SUMÁRIO: Introdução; 1 A Lei de Remédios: Lei 9677/98, 1.1 O crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais; 2 A questão dos medicamentos, cosméticos e saneantes, 2.1 A importância dos Princípios da Ofensividade, Proporcionalidade e Razoabilidade para a discussão; 3 A inclusão do artigo 273 entre o rol de crimes hediondos; Conclusão; Referências.

RESUMO

A Lei dos Remédios (Lei nº 9.677/98) trouxe alterações significativas aos artigos 272 a 277 do Código Penal brasileiro, apresentando novas diretrizes em relação ao tratamento aos remédios.  Este presente trabalho tem por objetivo analisar essa nova redação do art. 273 da referida lei, que tipifica a conduta de “Falsificação, corrupção ou adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, bem como apontar as disposições controversas que foram surgindo, principalmente ao equiparar medicamentos a cosméticos e saneantes, visto que os efeitos de tais produtos são diferentes. Ainda, em relação à Lei dos Remédios, este trabalho visa debater a inclusão do art. 273 entre o rol dos crimes hediondos, bem como considerar a importância em relação a alguns princípios do Direito Penal como o Princípio da Proporcionalidade e da Razoabilidade para embasar tais discussões.

Palavras-chave: Lei dos Remédios; definição de medicamentos, cosméticos e saneantes; crimes hediondos.

 

INTRODUÇÃO

 

 

            A Lei dos Remédios (Lei nº 9.677/98) trouxe algumas mudanças aos artigos 272 a 277 do Código Penal brasileiro, que tratam de crimes que envolvem substâncias que - quando adulteradas - podem trazer prejuízos à saúde. Entre estas substâncias, estão os medicamentos, que passaram a ter novas diretrizes para o seu tratamento na  legislação pátria, porém, estas mudanças também trouxeram alguns questionamentos na doutrina, como – por exemplo – os reflexos da equiparação entre medicamentos e cosméticos, presente na conduta determinada pelo artigo 273 CP.

            A redação do artigo 273 CP, que tipifica a conduta de “Falsificação, corrupção ou adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, traz o seguinte dispositivo em seu caput: “ Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, porém a Lei dos Remédios, adicionou ao artigo o § 1° - A, que diz: “ Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico”. Da inclusão deste parágrafo, surge a equiparação, para os fins deste crime, entre produtos medicamentosos , cosméticos e saneantes.

            A doutrina traz conceitos diferentes para medicamentos, cosméticos e saneantes, isso tendo em vista a destinação de cada um desses produtos como também os diferentes efeitos que podem causar no organismo humano. Daí surge o questionamento: se tais substâncias possuem propósitos tão distintos e, consequentemente, geram resultados diferentes, como aquiescer com uma correspondência, no Código Penal, entre as condutas de falsificar, corromper ou alterar remédios, cosméticos e saneantes?

            Com isso, na análise destas três figuras é preciso confrontar o art. 273 CP com os princípios de Proporcionalidade e Ofensividade, ainda mais com a inclusão de tal artigo no rol de crimes hediondos.

1 A LEI DE REMÉDIOS: LEI N°9677/98

 

A Lei nº 9.677/98 alterou dispositivos do Capítulo III do Título VIII do Código Penal, incluindo na classificação dos delitos considerados hediondos crimes contra a saúde pública e dando outras providências. Modificou ainda, de maneira significante a redação do artigos 273 a ser comentado, suscitando assim discussões acerca de sua constitucionalidade tendo em vista a violação a determinados princípios básicos do Estado Constitucional e Democrático de Direito.

A edição da Lei em questão corrobora a política criminal adotada pelo Legislador pátrio, a qual se baseia em uma política criminal de extrema punição, sendo o Direito Penal visto como o único instrumento de controle das mais diversas formas de criminalidade existente. Assim, é comum no ordenamento Jurídico Brasileiro a inflação da legislação penal especial, com a edição de leis penais modificativas que têm por escopo aumentar as penas e restringir os possíveis benefícios aos acusados, tendo consequências nefastas para o funcionamento do sistema penal e para a credibilidade do sistema judiciário. Adotando tal política, o Legislador por meio dessa lei especial, aumentou de maneira desproporcional as penas cominadas aos delitos dos artigos 272 e 273 do Código Penal, criando novas figuras típicas e ainda, considerou o crime previsto no artigo 273 § 1º , § 1º A e § 1º B do Código Penal como sendo crime hediondo.

 

1.1   O crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais

 

 

Anterior à edição da Lei nº 9.677/98, o art. 273 do Código Penal tinha a seguinte redação: "Alterar substância alimentícia ou medicinal: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa". Porém, com a modificação que ocorreu, o artigo em questão começou a prescrever o seguinte: “Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”. Analisando a estrutura do art.  273 atual, presente no Código penal, percebe-se que tem como bem jurídico a incolumidade pública, ou seja, a saúde pública a ser protegida. Tal conduta tem como sujeito ativo qualquer pessoa, sendo um crime comum e como sujeito passivo a coletividade (MIRABETE; FABBRINI, 2011, p. 1575).

Tem o caput, tipo objetivo: falsificar (referir como verdadeiro algo que não é); corromper (estragar, desnaturar, decompor); adulterar (modificar, mudar para pior o produto) e alterar (modificar sua qualidade, podendo suprimir total ou parcial qualquer elemento da sua composição substituindo-o por outro inferior). O elemento subjetivo presente é o dolo genérico, sendo a vontade livre e consciente de falsificar, corromper, adulterar ou alterar com conhecimento da destinação a consumo da substância e do perigo comum. Segundo Mirabete e Fabbrini (2011, p. 1576) não há a necessidade de fim especial de agir.  

