O dever
Por Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo | 01/04/2012 | FilosofiaÉ corrente na linguagem vulgar utilizarem-se os termos “Dever” e “Obrigação”, com sentidos equivalentes, sem a preocupação de os distinguir, com rigor, e isto, precisamente, porque o conceito predominante assenta na ideia de que tais termos implicam o cumprimento de algo que é intrínseco, ou extrinsecamente, a toda a pessoa.
Na verdade e no mais profundo do seu sentido, os vocábulos são distintos porque enquanto que: a Obrigação tem um caráter de necessidade moral, que vincula o sujeito a um determinado procedimento; o Dever significa esse mesmo procedimento, isto é, aquela é o aspeto formal e subjetivo; este, o aspeto material e objetivo de uma mesma realidade da existência humana.
Na prática, a utilização indistinta dos dois termos não produz efeitos diferentes, na medida em que, dizer-se que uma pessoa “tem a obrigação de cumprir os seus Deveres” ou “que tem o Dever de cumprir as suas obrigações”, não influi no cumprimento do ato a executar, seja de natureza objetiva ou subjetiva.
Na sua práxis quotidiana o homem é um ser em liberdade, dependente dos seus Deveres, e como tal, capaz de não respeitar as suas obrigações ou de as assumir, precisamente porque possuindo a capacidade relativa de se autodeterminar, num vasto universo de comportamentos, é livre quanto às decisões que toma, e igual e proporcionalmente responsável, desde que as tome no pleno uso das suas faculdades humanas, respondendo pelos seus atos, rigorosamente no cumprimento dos seus Deveres.
O homem como ser “obrigável” que é, só o será desde que reconheça tal obrigatoriedade, como ordem hierárquica de obrigações, isto é, ninguém pode ser materialmente obrigado em relação a Deveres que não existem, ou que não convergem para um Dever Absoluto, fundamento de todos os Deveres, por conseguinte, tem de haver uma “Obrigatoriedade Ontológica” para que o homem se obrigue.
Todos os Deveres ou obrigações provêm de um Dever Originário, primordial, transcendente, supremo e absoluto, e que consiste, justamente, na obrigação radical de cumprir a vontade do Criador.
A obrigação de cumprir as leis positivas integra-se no ordenamento funcional da humanidade, e a violação àquelas leis conduz à aplicação de sanções penais terrenas, por uma autoridade, à qual se obedece e na qual se reconhecem certas prerrogativas, que são limitadas, imperfeitas e finitas.
Todavia, independentemente deste positivismo ou “extrinsequíssimo ético”, que numa perspectiva moral e religiosa se deve rejeitar, existe o Poder Divino, ao qual estão subordinadas todas as leis.
O homem como ser que não existe por si mesmo, mas antes “devido a Outro a quem se deve”, tem, portanto, a obrigação de responder ao “apelo que o chamou à existência” porque “tem para com Deus o Dever de viver como homem”, à imagem e semelhança do seu Criador, Este consubstanciado na família religiosa, como uma ideia de esperança e salvação. Só depois de interiorizado este Dever Absoluto é que o homem deve assumir as obrigações terrenas.
O Dever integra a moral geral ou teórica, à qual também se costuma chamar “Ciência do Dever”. Certamente que para se conhecer a existência do Dever é necessário recorrer à observação psicológica, e interrogar a consciência moral que neste, como noutros aspetos da vida, funciona como testemunha e juiz, respetivamente.
O Dever é manifestado pela consciência moral, que a partir dos primeiros princípios da moralidade nos conduzem para a verdade e para o bem e aos quais os escolásticos chamam “sindérese”. Este termo designa a faculdade daqueles princípios que consistem na fórmula: “Temos de praticar o Bem e evitar o Mal”. “
O Bem e o Mal opõem-se”. “O Bem é preferível ao Mal”, logo, a partir dos primeiros princípios da moralidade, nasce o Dever, através de juízos e sentimentos morais, consistindo o Dever na obrigação de agir ou não agir.
O Dever é, também, um terceiro motivo de ação, juntamente com o interesse e a inclinação. A consciência atesta-nos que o Dever é a lei moral e, como tal, apresenta três caraterísticas principais: é Obrigatório, Absoluto e Universal.
Obrigatório – Porque constitui a necessidade moral de obedecer, impõe-se à vontade, sem a forçar. A lei moral é incompatível com a liberdade, na medida em que é inútil impor preceitos a um ser que, previamente, já está determinado. Este caráter de obrigação do Dever, ou lei mortal, deve ser sempre cognoscível e praticável, porque uma obrigação só se impõe na medida em que é conhecida.
