HÁ UMA FILOSOFIA POLÍTICA NAS "MEDITAÇÕES" DE DESCARTES? POR QUÊ? 

 

Werner Leber

 

CONSIDERAÇOES INICIAIS

 

Se compararmos o Discurso do Método e As Meditações de Descartes a outro Discurso, como o de Rousseau[1], por exemplo, aparenta que Rousseau seja um filósofo político e Descartes não o seja. O mesmo se pode dizer de Locke e Thomas Hobbes quando se os compara à filosofia cartesiana. Locke foi, provavelmente, o maior rival de Descartes. É muito mais notória a crítica política quanto à forma de organização do Estado e a responsabilidade política do indivíduo, ou melhor, as garantias individuais nesses dois últimos e também em Jean-Jacques Rousseau que nos textos de Descartes. A filosofia cartesiana soa, em princípio, muito mais como uma teoria do conhecimento, uma crítica das formas do conhecer que um tratado político. O que, seguramente, ela é. Segundo Descartes, qualquer coisa que a razão humana é capaz de conhecer pode ser alcançada, partindo-se de verdades evidentes, e aplicando a dedução lógica a essas verdades.[2] Mas, afinal, onde estariam os temas políticos em Descartes? De que ordem é, afinal, a possível política dos textos cartesianos? De que ponto de vista se deve partir para evidenciá-los?

As Meditações de Descartes, escritas em 1641, seguem em linhas gerais o tema que o filósofo já havia desenvolvido no Discurso do Método, de 1637. Inclusive ambos os textos são constituídos de seis partes. Em principio não se vê em Descartes uma elaboração direta das teorias políticas como se vê com evidência em Locke e Hobbes, por exemplo. Não há nas Meditações uma reflexão sobre as formas de governos, suas representatividades, a relação Indivíduo e Estado, como é facilmente observável em Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes.

 

DESCARTES E A RAZÃO

 

As teses cartesianas fundam-se na busca de um método que quer a razão (ratio) como critério para estabelecer os critérios seguros do pensar. No entanto, Descartes fará um retorno à noção Deus, para ilustrar a perfeição que esta noção contém e o quanto por meio dela indica o pensar seguro que quer estatuir. Assim escreveu o comentador sobre essa virada ou retorno que Descartes faz na filosofia de seu tempo.

 

A filosofia moderna substituiu o tema Deus, central na filosofia medieval, pelo tema homem. Com Descartes realiza-se um retorno ao modo de filosofar dos antigos filósofos gregos, que ignoravam qualquer revelação divina e investigavam a realidade do mundo só pela luz natural da razão. [3]

 

Isso, no entanto, não exclui motivos políticos. É certo que o tema da filosofia cartesiana seja Deus. Mas Descartes pode estar blefando. E se não está blefando, é notório que a sua investigação é bem diferente da dos medievais. O período em que viveu foi o mais duro período da Inquisição. A chegada do protestantismo ao cenário político europeu provocou grandes reviravoltas na França e perseguições também. Disso se segue que a obra cartesiana toma Deus como tema, mas não significa exatamente que Descartes quer construir uma teologia, uma apologia da fé. Descartes quer construir, isso sim, uma apologia da razão, como na passagem que segue:

 

Essas longas cadeias de razões, todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam se utilizar para chegar às demonstrações mais difíceis, haviam-me dado oportunidade de imaginar que todas as coisas passíveis de cair sob domínio do conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira alguma que não o seja, e que observemos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver, quaisquer que sejam, tão distantes às quais não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram.[4]

 

 

O problema trazido pelo Discurso repete-se nas Meditações.[5] Qual é esse problema? Em minha opinião, essa questão é o quadro lógico, matemático e geométrico ao qual Descartes submete toda a sua investigação, o grande Livro do Mundo, como denomina a empreitada geométrica que quer resolver.[6]  Se Deus torna-se um problema no século XVII, e foi mesmo, Descartes está empenhado politicamente em demonstrar que a questão divina deixou ser uma submissão a uma autoridade estranha, como as autoridades eclesiásticas, e sim que a questão divina é fácil de ser demonstrada ou provada partindo-se dos critérios de perfeição que a própria ideia Deus representa para o pensar. Assim escreve Descartes na quarta meditação:

 

Pois, com efeito, não é uma imperfeição em Deus o fato de ele me haver concedido a liberdade de dar meu juízo ou de não o dar sobre certas coisas, a cujo respeito ele não pôs um claro e distinto saber em meu entendimento; mas, sem dúvida, é em mim uma imperfeição o fato de eu não a usar corretamente e dar temerariamente meu juízo sobre coisas que eu concebo apenas com obscuridade e confusão. [7]

 

