Da minha pessoa de dentro não tenho noção da realidade. Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. [...] Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo de realidade?

Alberto Caeiro. 

O Amor é parte integrante do livro de contos Laços de Família de Clarice Lispector. Trata-se de uma narrativa sobre a vida rotineira da personagem Ana, que se encontra circunscrita à esfera da sobrevivência cotidiana, onde tudo é planejado, pois “Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.”[1]. Dentro desse raciocínio, o mundo da personagem consiste em um mundo onírico e alucinatório, feito à imagem e à semelhança de suas necessidades. É este cotidiano de mulheres simples, que vivem entre flanelas e vassouras, que Sylvia Paixão diz ser transfigurado pelo olhar de Clarice Lispector.

Clarice escreve Amor de forma complexa e subjetiva sugerindo a presença visível e ostensiva de sua personalidade através da percepção que possui a cerca das expectativas das mulheres daquela época, visto que o casamento, o lar e a família equivaliam como no conto, a uma realidade controlável e previsível. A personagem Ana, assim como diversas outras mulheres “Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera.”[2]

Muito embora, o mundo comodamente forjado em uma realidade controlável represente a segurança almejada, este mesmo ambiente guarda metaforicamente como um útero, o germe de outro mundo que se anuncia.

A perspectiva de Clarice consiste em envolver Ana em uma fusão eu/mundo. Tudo que Clarice fez pertencer ao ambiente de Ana, implica em uma extensão desta com o meio ao qual se insere, revelando o apego egocêntrico e narcísico a tudo que pertence à sua Pasárgada.

Cotejando o conto Amor com Brincar de pensar, também escrito por Clarice, nota-se que a autora faz uma abordagem crítica sobre o comodismo que impede o indivíduo de refletir sobre o mundo e sobre as coisas do mundo, visto que ela, ironicamente afirma que pensar é arriscado ou perigoso, devido “os caminhos da emoção a que leva o pensamento.”[3] Diante de sua observação, a autora ainda se refere ao momento propício para que o pensar aconteça: “Em certas horas da tarde[4] . Assim, a autora sugere que o pensar sobre o mundo, indica uma tomada de consciência sobre uma realidade.

Tanto no conto Amor como em Brincar de pensar o momento “perigoso” para que o pensar sobre o mundo surja consiste no momento de ócio, no instante de “súbita desocupação.”[5] . Nesses momentos, a autora indica que a personagem Ana encontra-se vulnerável e desprotegida em um mundo que não a necessita. “Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela”. Era do perigo de pensar envolvido pelo pensamento e pela consciência reveladora de verdades que Ana sentia que “seu coração se apertava um pouco em espanto.” [6]

 É interessante ressaltar que o pensamento é o meio pelo qual o indivíduo se retira de um mundo para outro. Para tanto, usando a ironia, Clarice avisa que pensar revela uma atitude perigosa, pois “Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que brinca conosco”.  Diante disso, o mundo que a autora cria para Ana deve ser sua proteção, a “ostra” que a separa e a guarda do pensar sobre o exterior.

Sem simbolizar a realidade com seus problemas, conflitos e dilemas o indivíduo não possui capacidade para encorajar o pensamento a dizer “não” a teorias existentes e a propor novas. Assim, paradoxalmente, Clarice dá a um cego que masca chiclete[7], a missão de revelar um novo mundo para a personagem Ana. Ele é quem a obriga a ver, é ele quem lhe revela a luz e também é ele quem a expulsa do seu cômodo paraíso.

No conto Brincar de pensar, o momento epifânicos é descrito como um instante em que se pode “Estar ocupada e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala.”[8]. Convém destacar um momento semelhante a essa descrição no conto Amor. Trata-se do momento em que Ana percebe o cego da janela do ônibus. A este instante pode-se  fazer uma analogia ao ritual de um parto: Nota-se a contração brusca; “O bonde deu uma arrancada súbita”[9], depois a saída do útero; “jogando-a desprevenida para trás”[10], em seguida o desprender da placenta; “o pesado saco de tricô despencou-se do colo”, o corte umbilical; “ruiu no chão”, o choro; “Ana deu um grito.” Por fim o  novo ser se apresenta: “Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível.” Então, Clarice dá à luz a uma Ana que renasce para um novo mundo, visto que o antigo fora quebrado; “Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal.”. Os ovos, analogia do antigo mundo no qual Ana vivia, estavam destruídos frente a uma realidade que se conta em jornais. A personagem sente, portanto, que “Alguma coisa intranqüila estava sucedendo” [11] e como uma criança que acaba de nascer, “... o coração batia-lhe violento, espaçado.” [12]·.

Vale realsar uma observação a cerca do nome do conto. Este pode sugerir a noção de amor enquanto perda. Tal perspectiva é recorrente no Cristianismo, no Platonismo e na Literatura. Deus perdeu seu filho unigênito para o mundo. Assim, segundo o Cristianismo, quanto mais temos a perder mais ganharemos: “Quem perder sua vida, ganhá-la-á”[13], diz o Evangelho. O tamanho do amor é proporcional a perda de si. Vinicius de Moraes, no Soneto de Amor Total diz; “É que um dia em teu corpo de repente/hei de morrer e de amar mais do que pude.”[14]. E Platão sugere que o amor-a-dois deve representar a perda da metade de si.