Absoluto – Porque ordena, incondicionalmente, impõe uma ação que deve ser querida por si mesma, independentemente dos fins. Este caráter absoluto do Dever foi classificado por Kant como “Imperativo Categórico”, em oposição ao “Imperativo Poético”, que ordena sob condição.
Universal – Porque as prescrições da lei moral, e portanto do Dever, são as mesmas para todos os homens, de todos os países. Dado que a moralidade exprime uma relação da natureza humana com o seu fim e, como todos os homens estão abrangidos pela mesma natureza, e pelo mesmo fim, então todos estão subordinados à mesma lei.
Da análise da consciência moral resultou a revelação da existência do Dever, o qual se pode definir como “O Bem enquanto Obrigatório”, em que o Bem será a matéria do Dever e o caráter obrigatório como que a sua forma.
a) O bem moral em si ou objetivo é o bem absoluto último, do qual nos podemos aproximar gradualmente. Toda a faculdade é um poder, necessidade de operar, tendência para um bem determinado, e a natureza humana compreende muitas faculdades logo, o seu bem absoluto consistirá no desenvolvimento máximo e na satisfação completa de todas as energias, funcionando aqui a faculdade racional como organizadora de todos os movimentos, de forma a tornar o homem como um todo harmónico, cujas diferentes partes constituem um sistema de forças hierarquicamente ordenadas.
O respeito pela ordem essencial das coisas seria a fórmula do bem moral, sendo insuficiente que se realize a ordem em nós, sem que a façamos reinar fora de nós, ordenar os nossos atos em relação com a humanidade. O homem não pode realizar a ordem total, senão pelo cumprimento de um Dever fundamental, Dever dos Deveres, e que é o Dever para com Deus.
b) A Obrigação como forma do Dever não se apoia na razão, porque esta, por si só, é incapaz de fundar a obrigação de constituir o Dever. O verdadeiro fundamento da obrigação pode encontrar-se num legislador distinto e superior ao homem: Deus.
De fato, perante o bem e o mal, a natureza humana vê-se em presença de uma fórmula imperativa, e não apenas de uma indicação ideal, que a inteligência seria forçada a aprovar, mas à qual a vontade teria o direito de se subtrair.
Por outro lado, aceitando-se Deus com todos os seus atributos, verifica-se que a vontade infinitamente perfeita de Deus, autor das relações morais, teve que a “impor às vontades finitas e imperfeitas que a devem observar”.
Indubitavelmente que a aceitação e cumprimento do Dever, como norma humana da qualidade de ser-homem, implica todo um conjunto de consequências, que só o homem as pode verdadeiramente sentir, ao nível objetivo e subjetivo.
a) Responsabilidade – O Bem gera o Dever, e este liga a Liberdade e o ato livre, executado sob a força da lei, originando a responsabilidade desta, provém o mérito ou o demérito. Em consequência da liberdade de que é dotado, o homem pode violar a lei.
A responsabilidade consiste na necessidade em que se encontra o agente, livre de dar razão dos seus atos à autoridade superior, a fim de lhes sofrer as consequências. A responsabilidade correspondente à imputabilidade, e daí o dizer-se: “eu sou responsável e este ato é-me imputável”.
A responsabilidade moral supõe no agente, duas condições: o livre arbítrio e a consciência da obrigação. O livre arbítrio é suscetível de variações correspondentes aos seus graus, isto é, se o agente está sujeito a pressões internas ou externas, sobre as quais não tem controlo ou, se pelo contrário, é influenciado pelo hábito, pela paixão, pelo temperamento.
Finalmente, a responsabilidade moral pode, ainda, variar segundo o grau de conhecimento que tem da lei o agente, mas a ignorância vencível não desculpa todos os nossos atos, podendo, apenas, atenuar a nossa responsabilidade.
A responsabilidade, além de moral, pode, ainda, classificar-se em legal ou penal, que se funda nas leis positivas, promulgadas pela autoridade civil e, coletiva ou solidária.
b) Logicamente que da responsabilidade derivam o mérito e o demérito. O mérito absoluto consiste no grau de perfeição moral a que se chega, pelo cumprimento do Dever, é o aumento do nosso valor moral. O mérito, em sentido relativo e transitivo, significa o direito à recompensa e à felicidade. Também o mérito é suscetível de graus, em função da pureza da intenção e da elevação do motivo que a inspira.
O mérito e o demérito, não são tanto graduados em função da obrigação que motivou a prática do ato, como, pelo contrário, o ato envolve o cumprimento de Deveres de estrita justiça. Por outro lado, a dificuldade e o esforço são fundamento comum da virtude, mas não são a sua condição necessária, nem a sua medida exata.
c) No cumprimento do Dever e nas consequências da ação, tem importância de relevo, a maior ou menor virtude do sujeito que age. A virtude pode definir-se como sendo: «o hábito de agir em conformidade com o Dever, adquirido pela repetição frequente de atos moralmente bons».
