O CRIME

Eufrásio saiu de casa bem cedo, no mesmo horário que habitualmente ia para o trabalho. Naquele dia dispensou a marmita que sua mulher preparou na noite anterior, mas levou uma arma, um revolver calibre 22 que há tempos havia comprado de um amigo que trabalhava na polícia. Colocou as balas no tambor. Só tinha três. Era pouco, mas dariam para o que ele precisava. Usava um paletó bem largo de casimira azul para que a arma não ficasse visível. Despediu-se da mulher de uma forma estranha, beijando-a como se fosse à última vez. Também foi beijar as crianças que ainda dormiam antes de ganhar a rua.

Chegou à portaria da fábrica e apesar de já ter sido demitido, ainda conservava a carteira de acesso, subindo ao seu local de trabalho. Lá chegando encontrou seus colegas que queriam saber o que estava fazendo ali se já estava dispensado. Disse rapidamente que iria ter uma conversa com o chefe e que as coisas não iriam ficar assim. Os colegas ficaram preocupados, mas ninguém comentou nada.  Eles também nutriam um ódio visceral pelo gerente e torciam para que ele pagasse pelas suas maldades.  Talvez um soco bem dado na cara dele deixaria todos os funcionários felizes. Eufrásio atravessou a seção que já estava em plena atividade e foi direto à sala do gerente, que o recebeu espantado.

- O que é que você está fazendo aqui Eufrásio? Você tem de passar no departamento de pessoal, não tenho mais nada pra falar com você, disse o gerente irritado com a presença do funcionário dispensado.

Eufrásio respondeu friamente:

- Tem sim seu Arnaldo, temos muito pra conversar. O senhor colocou um pai de família na rua por fofocas. Eu sempre fui muito trabalhador e cumpria com as minhas obrigações. O senhor não me ouviu e preferiu me mandar embora sem mais e sem menos.

- Não posso fazer mais nada Eufrásio. O que está feito, está feito. Não vou voltar atrás.

- Pode sim. É só dar uma ordem e pronto. Eu não posso ser dispensado desse jeito. Tenho três filhos pra criar. Estou devendo aluguel, minha mulher está doente. Eu não posso voltar pra casa sem emprego e encarar minha mulher e meus filhos.

- Já disse Eufrásio, não vou voltar atrás e saia da minha sala antes que eu chame a segurança pra te tirar daqui à força.

- Não vai não seu Arnaldo, disse irritado e já apontando a arma para o gerente.

- Caaalma ai Eufrásio! Não vá fazer essa besteira não...  Vai ficar pior pra você. Vai ser preso e passar anos atrás das grades. Isso é loucura. Abaixe essa arma e vá pra casa. É melhor pra todo mundo.

Em seguida Arnaldo tentou apertar a campainha, quando Eufrásio deu o primeiro tiro. O gerente se abaixou. Ele deu o segundo, que também errou. A arma tinha apenas três balas. Na terceira ele conseguiu acertar o alvo, atingindo Arnaldo no peito. Tinha planejado também uma bala para o Mariano do departamento do pessoal, mas havia desperdiçado dois tiros. Ao ver o homem caído no chão, saiu em desespero descendo as escadas, enquanto o alarme era tocado. Ele conseguiu chegar até a portaria e ganhou a rua desesperado. Não mediu as consequências do seu ato. Não teria como fugir. Seria procurado em todos os cantos. E a família? O que será de Marina e as crianças? Que loucura meu Deus! Não deveria ter feito aquilo.

Na fábrica foi um alvoroço. Colocaram o Arnaldo numa carriola e desceram pelo elevador enquanto ele gemia de dor. O corpo ensanguentado atravessou a área de entrada.  Foi levado até a enfermaria, onde tentaram prestar os primeiros socorros. Não havia muito que fazer. O tiro acertou em cheio no coração do gerente. Quando a ambulância chegou ele já estava sem vida.

Durante o trajeto do ônibus Eufrásio foi pensando na vida miserável que levava. Com três filhos pequenos, devendo um mês de aluguel e o proprietário lhe aporrinhando todos os dias. O salário mal dava para comer. Precisava fazer uns bicos no final de semana para ajudar nas despesas, mas trabalhando de segunda a sábado, como iria arranjar tempo? Trabalhava das 14 às 22 horas, talvez arranjasse outro emprego pela manhã, mas não tinha habilidades, não estudou, só sabia trabalhar duro, cumprir ordens, chegar no horário, nada mais.