Nessa passagem Descartes comporta-se como um teólogo que inocenta Deus dos erros que ele próprio (René Descartes) comete. Tudo isso já estava na Parte IV e V do Discurso do Método também. De uma perspectiva política, entendo que a tentativa cartesiana, ao opor-se ao empirismo de Locke, Bacon e Hume, assume uma postura cuja centralidade está em mostrar que Deus não é, de princípio, um assunto teológico somente. E assim ele resolve ou tenta resolver suas desavenças com os empiristas e manter a noção Deus como relevante. Pois enquanto aqueles procuravam demonstrar que os sentidos primeiramente indicam o critério seguro da racionalidade moderna, Descartes esforçava-se para apontar que a razão, a luz natural, comporta a noção de Deus de modo inato, e que isso aponta a superioridade da ideia de perfeição sobre as coisas que se pode experienciar. Se ele o faz por fé ou por interesses meramente filosóficos, As Meditações não deixam precisar. E ainda que ele reconheça a importância dos sentidos, como no final da sexta meditação[8],  continua a manter na convicção de que a perfeição que a noção Deus produz no intelecto é inata e funda todas as demais. Porém, com uma diferença grande: antes a razão submetia-se a autoridade revelada para compreender as coisas da fé. Agora a própria autoridade, se quiser manter Deus como relevante, precisa submeter-se à autoridade da razão humana. [9]

 

PALAVRAS FINAIS

 

É incrível, mas Descartes fala de Deus. Creio que nem sempre seus leitores prestam atenção nesse detalhe. Sim, sua racionalidade movida por interesses matemáticos e geométricos, desembocam em Deus. Mesmo que René Descartes não se expresse abertamente sobre problemas tipicamente políticos, como se pode ver em seus coetâneos, Maquiavel, Hobbes, Locke e Bacon, não pode-se dizer que sua filosofia não tinha perspectivas políticas. E menos ainda, que seus textos não geraram problemas na área política. A perspectiva política em Descartes é sutil. Ela diz respeito não a sistemas de governo, sociedade civil ou estatuto da propriedade, temas facilmente encontrados em outros pensadores da época, e também posteriormente nos filósofos iluministas, como Rousseau e Montesquieu. Descartes mexe com algo mais profundo e nem sempre visto como pertencente à arena política. Descartes fala de Deus, e nisso se encontra a sutileza de sua teoria, e que vai trazer um problema para a área do conhecimento. Ele inverte o estatuto deixado pela Escolástica. No Discurso do Método ele já menciona que quer se afastar da teoria de conhecimento medieval e que seus textos querem se opor àquela teologia, ou àquela teosofia. Mas o que quer Descartes, afinal? Ele quer fundamentar Deus não por um critério de fé, mas de geometria e cálculo. Explico melhor: Descartes quer provar tecnicamente que a razão fundamenta-se em algo que vem do exterior – no caso seria Deus (a perfeição) -, mas a razão pode conhecê-lo por si só sem precisar se submeter às autoridades eclesiásticas ou à fé. À medida que a razão conhece seus defeitos e seus limites, ela depara-se com algo que é perfeito e que nunca desaparece: o pensamento. Descartes julgou que essa perfeição seria Deus, cuja profundidade e grandeza a razão pode conhecer e verificar. Portanto, se há um aspecto político no pensamento cartesiano ele está justamente nessa inversão que ocorre quando ele desloca o problema “Deus” da fé para a área do conhecimento filosófico e matemático.

 

 

REFERÊNCIAS:

 

 

DESCARTES, René. Discurso do método: para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução de Thereza Christina Stummer. São Paulo: Paulus, 2002, p. 75-139.

 

______. Discurso do método. Tradução de Elza Moreira Marcelina. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Ática, 1989.

 

______. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Coleção: Os Pensadores, páginas 75-142).

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. [Tradução de Paulo Neves]. Porto Alegre: LP&M, 2011.

 

ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. 3ª edição. São Paulo:  Paulus, 1999.

 

 

[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. [Tradução de Paulo Neves]. Porto Alegre: LP&M, 2011.

[2] Como escreve o comentador, “Descartes reduziu todos os problemas a problemas de tipo matemático”, ZILLIES, Filosofia da religião, p. 26.

[3] ZILLES, Filosofia da religião, p. 23.

[4] DESCARTES (1989), Discurso do método, p. 45.

[5] É fácil verificar como que o Discurso se relaciona com as Meditações. Ver, por exemplo, nota 122 em DESCARTES (1983), Meditações, p. 120.

[6] “Resolvido a não mais buscar qualquer outra ciência, senão aquela que pudesse ser encontrada em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo [...]” DESCARTES (2002), Discurso do método, 2002, p. 82.

[7] DESCARTES (1983), Meditações, p. 121.

[8] DESCARTES (1983), Meditações, p. 137.

[9] “A revolução cartesiana consiste essencialmente em ter ele transferido o lugar da certeza original de Deus para o homem, para a razão humana”, ZILLES, Filosofia da religião, p. 30.