redes estufadas pela bola. Eu já escutava gritos de gol quando ele chutou; bem pertinho de mim na arquibancada, alguns torcedores, eufóricos, se levantaram e ergueram os braços, outros já se posicionavam para pular de seu lugar, mas, inesperadamente, o goleiro conseguiu esticar o pé direito paralelamente à linha de gol e a bola, caprichosamente, explodiu na perna do goleiro, bem na altura da canela, e ricocheteou para longe do gol. Ouvi gritos serem abafados socos no ar serem interrompidos; havia torcedores engolindo em seco; outros expressaram seu susto com um grito bem agudo, enfim, o gol, praticamente certo, não existiu; foi abortada por uma bem posicionada perna salvadora. Pensei: que goleiro! Que agilidade e destreza! É muita experiência de jogo para impedir um gol desse mesmo estando no chão! Qual a minha surpresa ao saber que o goleiro não era goleiro: um minuto depois da magnífica defesa, o atleta deu o posto debaixo da meta para outro goleiro, este sim, com uniforme de goleiro. Eu não havia percebido que o jogador que fizera o a defesa milagrosa estava com o mesmo uniforme de linha. Explicaram-me que o árbitro permitira que um jogador de linha ficasse no lugar do goleiro expulso por dois minutos. Após esse tempo, o goleiro original voltou, mas o atleta que o substituíra já havia deixado sua marca de craque. Porém, não bastasse a fantástica defesa, esse jogador começou a dar dribles e fazer jogadas que, literalmente, me deixaram sem fôlego, pois cortavam-me o ar tamanha era a minha admiração diante de tanta habilidade com a bola.

O velho jogador não comentou nada.

― Eu sei que isso tudo já deve ter sido dito ao senhor por muitas vezes, mas é que para mim, tem um grande significado. Naquela ocasião, eu estava muito pra baixo, muito chateado e pensando seriamente em ir embora para bem longe e até mesmo fazer algo ainda pior; mas aquele dia me deu uma sensação maravilhosa: senti vontade de continuar vivo para ver mais jogadas daquelas, mais gols sensacionais, enfim, não quis perder mais nenhum lance seu. Fiquei sabendo que você ainda iria jogar mais uma partida naquele torneio e não perdi tempo em garantir meu lugar naquela final. E mais uma vez você não decepcionou, jogou muito, fez jogadas maravilhosas e três dos quatro gols da vitória de seu time. Procurei acompanhar de perto sua carreira, pedi para um amigo manter-me informado sobre seu paradeiro e ele descobriu que você fora contratado por uma equipe para disputar o campeonato estadual. Então passei a acompanhar todos os teus jogos. Naquele campeonato, eu vi e fiquei convencido de que estavas destinado a ser um dos grandes jogadores deste país e que, para isso, seria apenas questão de tempo. Quando soube que você era muito pobre e que aquele contrato começou a mudar a sua vida, isso me animou também para conquistar os meus sonhos. Ver suas jogadas e gols por muito tempo me inspirou a fazer também um trabalho extraordinário nos lugares em que trabalhei. Na verdade, você me inspirou a viver, correr riscos, ousar; sua ousadia em tentar novos dribles, novas jogadas de efeito m e faziam perguntar-me: “por que eu não posso criar também?”. Para mim, sua carreira foi fonte de inspiração; eu acreditei em meu potencial ao testemunhar tudo o que você fez. Você assombrava as pessoas com seus passes milimétricos e suas jogadas de efeito que desafiavam qualquer adversário. Sem saber, você me deu naquele dia da defesa inacreditável uma verdadeira razão para viver: acreditar e buscar a realização dos meus sonhos e perceber que a vida pode ser mágica, cheia de grandes feitos e desafios. Ao acompanhar o resto de sua carreira, percebi que tudo aquilo acontecia e você não perdia nunca a simplicidade, a humildade; isso também me ensinou muito, pois aprendi que, embora possamos estar em um grande nível de sucesso na vida, não podemos perder de vista de onde viemos. Porém, infelizmente, apesar de sua humildade, seu sucesso não durou muito tempo, pois uma séria contusão o tirou dos gramados por muito tempo até você decidir parar de vez, o que não foi muito bem assimilado por você, levando-o a beber e desgostar-se da vida.

O ex-atleta permanecia imóvel e calado.

― Desculpe dizer isso, eu não pretendia ofendê-lo, apenas estou constatando aqui o que me diziam antes de chegar a este bar. Entretanto, ainda assim, você foi fundamental para a minha virada de vida. Eu passei a trabalhar em cima de meus sonhos, colocando metas cada vez mais altas, o que me fez trabalhar intensamente para vencer e chegar aonde cheguei. Isso mesmo: um jogador de futebol, com seu exemplo de coragem, força e criatividade me estimulou a vencer também e é por isso que estou aqui. Você me proporcionou uma nova chance de ver significado em minha existência e, hoje, ajudo muitas pessoas com o dinheiro que eu ganho: obras assistenciais, geração de emprego e renda a partir de pequenos financiamentos às camadas mais populares. Graças à sua forma de jogar e conduzir a carreira, eu me motivei a ser grande também, porém, hoje, minha maior grandeza é reconhecer que, sem sua arte naquele momento de minha vida, talvez eu não estivesse aqui hoje. Por isso, vim agradecê-lo por tudo e, sem querer ofender, ajudá-lo também, pois você merece muito mais do que isso por toda a alegria que nos deu com sua arte; aqui está um cheque que lhe trago com muito gosto e, para provar que não é mera promoção empresarial, manterei em segredo da imprensa, pois você merece esse respeito. Por favor, aceite, porque é de coração em agradecimento por você te me dado ânimo, alegria e esperança para lutar todos os dias até minhas conquistas se concretizarem e, hoje, isso significa que muitas outras pessoas foram ajudadas a partir de minhas realizações. Você me deu outro significado para minha vida e é, verdadeiramente, um herói de nosso país. Muito obrigado!

Sem dizer mais nada, ele deixou o cheque na mesa com uma imensa quantia para os padrões atuais do ex-jogador. O valor garantiria ao ex-atleta sair da casa de favor onde mora e, ainda, ter uma renda mensal digna se depositado em poupança. Porém, ele levantou-se, pegou o papel e, com lágrimas nos olhos, rasgou o cheque em pedacinhos para, logo em seguida, jogá-los num cesto de lixo do bar e se retirar do local, deixando perplexas algumas poucas testemunhas do encontro, entre elas o dono do bar.

O velho jogador não precisaria daquele dinheiro para viver melhor. Apenas as palavras que ouviu foram o suficiente para também sentir que sua vida acabara de ganhar um novo significado.