O esfacelamento da fazenda Monte Alegre um vintém por braça


Raimundo Ferreira Lima, sucessor do patriarca José Ferreira Lima um dos pioneiros da sesmaria Monte Alegre, foi bem sucedido em todos os seus empreendimentos, durante o seu longo período de vida de 96 anos, de 1890 a 1884. Deixou um grande legado em bens e terras que foi distribuído de forma equitativa entre seus filhos, após a sua morte.

Ainda em pleno vigor e lucidez, Raimundo Ferreira Lima se preocupou com o casamento endogâmico de seus queridos filhos, porém se empenhou pessoalmente para casar o mancebo Martins Ferreira Lima, o mais matuto da família e de airosidade desafortunada, pois herdou as características fisionômicas de sua irmã mais velha, cognominada de ‘Bicota’, uma referencia ao formato de seu nariz meio atucanado.

Mais ou menos no ano de 1854, Raimundo Ferreira Lima partiu da fazenda Monte Alegre juntamente com o seu filho Martins Ferreira em direção ao sítio São Romão, situado na freguesia de São Vicente Ferrer de Lavras de Mangabeira, a fim de tratar pessoalmente com o seu irmão Antonio Ferreira Lima acerca do casamento de seu filho com uma de suas filhas, chamada Carolina Ferreira Lima, pois ainda naqueles tempos os casamentos eram arranjados pelos pais, muitas vezes sem o conhecimento e consentimento dos filhos.

Ela era uma moça muito bonita, no entanto, Martins seu primo era meio desajeitado. Mas a moça, assim mesmo, aceitou ficar noiva naquele mesmo dia. É interessante, que os noivos não tiveram muito tempo para conversar, durante aquela rápida visita ao Senhor Antonio Ferreira. No dia seguinte, pai e filho voltaram à fazenda Monte Alegre, sendo a festa de casamento realizada posteriormente, na data acertada com pais da noiva.

Martins nasceu mais ou menos em 1833, na fazenda Monte Alegre pertencente à freguesia de São Mateus, e casou-se lá pelos idos de 1855. O enlace matrimonial de Martins Ferreira Lima e Carolina Ferreira Lima foi celebrado na matriz de São Vicente Ferrer, e o casal teve oito filhos e três filhas: Anicete Ferreira Lima, Joaquim Ferreira Lima, José Martins de Lima, Manoel Martins de Lima, Donana Ferreira Lima, Juliana Martins de Lima, Ingraça Martins de Lima, Francisco Martins de Lima, Petrunílio Martins de Lima, Raimundo Martins de Lima e Antonio Martins de Lima.

Martins morava na Cajazeira e recebeu uma grande herança em terras e gado de seu pai Raimundo Ferreira Lima, mas teve uma atitude perdulária. Depois de tomar posse das terras, começou a vendê-las a vintém a braça, ficando apenas com a propriedade das Cajazeiras. Viveu uma vida folgada e regalada, mas legou aos seus descendentes, minguadas braças de terras que causaram disputas e rixas entre os seus sucessores. Nessa época cessaram os rangidos estridentes das moendas do engenho velho na Gangorra, e o vai-e-vem vexado das mulheres que se revezavam puxando o alfenim nas beiradas das gamelas. Sob a abóbada arqueada desse velho casarão, agora só se ouvia o tropel monótono dos burros adestrados rolando lentamente as bolandeiras, enquanto, os meeiros raspavam a fécula de mandioca.

Anicete Ferreira Lima um dos seus queridos filhos não teve herança entre os Martins das Cajazeiras, mas sua grande sorte foi casar-se com Joana Ferreira Lima, filha do mais ilustre chefe da Vacaria, o senhor José Higino Pereira, do qual herdou 50 braças de terras com uma légua de comprimento. Por isso Irene, filha de Antonio Frutuoso, casada com Victor Ferreira Lima, neto de Martins,  dizia para seus filhos, sempre que tinha uma pequena rixa com seu marido:

- Meus filhos essa raça de Martins não presta, mas teu pai só ainda escapa por ter uma bandinha do sangue dos Ginos. Quem me dera que teu pai fosse paciente com os seus irmãos, Higino e Antonio de Anicete!

Nessa época de vacas magras e ainda de preconceitos contra os judeus, até Carolina quis renegar as suas origens, segundo os relatos de Antonio de Aniceto, ela de forma insistente sugeriu a Martins retirar o nome “Ferreira Lima” da família, pois já estava enjoada de tanto ver esse sobrenome ser tão repetido na sua descendência.