Neste aspeto, todo o ato pode ser virtuoso, ou bom e meritório, consistindo a diferença no fato de o ato virtuoso ser aquele que é realizado, já por tendência para agir sempre do mesmo modo, de tal forma o sujeito encontra nessa prática certa facilidade e até prazer, enquanto que o ato bom, ou meritório, apenas necessário, que seja executado em ordem ao Dever.
Apesar disso, o ato do bem dever ser essencialmente inteligente e voluntário. Em complemento da definição de virtude, já enunciada, pode-se acrescentar que «é o hábito de obedecer ao Dever com inteligência, amor e energia».
d) Ainda no campo das consequências do Dever, temos, por fim, as sanções que são, fundamentalmente, o prémio ou o castigo da prática de atos pelo sujeito responsável, isto é, são o conjunto de recompensas e de castigos, ligados à observância ou violação da lei.
Toda a ação moral implica para o próprio agente, virtude e felicidade, ou vício e infortúnio. A sanção moral tem um caráter de consequência natural e necessária, relativamente à observância ou violação da Lei. A sanção moral traduz-se numa pena em ordem à reparação da disciplina absoluta, quando há violação da lei.
A sanção penal reveste um tríplice caráter, na medida em que é reparadora, medicinal e exemplar. Há diversas sanções morais que se apresentam em dois grandes grupos: temporais ou imperfeitos e futuras ou perfeitas. Um sistema de sanções só poderá ser perfeito e idealmente justo quando for universal, rigorosamente proporcional e indiscutível.
A análise do Dever enquanto práxis valorativa da conduta humana, parece constituir uma reflexão pertinente e adequada à situação ecuménica que hoje se nos depara. Com efeito, é para melhor compreender tais obrigações que regem as sociedades humanas em geral, e a comunidade portuguesa em particular, que o estudo da existência, natureza e consequências do Dever, se afigura importante.
Na verdade, o atual quadro político-institucional nacional suscita algumas reservas quanto ao Dever de defesa e dinamização de valores fundamentais, cada vez mais postos em causa por determinados esboços político-partidários e até por certas estruturas intelectuais.
Já na segunda década do século XXI urge assumir um comportamento ético-religioso, político-cultural e económico-social, de tal sorte que se possam eliminar situações aberrantes, no sentido de se tornar uma realidade o Dever de defender o direito à vida com dignidade.
Muitos são os Deveres que se impõem a toda a pessoa verdadeiramente humana: o Dever de se retribuir o trabalho com salários justos e pagos atempadamente; o Dever de todos os responsáveis pela governação garantirem um estatuto verdadeiramente digno, com a manutenção de todos os direitos, legal e legitimamente adquiridos, mas também o Dever de cada um cumprir com as suas obrigações para com o seu semelhante e com a sociedade em geral.
Na sua práxis quotidiana, o homem é um ser em liberdade-dependente dos seus Deveres e, como tal, capaz de não respeitar as suas obrigações ou de as assumir, precisamente porque, possuindo a capacidade relativa de se autodeterminar, num vasto universo de comportamentos, é livre quanto às decisões que toma, e igual e proporcionalmente responsável desde que as tome no pleno uso das suas faculdades humanas, respondendo pelos seus atos, precisamente no cumprimento dos seus deveres.
O Dever integra a moral geral ou teórica, à qual também se costuma chamar “Ciência do Dever”. Naturalmente que para se conhecer a existência do Dever é necessário recorrer à observação psicológica e interrogar a consciência moral que, neste como noutros aspetos da vida, funciona como testemunha e juiz, respetivamente.
Bibliografia
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2002). “Silvestre Pinheiro Ferreira: Paladino dos Direitos Humanos no Espaço Luso-Brasileiro” Dissertação de Mestrado, Braga: Universidade do Minho, Lisboa: Biblioteca Nacional, CDU: 1Ferreira, Silvestre Pinheiro (043), 342.7 (043).
BARTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2009). Filosofia Social e Política, Especialização: Cidadania Luso-Brasileira, Direitos Humanos e Relações Interpessoais, Tese de Doutoramento, Bahia/Brasil: FATECTA – Faculdade Teológica e Cultural da Bahia.
FINANCE, Joseph de, S.J, (1967). Éthique Générale. Roma: Presses de l’Université Grégorienne
LAHR, C., (1969). Manual de Filosofia. 8ª Ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa.
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
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