O Disco Voador

Autor: Eduardo Silveira


O sol dourava as ruas empoeiradas da cidadezinha.
A manhã se arrastava pachorrenta, como se estivesse preguiçosamente entediada.
Não havia nenhum alarde na cidade. Nenhum barulho estranho.
Seu Otacílio debruçado sobre o balcão de sua mercearia, por sinal, a única da cidade, observava com atenção seus quatro empregados que andavam de um lado pro outro, separando e arrumando as mercadorias que haviam chegado no dia anterior.
De repente, ouviu uma voz chamar seu nome lá fora.
- Seu Tacílio!
- Ô Seu Tacílio!
Seu Otacílio abeirou-se à janela, conferiu quem era e disse: - Ô Comadre Joana, se achegue.
- Me desculpa, Seu Tacílio lhe incomodar assim, viu?
Ora, ora comadre, o que é isso? Que bons ventos lhe trazem aqui?
Olha, Cumpadre Tacílio, eu queria ter uma prosa com vosmicê, mas como é um assunto particular, eu preferia que fosse na sua casa.
Do que se trata, comadre Joana. Tô achando a senhora meio aperreada.- Observou ele.
Como eu disse, compadre, seria melhor ter essa prosa na sua casa, pode ser?
Tá bom, tá bom. - Concordou ele balançando a cabeça afirmativamente.
Faz o seguinte, apareça por lá depois das sete horas, porque aí eu já estarei em casa, tá certo?
Tá certo. - Concordou ela, e despediu-se: - Inté mais tarde, cumpadre.
Até mais tarde então, comadre. - Respondeu ele.
Seu Otacílio era um homem muito bem de vida, para os padrões da cidade. E por isso tinha muitos afilhados. As famílias o convidavam para batizar seus filhos, sempre com a esperança de que em uma hora de "aperto", ele as pudesse ajudar. E ele sabia disso.
Por isso mesmo ele "cobrava" das comadres, uns "favores especiais", por algum dinheirinho emprestado a perder de vista, algum pedaço de carne de sol, ou alguma mercadoria a mais que ele, "sem perceber", enviava junto com as compras. E que as comadres, algumas mais afoitas, às vezes, "pagavam", mesmo sem ele ter enviado nada.
E assim, ele ia vivendo e fazendo as suas "cobranças pessoais" sem maiores atribulações.
E naquela manhã quente, debruçado no balcão, ele ficou matutando o que a comadre poderia querer com ele. Uma coisa era certa, ela não fazia o seu tipo.
Sete e meia da noite.
Cumpadre Tácílio!- Ele ouviu o chamado.
Ô comadre Joana, vamos entrando, vamos entrando. - Disse ele abrindo a porta e indicando uma cadeira na varanda pra ela sentar.
Comadre Joana estava acompanhada do seu filho Raimundinho. Rapaz arisco, avesso a conversa.
Lembra de Raimundinho? - Perguntou ela.
Mas é claro que me lembro! Se bem que já fazia um bom tempo que não o via. Rapaz, você cresceu, hein? Tá taludo, forte! - Elogiou seu Otacílio
Cumprimenta teu padrinho, Mundinho. Olha a falta de educação.
Bença, Padim
Ora, ora, não se apoquente, comadre. Deus te abençoe, meu filho. Jovem é assim mesmo. - Riu-se ele.
Aceita um café, um refresco, comadre? - Perguntou ele.
Não. Não. Muito obrigada.
Muito bem ? Falou Seu Otacílio e continuou: - A que devo o motivo dessa sua visita, comadre?
É o seguinte, cumpadre. - Falou ela, esfregando as mãos nervosamente.
Esse menino disse que viu um disco avoador. Um bicho desses aí...um avião do outro mundo.
Como é que é? - Perguntou Seu Otacílio contendo o riso.
É isso aí que o sinhô ouviu. Ele anda dizendo há muito tempo, que viu um tal de disco avoador e que até avuou nele. Eu não conheço nada disso. Tô apalermada até hoje. Fico aperreada quando ele sai à noite e diz que vai passear de disco voador. Por isso vim conversar com vosmicê, porque o cumpadre é homem letrado e conhece as coisas, né?
Peraí. Peraí. Comadre. Deixa eu ver se entendi direito.- e virando-se para Raimundinho perguntou pausadamente: - Meu filho, você disse pra sua mãe que viu um disco voador? É isso?
É isso mesmo, Padim! - Respondeu Raimundinho vermelho de vergonha, e acrescentou: - Não só vi, como andei nele também.
Olha isso, cumpadre! Eu posso acreditar nesse menino? Esse menino tá leso das idéia, tá doido, só pode ser.- Falou a comadre nervosa.
Raimundinho, indignado falou assim: - Olha Padim, eu sei o que eu vi, se ela não acredita, eu não posso fazer nada.
