O Deuteronômio: ruptura e continuidade

Num estudo introdutório sobre a Bíblia um dos primeiros pontos com o qual nos deparamos é o Pentateuco. Ou seja, os cinco primeiros livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Conjunto esse que os Judeus chamam de Torá, ou as Leis que, de acordo com a tradição teriam sido apresentadas por Moisés e ditadas por Deus. Sabe-se, atualmente, que essa ligação com Moisés é apenas tradicional, uma vez que a redação desses textos ocorreu séculos depois do período histórico em que viveu o líder do Êxodo.

Nesses cinco livros podemos nos deparar com uma teologia da história do povo de Deus bem como as leis que nortearam a vivência dessa história. Pode-se dizer, portanto que o Pentateuco é, ao mesmo tempo, uma teologia da convivência humana e da história. Embora, e isso é bom que se ressalte, nenhum desses escritos é um texto histórico.

 

Aspectos culturais

Num estudo introdutório é natural que se façam elucidações gerais sobre cada um desses cinco livros. Tanto do ponto de vista da teologia, como da liturgia e, embora não sejam escritos de história, nos apresentam aspectos culturais que nos auxiliam no estudo da história. Também se deve destacar que essas considerações, a partir de um ponto de vista católico, quase sempre leva em consideração a utilização desses escritos na liturgia, notando que seu uso na liturgia é bem diverso: alguns mais outros menos utilizados.

A respeito do Gênesis é quase unânime a afirmação de que trata das origens. E apresenta isso em duas grandes partes: inicialmente do cosmo e da sociedade humana (capítulos 1-11) e a segunda parte (capítulos 12-50) trata da formação do povo de Deus e das peripécias vividas por ele. O Gênesis é bastante utilizado na liturgia principalmente por tratar de diferentes aspectos da eleição e Aliança.

Em seguida vem o estudo do livro do Êxodo. Pode-se dizer, inclusive que sem um profunda compreensão do Êxodo fica muito difícil a compreensão da mensagem divina e de toda sua proposta ao longo dos escritos do Livro Sagrado. Na introdução ao livro do Êxodo, na edição pastoral da Bíblia (Paulus, 1999), encontramos a seguinte afirmação: “Quem desconhece a mensagem do Êxodo jamais entenderá o sentido de toda a Bíblia, pois está fundamentada nesse livro a ideia que se tem de Deus tanto no Antigo quanto no Novo Testamento”. Isso porque é nesse livro que Deus se dá a conhecer a partir de um projeto de libertação. A partir do Êxodo se pode dizer que JAVÉ é um Deus Libertador e fiel à sua Aliança. Também se pode dizer que é um Deus que: vê, ouve, desce e liberta seu povo (Ex, 3,7-10). Além disso, se dá a conhecer como um Deus que cobra compromisso do povo no projeto de libertação.

Os livros do Levítico e dos Números, são menos utilizados na liturgia católica. O primeiro é uma grande coleção de normas para a liturgia judaica e sobre os rituais a serem executados pelos sacerdotes. Já o livro dos Números tem como pano de fundo a organização do povo no processo da libertação e caminhada para a terra prometida. Ambos mostram conflitos e superações presentes na caminhada, como a nos dizer que em nossa caminhada também podem ocorrer dificuldades, mas nossa fidelidade ao Deus libertador nos pode ajudar a superar nossas crises.

 

O Deuteronômio

Em cada um desses quatro escritos podemos conhecer diferentes aspectos da proposta libertadora de JAVÉ. Desde as origens até os dias aturais. E também os tropeços ao lado de alguns dos atos de infidelidade desse povo. Infidelidades que se prestam a mostrar não tanto a fraqueza do povo como a generosidade e a capacidade de perdão do Deus que é misericordioso ao ponto de dizer que é capaz de amar “por mil gerações para com os que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Ex 20,6; Dt 7,9)

E o deuteronômio, como fica nesse conjunto de escritos?