Dentro desse raciocínio, Clarice Lispector constrói a frustração da perda no olhar de Ana. “E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio”. Ana encontra-se envolvida num narcisismo primário, e a sua frente se vê refletia num lago metafórico para o qual é empurrada e do qual vai emergir para outra realidade. Entretanto, a nova realidade para a qual a personagem “nasce” não é tão aconchegante como o “seu útero” no nono andar. Daí ocorrem os conflitos internos e subjetivos contados pelos fluxos de consciência e sob o véu de introspecção utilizado pela autora para demonstrar o choque dos dois mundos entre os quais a personagem se encontra.

Bem como um recém nascido, frente a um novo mundo, Clarice demonstra que Ana começa a perder a ilusão que traçara para vivenciar um novo mundo de sensações através do amor. Entretanto, a autora deixa evidente que esse amor a faz sofrer à medida que lhe ocorrem perdas: ela perde o sentido normal do tato e a rede de tricô fica “áspera entre os dedos”[15], perde o sentido do mundo-lar, pois este se torna mais “hostil” e “perecível” e sente-se “Expulsa de seus próprios dias”. Perde o senso de orientação; “ agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde.”, perde o ponto de descida; “Só então percebeu que há muito passara do seu ponto.”, perde a noção de espaço: “Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.”, perde a segurança de outrora, “Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto”[16]. Perde também, a noção de tempo em devaneios no Jardim Botânico, na contemplação de um mundo diferente. E, inevitavelmente, perde sua “pátria”, pois “Sentia-se banida...”. Enfim, Ana perde então a capacidade de fechar os olhos ao mundo.

Segundo Pellegrino a vigência do princípio da realidade começa quando a criança tem que sair de si. A princípio nega essa realidade e “desnasce”, refugiando-se na plenitude imaginária de um útero simbólico. Entretanto, com o passar do tempo e em virtude do processo de maturação, percebe que não pode viver de ilusão, visto que os objetos externos se impõem. Ao abrir mão das construções imaginárias, estas serão simbolizadas no mundo exterior. Diz Pellegrino que “Nascemos, aos poucos, do sonho imaginário para o sonho simbólico” [17].

Segundo Hélio Pellegrino, no momento em que o infante reflui para si próprio ele constrói um mundo de objetos imaginários, constituídos por via alucinatória. De acordo com ele, “A criança ao nascer, em função da angústia, desnasce.” [18]. Assim, Clarice faz com que a única forma de Ana livrar-se do sentimento e das perdas proporcionadas por ele é se refugiar novamente no cotidiano que construíra para si, protegendo-se dos outros numa comunidade de semelhança, num espaço fechado e protegido onde os iguais se enclausuram. Dessa forma, Ana “desnasce”. Contudo, este mesmo espaço, não anula e nem afasta os riscos do pensar sobre a diversidade, só garante um distanciamento, pois de frente para a janela, Ana contempla o novo mundo que como o cego lhe sorri. Por fim, num movimento circular e simbólico de nascer e desnascer, Ana supera sua inquietação, e aquela pergunta apreensiva “Quantos anos levaria até envelhecer de novo?”[19] já poderia ser respondida por ela própria, pois se encontrava de volta aos seus dias.

 

 

 



[1]LISPECTOR, Clarice. Amor. In; Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

[2] Op. Cit.

[3] LISPECTOR, Clarice.  Medo da Eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

[4]LISPECTOR, Clarice.  Medo da Eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

[5] Op. Cit.

[6] Op. Cit.

[7] O ato de mascar chiclete em Clarice está associado ao sofrimento de quem está condenado a ser ou a estar do mesmo jeito por toda a eternidade: Clarice Lispector. Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 448.

[8] LISPECTOR, Clarice.  Medo da Eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

[9] LISPECTOR, Clarice. Amor. In; Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

[10] Todas as frases entre aspas neste parágrafo referem-se a LISPECTOR, Clarice. Amor. In; Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

[11] LISPECTOR, Clarice. Amor. In; Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

[12] Op.cit.

[13] BÍBLIA SAGRADA. Mat. 16:25.

[14] MORAES, Vinícius. Soneto de Amor Total. In: TUFANO, Douglas. Estudos de Literatura Brasileira. São Paulo: Ed. Moderna, 1998.

[15] Todas as frases entre aspas deste parágrafo pertencem a LISPECTOR, Clarice. Amor. In; Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

[16] LISPECTOR, Clarice.  Medo da Eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

[17] PELLEGRINO, Hélio. Édipo e a Paixão. IN: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 320.

[18] PELLEGRINO, Hélio. Édipo e a Paixão. IN: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 318.

[19] LISPECTOR, Clarice. Amor. In; Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.