-Calma, calma, meu filho, - Falou seu Otacílio tentando fazer o rapaz se acalmar.
Mainha não me entende, Padim.- Falou o rapaz quase as lágrimas.
Olha só, você quer me contar o que aconteceu? Pode falar comigo que eu vou ouvi-lo, tá bem? - Disse paternalmente seu Otacílio.
Comadre, vamos fazer o seguinte, deixa ele dormir aqui em casa hoje e aí nós vamos conversar com calma e quem sabe a gente esclareça esse caso, hein? - Perguntou o compadre.
Tá certo, tá certo, cumpadre.
Não. - Falou Raimundinho indignado. E emendou: Quero ir pra minha casa.
Que é isso, menino? Respeita teu padim, ora!
Calma, calma. - falou seu Otacílio. - Vamos ficar combinados assim, tá certo?
Tá certo. - Disse a comadre nervosa.
Olha Raimundinho, eu sei que esses assuntos são muito complicados, mas eu tenho certeza de que nós dois vamos nos entender perfeitamente, que tal? Aceita ficar aqui?
Tá certo, tá certo então. - Respondeu Raimundinho olhando pro chão e torcendo as mãos aflito.
A comadre se despediu deixando o rapaz lá com o padrinho.
Vamos entrar, meu rapaz! - Disse seu Otacílio para Raimundinho.
Raimundinho entrou e ficou pasmo com a beleza da casa do seu padrinho. Era tanto quadro nas paredes, tinha um oratório muito bonito no canto da sala. Uma mesa grande de vidro no meio da sala. Sem dúvida o padim tinha dinheiro. - Pensou ele.
Bom, meu filho, vou até a cozinha fazer um refresco pra gente, que tal? Gosta de limonada?
Gosto. Gosto sim, padim! - respondeu Raimundinho.
Muito bem, então fique aí à vontade, tá? - Falou Seu Otacílio.
Tá bem. Tá bem.- respondeu Raimundinho de um jeito que Seu Otacílio estranhou.
Dali a alguns minutos.
Olha o refresco geladinho. Aproveita que tá uma delícia, viu?
Hummmm...Adoro limonada. - Disse Raimundinho sorrindo.
Seu Otacílio reparou, agora sob a luz da sala, que o rapaz tinha uns trejeitos um tanto quanto esquisitos.
Com quantos anos você está agora, Raimundinho? - Perguntou o padrinho.
Eu tenho dezessete. Faço dezoito daqui a quatro meses.
Dezoito anos. É uma bela idade, sabia? - Afirmou o padrinho.
Não sei. Não sei. Dizem que é, né? - respondeu Raimundinho sem saber direito o que dizer.
Tenha certeza de que é sim, viu? - Confirmou o padrinho.
Mas... e quanto essa estória de disco voador, como foi isso? - Perguntou o padrinho curioso.
Raimundinho começou a falar, a falar e quanto mais ele falava, mais seu Otacílio ia confirmando as suas suspeitas.
Raimundinho era homossexual! Era baitola! Era viado!
Seu Otacílio se levantou, olhou bem pra ele e disparou: - Desde quando você é baitola, seu moleque?
Raimundinho levou um susto. Olhou para o padrinho vermelho de vergonha, ficou de pé também e disse: - eu vou embora. Quero ir embora.
Seu Otacílio tirou o cinto.
Os olhos de Raimundinho se arregalaram de espanto.
Não padim, não me bata não! - Implorou Raimundinho.
Fala então! - Perguntou Seu Otacílio enrolando a ponta do cinto de couro grosso na mão e deixando a enorme fivela prateada balançando na outra ponta.
Desde quando você é baitola, seu safado? - esbravejou o padrinho.
Desde os meus doze anos. - Falou Raimundinho, baixinho, encostado no canto da parede.
Desde os doze?
É.
Com quantos já andastes?
Não sei.
Perdeu a conta?
Sim.
E por que essa estória de disco voador? - Quis saber o padrinho.
Eu inventei pra poder sair e ir encontrar com meus amigos. - respondeu Raimundinho encolhido no canto da parede.
Seus amigos? Ou seus machos, seu safado?
Meus namorados. - respondeu demonstrando medo e arrogância também.
Vem cá! - Ordenou o padrinho.
Aonde?
Ali no quarto.
Pra que, padim?
Acho que está na hora de você me mostrar o seu disco voador. - E dizendo isto, acercou-se do rapaz, passou-lhe o braço por sobre os ombros com firmeza.
Padim. - Espantou-se um Raimundinho de olhar matreiro e sorriso discreto, de quem sabia que iria fazer mais uma "viagem".

No dia seguinte.
O sol da manhã continuava quente, dourando as ruas empoeiradas, e a vida continuava , lenta, incólume, brilhante, tal qual um disco voador.


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