Enquanto o ônibus rodava foi aumentando o seu medo.  Não sabia se havia feito a coisa certa. Começou a ficar desesperado. O chefão o chamou no dia anterior na sala dele e disse: “Eufrásio, você está dispensado. Não precisamos mais dos seus serviços. Pegue as suas coisas e pode passar no Departamento de Pessoal e procurar o Mariano”.  Ele precisava pagar por isso, pensou Eufrásio. “O desgraçado vai morrer e a família dele vai sofrer também”.

Desceu do ônibus e viu o movimento na rua onde morava. A polícia já estava lá esperando por ele. Mudou o caminho e foi para a casa de um amigo que o acolheu. Oscar o aconselhou a voltar para Minas, onde ele ainda tinha alguns parentes. Ficaria escondido por uns tempos e depois voltaria quando já tivessem esquecido o crime. “Daqui alguns anos ninguém vai se lembrar dessa história, disse com segurança o amigo”.

Eufrásio precisava conversar com a mulher, que deveria estar desesperada. Sem dinheiro, sem marido, sem salário. Como a coitada iria sobreviver com as crianças? Que loucura, meu Deus, pensava. Combinou com o amigo, que fazia biscates de pedreiro e carpinteiro, para que ele desse as notícias para a mulher. Iria bem tarde da noite, quando não tivesse ninguém vigiando. Oscar emprestou uns trocados, que levaria para entregar para a mulher.

Foi feito o combinado. Não tinha ninguém na rua. Oscar conversou com a mulher do Eufrásio e pediu que ela não contasse pra ninguém onde ele estava. Disse que ele daria um jeito para que ele fugisse para Minas até que as coisas se acalmassem. Marina só chorava o tempo todo abraçada com os filhos. “O que será de nós seu Oscar? Vamos passar fome, morar na rua. O que uma mulher sozinha pode fazer nesta cidade sem lugar pra morar e sem sustento?”

No dia seguinte a polícia foi na casa do Oscar e prendeu Eufrásio. A mulher foi na polícia e informou onde ele estava. Preso, foi condenado a vinte anos de prisão e com um pouco de sorte poderia reduzir a pena. Os colegas da fábrica arrecadavam dinheiro para comprar mantimentos para a família. Nunca faltou nada para Marina e as crianças. Oscar precisou trabalhar mais para sustentar duas famílias. Marina devia gratidão ao amigo e aos poucos foi cedendo aos assédios. Achava que não era certo trair o marido que estava na cadeia, mas era ele quem sustentava a casa, pagava o aluguel, mesmo com atraso.  E assim, duas ou três vezes por semana ele passava na casa do seu amigo Eufrásio e saciava seus desejos no corpo moreno e bonito de Marina. No início ela ia toda semana visitar o marido, mas era tão difícil, precisava pegar duas conduções e ainda tinha a revista na entrada.   A revista era um sofrimento a parte, pois se sentia humilhada com os policiais vasculhando todo o seu corpo. Com o tempo passou a ir apenas uma vez por mês e nos últimos anos deixou de ir.

Por bom comportamento Eufrásio pegou condicional e voltou para casa se comprometendo a arranjar um emprego e se apresentar semanalmente ao agente. A sua arma estava na casa de outro amigo que a guardou.  Pensou em vendê-la para arranjar um dinheirinho para sobreviver até conseguir um emprego. Quem sabe poderia trabalhar com o Oscar de pedreiro. Na prisão aprendeu um pouco do ofício. 

Estava chovendo quando chegou e encontrou o amigo Oscar deitado com a sua Marina. Os dois estavam nus e trocavam carinhos. Filho da puta! Gritou. É assim que se faz com um amigo? Oscar não teve tempo de responder. Eufrásio não pensou duas vezes.  Disparou dois tiros. Não errou como aconteceu com o gerente. Marina e Oscar morreram nus e abraçados. As crianças estavam na escola e não viram a tragédia.