A sugestão foi acatada, Martins passou a ter o sobrenome de Filgueiras Lima, talvez uma referência a uma família portuguesa descendente de João Quesado Filgueiras Lima que fora casado com a baiana Maria Pereira de Castro, os quais se instalaram na região do Cariri no final do século XVIII. O casal nunca soube, mas esse cognome Filgueiras era proveniente de antigos judeus que vieram para o Brasil de Amsterdã (FILGUEIRAS, 1990). O mais estranho é que Carolina mudou o seu sobrenome para Carolina Gurgulina de Lima. Esse nome Gurgulina era muito esquisito, mas essa foi a sua preferência, pelo menos era muito diferente de todos outros naquele sertão, e questão de “mau gosto” não se discute.

O nome mais importante com sobrenome Gurgulino é o de Heitor Gurgulino de Souza um acadêmico Brasileiro (nascido em São Lourenço, Minas Gerais, 1 de Agosto de 1928). Gurgulino foi uma das personalidades brasileiras mais importantes no cenário político internacional, como reitor da Universidade das Nações Unidas, onde ocupou também o cargo de subsecretário geral das Nações Unidas tendo participado de diversas conferências da ONU. Atualmente é Vice-Presidente, The Club of Rome (e Preside seu Capítulo Brasileiro), e Secretário-Geral Eleito da International Association of University President (WIKIPÉDIA, 2009 a).

Martins fugiu da tradição dos seus antecessores, pois dispensou os casamentos endogâmicos, porém alguns dos seus filhos, pela força do pai Abraão, findaram se casando em famílias com ascendência marrana. Anicete Ferreira Lima, um dos filhos mais novos de Martins, casou-se com Joana Josefa Pereira, filha de José Higino Pereira, um marrano por ascendência. Desse tronco é descendente, a maioria dos habitantes de Vacaria, entre os quais se destacaram os irmãos: Higino Ferreira Lima, Antonio Ferreira Lima, Victor Ferreira Lima e Glória Ferreira, casada com Antonio Domingo.

Certo dia um dos irmãos de Carolina que morava no sítio São Romão veio fazer-lhe uma visita nas Cajazeiras. Naquele tempo o casal já tinha rapazes e moças. Carolina tinha uma filha de nome Ingraça, uma adolescente tímida e sisuda, de formas corporais ligeiramente rechonchudas e que passava a maior parte do tempo escondida na camarinha do velho casarão.

Naquela tarde ensolarada dos idos de 1875, quando mãe e filha trocavam raros afagos, sentadas num banquinho da varanda, de repente Carolina vislumbra a figura inconfundível de seu irmão mais velho, a desapear do cavalo baio. 

Surpresa com a visita inesperada, Carolina, gritou:

- Filha é seu tio que acaba de chegar!

Naquele momento a mãe correu em direção ao querido irmão para dar-lhe boas vindas, enquanto isso, a menina desvairada arrancou em direção a uma cerca de pau-a-pique no quintal, mas como usava uma roupa de algodão muito larga e comprida ficou dependurada de cabeça para baixo, pela barra da sai na ponta de uma estaca de aroeira. O mais cômico é que naquela época as mulheres não usavam calcinhas, aí as suas nádegas ficaram expostas ao sol já declinante daquele verão de setembro.

Sem delongas, o irmão de Carolina se dirigiu à cerca e aplicou-lhe uma boa sova no traseiro, bradando irascível:

- Oh égua!  Deixa de ser brava, parece que nunca viu gente!

Dizem que as palmadas não foram de brincadeira, pois os hematomas só desapareceram alguns dias depois.

Quando veio a seca de 1877 a família conseguiu escapar as duras penas, ainda que os flagelados lhe tenham causado consideráveis baixas no seu já minguado rebanho. Lá pelos idos de 1890, Joaquim Ferreira Lima um dos filhos mais velhos de Martins, já um tanto quanto desgostoso com as atitudes perdulárias de seu pai, resolveu tentar sua sorte na região Amazônica, quando muitos nordestinos se aventuram em busca do ouro branco, que jorrava abundatemente dos serengais nativos, sendo que esta viagem para esse bravo cearense não teve mais retorno.

Ainda escreveu para família dizendo que além de cozinheiro num seringal, também cuidava de uma granja e já tinha adquirido uns bons trocados. O seu desejo era retornar ao velho e tórrido torrão natal, mas segundo relatos de conhecidos, quando foi acertar as contas com o seringalista, foi assainado por capatazes do patrão para não receber o pagamento, que lhe havia sido mais uma vez aprazado.

