O ESTADO DE EXCEÇÃO NÃO DECLARADO: UMA ENTRADA NOS LABIRINTOS KAFKIANOS DO DIREITO MODERNO

 

RESUMO:

A lógica de opressão das estruturas soberanas nos espaços de exceção contemporâneos encontra no Direito Moderno a sua legitimidade. A pesquisa disposta pretende, a partir de uma leitura crítica do romance “O Processo” de Franz Kafka,investigar os limites históricos e funcionais do Estado de Direito, denunciando a burocratização da vida, simbolizada pelos “labirintos kafkianos”, e as imposturas legais, extrapolando o conhecimento literário, engajando tal obra com a realidade jurídica contemporânea. O Estado de Exceção não declarado (como regra) tornou-se sustentáculo do Direito Moderno, revelando as farsas judiciais e suas contradições, identificando a parábola (Diante da Lei) contida no romance como paradigma da sociedade atual,reconhecendo uma humanidade expropriada de toda existência e seu vínculo com o ordenamento jurídico,que será fio condutor para se fazer reflexões acerca da dessubstancialização da lei e ainda sobre noções sócio-políticas – como Estado, Direito e Justiça – a fim de propor perspectivas emancipatórias para o Direito e, sobretudo, para a sociedade.

Introdução

O mundo enigmático de Franz Kafka, situado no final do século XIX e início do século XX, propõe uma catarse de meditação conjunta, promovendo reflexões acerca da própria condição humana perante a Modernidade, cercada de culpa e burocracia. Esse universo moralmente sedativo que o homem moderno moldou – e por ele foi moldado – o transpôs para um estado de coisas que consumiu seu direito de existir, tornando-o mera engrenagem do sistema.

Nota-se a essencialidade de se fazer uma leitura crítica da vida desse outro homem, o homo sapiens sapiens, pois sua compreensão pode desvelar toda uma lógica de opressão das estruturas soberanas nos múltiplos segmentos sociais, identificando o estado de exceção permanente como técnica do Estado de Direito para legitimar a lógica do poder absoluto, como Agamben declara “o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante”(AGAMBEN, 2004, p. 10) . Ingressou-se, pois, o excepcional na normalidade, traçando regras e procedimentos cuja estrutura baseia-se nesse paradigma burguês, condicionando de maneira avassaladora a conduta humana e usurpando substancialmente as próprias funções estatais.

Valendo-se disso, o presente trabalho partirá do romance kafkiano “O Processo” para (re)discutirmos limites históricos e funcionais do Estado de Direito na Modernidade e, ainda,compreender a burocratização da vida do homem moderno, a situação trágica da humanidade, e sua relação com o ordenamento jurídico, revelando os reflexos daquela, neste. Explorar-se-á os efeitos da dessubstancialização da lei e as farsas judiciais na sociedade moderna, buscando-se flagrar um mosaico estilhaçado de uma incompreensível regra geral.

No primeiro tópico esboçaremos a trajetória do Direito emergido das revoluções burguesas no século XIX, analisando o aparelho judicial e suas contradições na modernidade, reconhecendo os campos de exceção promovidos pelo sistema que coisificam aqueles que buscam a garantia de uma lei não mais potente, vazia de sentido, tornando-se apenas engrenagens de um mecanismo que mal conhecem, demonstrando a falência do ordenamento jurídico, um espelho da própria crise do homem moderno. O Processo kafkiano,perpassando o mundo absurdo do estado de exceção flagrado através de um complicado jogo de estranhamento, revelará o caráter despótico das instâncias jurídicas e a impostora substancialidade da lei e ainda sua inatingibilidade, fazendo uso da parábola contida no romance – Diante da Lei.

O personagem K. desperta para uma realidade absurda e desesperadora: “Alguém deveria ter contato mentiras a respeito de Joseph K., pois, não tendo feito nada de condenável, uma bela manhã ele foi preso” (KAFKA, 1997, p. 7). Infiltrando-se em um bailar de incertezas, K. nos permite refletir sobre a acepção de justiça pelo Direito Moderno, adentrando os corredores sombrios da modernidade a fim de conhecer a suplantação do Estado de Direito pelo Estado de Exceção, ainda que camuflado. Partindo disso, compilaremos, no segundo tópico, os conceitos circunscritos na relação apresentada no romance kafkiano entre Estado de Direito e Estado de Exceção.

Adiante, este trabalho trará, em seu terceiro tópico, inferências acerca dos fins do Direito moderno e os meios adotados, as deformações que ele  carrega constituindo reflexos da própria fragmentação da vida do homem moderno, repensando o Direito e seu tempo histórico, possibilitando a efetivação dos princípios humanistas proferidos no discurso jurídico, sendo possível, pois, visualizar um outro Direito.

1 Tudo que é sólido se desvanece no ar: a falência do Direito Moderno 

A ordem jurídica é a mais excelente das tragédias.