Este livro é, ao mesmo tempo, uma ruptura e continuação com os quatro anteriores. Os estudiosos nos ensinam que este livro nasceu muito tempo depois da situação histórica nele retratada. Ou seja, trata-se de uma nova apresentação ou “adaptação da Lei em vista da vida de Israel na Terra Prometida”, como nos informa a introdução ao livro do Deuteronômio, da edição pastoral da bíblia (Paulus, 1999). Em razão dessa proposição/adaptação da lei vem a denominação de “Deuteronômio”, que em grego pode ser entendida como “segunda lei”. Uma “segunda versão da Lei”, não para revogar a primeira, mas para complementá-la, tendo em vista o cotidiano do povo, já instalado na terra da promessa. Trata-se, portanto, de mais um convite para que o povo se mantenha fiel à Aliança a fim de se manter merecedor da fidelidade divina.

Enquanto os outros escritos foram sendo formados em vários momentos, com a costura de elementos das tradições (Javista, Eloísta e Sacerdotal, juntamente com trechos Deuteronomista), aqui nos deparamos com um texto quase que exclusivamente produzido ela tradição Deuteronomista, possivelmente produzida no período pós exílico, a julgar pelo terceiro discurso de Moisés nos capítulos 29 e 30.


 

A ruptura

Quando falamos que o Deuteronômio pode ser lido como uma ruptura em relação aos demais escritos do Pentateuco, estamos nos referindo àquilo que se pode chamar de uma releitura da história. Isso porque o Deuteronômio propõe normas que antes não estavam bem explícitas ou apresenta uma nova configuração para o que já havia sido ensinado.

No Êxodo Deus se revelou como libertador: contrapondo-se à dominação de um povo (egípcios) sobre outro, tirando proveito do dominado; apresentando-se como Deus único em contraposição às divindades egípcias; reforçando a identidade do povo escravizado, contra a tentativa de negar ou abafar a cultura do dominado. Apesar disso, e de outros elementos, a face do povo aí apresentada ainda é de um povo a caminho. Em busca da Terra Prometida. Em busca da plenitude da libertação.

No Deuteronômio o povo já prestes a se fixar na terra da esperança. Embora seja o mesmo Moisés o personagem que narra os fatos e entrega a lei, ela já é apresentada com algumas nuances em que se pode perceber um grande avanço (por isso a ruptura) em relação ao Código da Aliança, como havia sido apresentado no Êxodo. Tomemos dois desses exemplos de ruptura: Embora retome o decálogo, o faz com novas orientações, agora com uma dimensão social (Ex 20,11-12 x Dt 5,12-15); o local de culto já não é mais um altar de pedras erigido em diferentes localidades (Ex 20,24), mas num local determinado para o santuário onde se deve celebrar o culto (Dt 12,2-12).

Além disso, e talvez como ponto central dessa releitura da lei, é o fato de que o livro apresenta-se como “um projeto de sociedade nova, baseada na fraternidade entre os homens e na partilha de tudo o que Deus concedeu a todos”, conforme se lê na introdução ao Deuteronômio, (1999). Isso também pode ser dito como nos propõem os tradutores da Bíblia de Jerusalém (1989), quando na introdução ao Pentateuco nos dizem que “sua característica e que marca a mudança dos tempos é a preocupação de proteger os pobres”.

Esses e os demais elementos comparativos sugerem, comentam os especialistas, que o livro nasceu, pelo menos os capítulos 12-26, numa época de prosperidade econômica. Fato que evidenciou uma crescente divisão na sociedade, na qual uma elite gozava de privilégios e a maioria da população estava relegada à uma vida de miséria.

Esse quadro social mobilizou os levitas a fazerem uma releitura da lei, atribuída a Moisés. Por isso o redator coloca novamente Moisés diante do povo. E então “Moisés falou aos filhos de Israel conforme tudo o que Javé lhe ordenara” (Dt. 1,3). E, depois de enumerar as vitórias sobre os povos vizinhos, diz: “E agora, Israel, ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir, para que vivais e entreis na posse da terra que o Senhor, Deus de vossos pais, vos dará” (Dt, 4,1).