Durante o período da grande seca do Nordeste que começou em 1877, milhares de retirantes acossados pela sede, pelo chão resequido, testemunharam a devastação de suas lavoura a morte de suas crianças e de suas cabeças de gado. Isso causou um grande êxodo da sua população para São Paulo, mas principalmente para a Amazônia, atraídos pela propaganda de ganho rápido e fácil na exploração da borracha. Conforme um estudo elaborado pelo professor Samuel Benchimol no período de 1877 a 1900, pelo menos 158.125 nordestinos, mais conhecidos como cearenses, haviam emigrado para a Amazônia. Dorneles Câmara em seu trabalho intitulado “Colocação no Amazonas dos flagelados do Nordeste”, publicado em 1919, calcula que de 1877 a 1890 a população cearense ficou reduzida a um terço, 300 mil pessoas desapareceram, umas porque faleceram e outras porque emigraram (citado por SANTOS, 2009).

Naquela época houve uma peste conhecida como cólera no Ceará, muitas pessoas morrem da Vacaria ao Monte Alegre. Um das filhas de Raimundo Martins morreu e foi sepultada na Cajazeira, a beira da estrada, sua catatumba se encontra perto da casa de seu pai até o dia de hoje. Na propriedade que Sr. Antonio de Aniceto, herdou de seu pai Aniceto Ferreira Lima no sítio Vacaria, existe um pé de tamarindo, perto da casa de Gonzaga, onde muitas pessoas foram enterradas nesse local, dizimadas pela fome, cólera, varíola e até febre amarela. Diziam os mais antigos, que lá se via assombração e vozes de almas penadas, especialmente nas luas cheias.

A cólera (ou cólera asiática) é uma doença causada pelo vibrião colérico (Vibrio cholerae), uma bactéria em forma de vírgula ou bastonete que se multiplica rapidamente no intestino humano produzindo uma potente toxina que provoca diarréia intensa. Ela afeta apenas os seres humanos e a sua transmissão é diretamente dos dejetos fecais de doentes por ingestão oral, principalmente em água contaminada (WIKIPÉDIA, 2009 b).

Texto de um jornal da época: “O povo está desesperado. A fome vai acabar gerando a violência.”  Viam-se jovens mulheres, cobertas de trapos, desgrenhadas, os pés ensangüentados, a pele terrivelmente queimada, caindo pelas ruas. Os homens, levando duas ou três crianças, andavam dezenas de quilômetros. Vendiam até as próprias roupas do corpo em troca de alguma coisa para comer. Muitas pessoas ficaram cegas, pela exposição contínua ao sol. Apareciam casos de cólera, de febre amarela e de varíola (NANNI, 2008).

Martins viveu até o ano de 1929, tempo suficiente para ver os seus filhos e netos ocuparem as regiões áridas do sertão, de Monte Alegre ao Pau D’Arco, alguns, debandaram para outras regiões menos inóspitas, porém, a maioria persistiu ficar de forma resilente como cactos em lajeiros, no chão duro e batido, onde os tabuleiros ressequidos abundam pelo processo antropogênico de ocupação desordenada da caatinga.

Meu sertão, minha gente e minha vida. Trechos contados por Antonio Ferreira Lima (Antonio de Anicete) e escritos por Antonio Anicete de Lima.

BIBLIOGRAFIA

FILGUEIRAS, M.A. Família Filgueiras - outras origens dos ramos do norte. Disponível em: <http://amweb.com.br/filgueiras/origens_outros_do_norte.html>. Acessado em: 27 de novembro de 2011.

NANNI, R. O drama das secas - 1958. Disponível em: <http://74.125.95.132/search?q=cache:TqWfKoaFC4J:www.oretorno.com.br/arquivos/texto_nanni.doc+Colera+seca+1877&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acessado em: 18 de fevereiro de 2009.

SANTOS, E. A saga nordestina em Santarém. Disponível em: <http://www.jesocarneiro.com/a-saga-nordestina-em-santarem.html/comment-page-1>. Acessado em: 17 de novembro de 2009.

WIKIPÉDIA. Heitor Gurgulino de Souza. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Heitor_Gurgulino_de_Souza>. Acessado em: 18 de novembro de 2009 a.

WIKIPÉDIA. Cólera. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3lera>. Acessado em: 18 de novembro de 2009 b.