Platão 

Com as Revoluções Burguesas, o poder absolutista dos reis, a organização estamental e os estatutos jurídicos especiais foram extinguidos. As leis ganharam uma nova roupagem, pautadas agora no princípio da igualdade – as normas jurídicas valeriam  para todos –, liberdade – o direito regia  homens livres (dentro de seus limites) –  e fraternidade – os princípios humanistas conquistaram espaço no discurso jurídico. Todavia, a concepção liberal de igualdade formal passou a ser relativizada, uma vez que o ideal de igualdade não mais atraía tanto como a início. Percebeu-se que a reação contra os odiosos privilégios da nobreza e do clero na sociedade pós-feudal apenas legitimou um outro sistema que ofertaria esses mesmos privilégios a um outro grupo social, naturalizando esse sistema alienante que tornou supérfluo o próprio ser humano. E é nesse contexto que o Direito Moderno começa a se desvanecer no ar. 

1.1 A dessubstancialização da lei e as farsas judiciais nos tempos modernos

O movimento humanista e racionalista modelou o Direito Moderno, rompendo com o pensamento místico e religioso, em um solo onde o feudalismo degradou-se e germinava um outro sistema, o capitalismo.É evidente que as concepções de direito e justiça não permaneceriam refratárias às mudanças advindas do homem renascentista e, assim, o ordenamento jurídico e a sociedade remodelaram-se, incorporando o pluralismo político, o cientificismo e todos os valores dessa revolução cultural.

Essa nova perspectiva histórica revelou não apenas a positividade dos ideais burgueses absorvidos, mas tornou-se, notadamente, a representação dos oprimidos e alienados pelo sistema econômico brutal consolidado, que dissolveu os homens em engrenagens burocratizadas de vida própria. Houve, então, um confronto entre o culto à razão trazida pelos ideais iluministas e a tecnização da razão, denunciando a lógica cartesiana e a própria instrumentalização do ser humano, flagrando as ficções do Direito moderno imerso em contradições substanciais que impuseram ao homem moderno uma forma coisificada de existir e, simultaneamente, a dessubstancialização da lei, em que esta vige,porém, esvaziada de qualquer sentido. Constata-se que há uma verdadeira crise no Direito Moderno expressa no romance kafkiano e observada por De La Torre Rangel, citado por Wolkmer em sua obra Fundamentos da História do Direito, sublinhando que:

Todos os primados do Direito chamado moderno, seus fundamentos, o direito individual como direito subjetivo, o patrimônio como bem jurídico, a livre manifestação da vontade, estão abalados, sendotão evidente a crise do Estado moderno e de seu direito que não há mais quem defenda a sua manutenção tal como está (RANGEL, apud WOLKMER, 2006, p. 43).

O esfacelamento do Estado e de seu ordenamento jurídico, manifestando a verdadeira crise do paradigma moderno, exige, conforme Rangel, uma modificação em todos os aspectos, seja jurídico, político, econômico e social. Tal crise permeia toda a narrativa kafkiana, que segue em torno do desconhecimento do motivo pelo qual Joseph K. está sendo processado e do sujeito ativo . Vê-se o velamento da lei e de todos os valores renascentistas que há pouco emergiram e que, agora, permanecem ocultos pelas arbitrariedades do poder legitimado por uma lei sem face. O sistema jurídico moderno passa a todo instante por ficções jurídicas para efetivar interesses particulares, soando como um ataque aos próprios ideais que o consolidou.

 Sob a vestimenta da inocência, K. ilustra bem o homem “emancipado pela razão” que digere sem pensar a gama de informações lançadas pelo sistema doutrinador que o “retifica”. A lógica do medo perfaz todo o trajeto de K. em suas tentativas de alcançar a Lei. A lei que culpa, é oculta; o processo posto tornou-se um desprocesso imposto. Relembrando a Pré-história e as barbáries dessa época, as farsas judiciais legitimam arbitrariedades em nome de um poder, que pune não mais sob suplícios, porém, pune melhor, atingindo não somente o corpo, mas, principalmente, a alma, uma nova punição que penetra todo corpo social,  tal como analisa Foucault em sua obra “Vigiar e Punir”:

Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar uma nova estratégia para o exercício de castigar. E a “reforma” propriamente dita, tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor, punir talvez com severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade, inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir (FOUCAULT, 1997, p.69).

Conforme Foucault, a lei, legitimando o poder de punir, apropria-se da punição a fim de estabelecer um controle sobre o corpo do sujeito, infiltrando-se neste e o docilizando. Como uma denúncia do Direito Moderno reconhecido pelas garantias individuais e coletivas baseadas nos ideais iluministas, K. representa o homem moderno assolado por uma culpa inexplicável projetada por uma autoridade impessoal que aniquila sua existência através de uma lei velada pela burocracia e inatingível por indivíduos comuns, que incorpora essa culpa e, absurdamente, aceita sua punição. Curioso notar que todo o romance kafkiano é tomado por uma frieza e pelo absurdo que aludem exatamente à realidade do homem moderno. Kafka faz uso de toda a matéria podre da sociedade para revelar a realidade e suas contradições, sem otimismo, porém, trazendo uma reflexão: combate ao mundo! 

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