 

A continuidade

Apesar de propor uma nova postura em relação à lei, o que caracteriza uma ruptura com os quatro livros anteriores, o Deuteronômio também é uma continuação da interpretação teológica da história do povo, da Aliança e dos altos e baixos da resposta do povo em relação ao apelo divino.

Mas como caracterizar essa continuidade?

Nos discursos de Moisés. O grande quadro de normas de 12,1-26,15 é precedido e sucedido por discursos de Moisés, nos quais ele retoma aspectos do Êxodo e da caminhada pelo deserto. Ao longo dos capítulos 1 a 3, como que retornando ao passado, enumera situações nas quais Javé havia comprovado sua fidelidade, mesmo nos momentos de infidelidade do povo, ocasiões nas quais Moisés intervém em seu favor. Trata-se de recuperar a memória da libertação. Tudo é lembrado a partir da expressão: “naquele tempo” (1,9), ou seja, no passado.

No capítulo 4 o tempo da narrativa muda. Não mais os olhos fitam o passado, mas se voltam para o presente: foi necessário retomar o passado para cobrar a ação do presente: “Agora pois, ó Israel” (4,1). Isso indica que a memória da libertação tem um objetivo: o cumprimento das normas e estatutos é condição para conquistar a terra. Ou seja, o momento presente arremete para o futuro. Do presente para a posteridade é que os israelitas são convocados a por em pratica os estatutos da Lei: “Ouve, ó Israel, os estatutos e as normas que hoje proclamo aos vossos ouvidos. Vós os aprendereis e cuidareis de pô-los em prática”(5,1).

Como se pode notar, no discurso de Moisés há um resgate do passado, uma exortação no presente e um lançamento para o futuro. Futuro do povo de Israel, como portadores da promessa, mas direcionado a toda a humanidade resgatada por Jesus, no sacrifício da cruz.

Assim como o Êxodo é o ponto de partida, tendo a Páscoa como motor da ação libertadora, a consumação da Páscoa se dá com o sacrifício de Jesus, o cordeiro definitivo para a Páscoa definitiva. E da mesma forma que pela boca de Moisés nasce o “Shemá”: “Ouve, ó Israel: Iahweh, nosso Deus é o único Iahweh! Portanto amarás a Iahweh teu Deus de todo teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (6,4). Essa fala, no presente de Moisés prefigura uma fala do futuro: da boca de Jesus vem a conclusão do preceito.

Ao ser interpelado sobre os mandamentos Jesus Responde: “O primeiro é: Ouve, ó Israel: O senhor, nosso Deus é o único Senhor! E amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma, de todo teu entendimento e com toda a rua força. O segundo é este: Amarás teu próximo como a ti mesmo. Não existe maior mandamento do que estes” (Mc 12,29-31; Mt 22,37-39; Lc 10,25-28).

Como se pode notar a perspectiva deuteronomista de atualizar a Lei se concretiza em Jesus. E os primeiros cristãos souberam disso, tanto que em seu Evangelho Mateus acrescenta, a afirmação definitiva de Jesus: “Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22,40).

E assim podemos dizer que a ruptura do Deuteronômio, em relação aos demais escritos do Pentateuco está, principalmente, em apresentar uma versão da Lei também pensando nos conflitos sociais vividos pelo seu redator. E esse redator deixa transparecer que os escolhidos para receber uma atenção especial são os pobres. Por seu lado a continuidade, em relação aos demais escritos do Pentateuco está na retomada de diversos aspectos do livro do Êxodo. Entretanto o ponto alto da continuidade está no cumprimento dos preceitos. E os preceitos dos tempos antigos não só se realizam mas também se concretizam na prática de Jesus.

Referências

BIBLIA sagrada, edição Pastoral. Paulus: São Paulo, 35 impressão, 1999

BIBLIA de Jerusalem, Paulinas: São Paulo, 4 impressão, 1989


 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura – RO