É considerado crime plurissubsistente, uma vez que admite tentativa,  e sua consumação se dá no momento em que são praticadas as condutas previstas no tipo penal independente de resultado (crime formal). Apresenta-se como crime comum já que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo tendo a coletividade (cuja saúde é posta em risco pelas condutas realizadas) como sujeito passivo. Possui como objeto material os produtos que sejam destinados a fins terapêuticos ou medicamentos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico (SEADI, 2002, p. 51-52).

É crime de perigo abstrato, embora existam doutrinadores que acreditem ser crime de perigo concreto, como Rogério Greco, que afirma que o simples fato de colocar em perigo a incolumidade pública já caracteriza o crime, não precisando, desse modo, de resultado para caracterizá-lo (ANDREUCCI, 2007, p. 578).

Há as qualificadoras quando a partir daquela conduta do agente, resulte lesão corporal grave ou morte. Sendo a pena aumentada para todos os casos, quando o agente agir com culpa ou com dolo, bem como determinado o art. 258, que tem embasamento no art. 285 do Código Penal (PRADO, 2008, p. 757 - 758).

A pena prevista é de dez anos de reclusão e máxima de 15 anos, sendo instituída por uma ação penal pública incondicionada, sendo admitida ainda a forma dolosa, prevista no § 2o com pena de detenção, de 1 a 3 anos, e multa.

 

 

2       A QUESTÃO DOS MEDICAMENTOS, COSMÉTICOS E SANEANTES

 

 

            O crime do art. 273 CP, traz em sua redação - como elementos normativos - as figuras do medicamento, cosmético e saneante e para uma que se possa compreender com precisão a conduta descriminada pelo Código Penal  e mesmo se propor uma reflexão sobre se as penas cominadas são justas ou não, é preciso analisar a definição de cada uma dessas figuras.          

            Ao tratar deste crime, Cezar Roberto Bitencourt (2011a, p. 513) define medicamento como sendo uma “substância destinada à cura ou ao alívio de doenças, bem como ao combate de males e enfermidades; já cosméticos são definidos, pelo mesmo autor, como sendo “produtos destinados à limpeza, conservação e maquiagem da pele” e saneantes são entendidos como produtos de limpeza geral.

            A própria Lei n° 5.991/73, que trata sobre o comercio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, qualifica medicamento como sendo “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico”, em complemento a esta ideia, Seadi (2002, p.53) afirma que estes produtos seriam especialidades farmacêuticas próprias para auxiliar na prevenção, avaliação e cura da dor. Estes conceitos ajudam a distanciar medicamentos de cosméticos e saneantes.

            Trata-se de um fato de que por serem substâncias industrialmente manipuláveis os cosméticos e saneantes podem desencadear reações no organismo, tais quais processos alergênicos, porém estes efeitos são menos gravosos do que o que pode ser gerado por um remédio tarja preta (aqueles que devem ser prescritos por receita médica e que podem causar dependência), por exemplo.  Logo,” falsificar, corromper, adulterar ou alterar” um desses remédios tarja preta não seria a mesma coisa do que realizar as mesmas condutas com um produto cosmético ou um saneante, pois as consequências não seriam as mesmas.              

 

 

2.1 A importância dos Princípios da Ofensividade, Proporcionalidade e Razoabilidade para a discussão

 

 

            Nesta discussão, é de grande relevância a análise de alguns Princípios constitucionais que podem auxiliar na elucidação do debate sobre o art. 273 CP, no caso, é relevante a verificação dos seguintes Princípios: Ofensividade, Proporcionalidade e Razoabilidade.

            Quanto ao Princípio da Ofensividade, este pode ser entendido como aquele que mantém a relação entre um bem jurídico tutelado e a uma conduta que gere uma lesão efetiva ou um perigo concreto (DE JESUS, Damásio, 2010, p.52).  Em relação ao Princípio da Proporcionalidade, Damásio de Jesus (2010, p. 53) afirma que “a pena não pode ser superior ao grau de responsabilidade pela prática do fato”. Além disso, Bitencourt (2011b, p.55) afirma que a Proporcionalidade deve obedecer os seguintes parâmetros: adequação teleológica (finalidade política para qual uma lei é criada); necessidade (“o meio não pode exceder os limites indispensáveis e menos lesivos possíveis à conservação do fim legítimo que se pretende”; e proporcionalidade em strictu sensu (apregoa a aplicação dos meios adequados para que se cumpra a lei, sem que  - para isso – sejam usados recursos desproporcionais).

            Quanto ao Princípio da Razoabilidade, tem-se que este se assemelha à Proporcionalidade, porém não são idênticos. A Razoabilidade é entendida como “aquilo que tem aptidão para atingir os objetivos a que se propões, sem, contudo representar excesso algum” (grifo nosso)(BITENCOURT, 2011b, p. 57). Logo, percebe-se que a Razoabilidade não se assenta só em uma mesura ponderal entre o que prescreve um crime e a pena que é dosada, mas sim em uma postura inteligível sobre a necessidade do quantum de pena, funciona – como Bitencourt (2011b, p. 57) afirma – como um controlador do Princípio da Proporcionalidade.

            Na análise do caso em tela, observa-se uma inadequação da equiparação entre fármacos, cosméticos e saneantes. Visto que os cosméticos e saneantes não possuem um poder de lesividade tão grande quanto os remédios quimicamente manipulados, logo não são tão ofensivos, e a pena estipulada para a conduta de “falsificar, corromper, adulterar ou alterar” estes produtos cosméticos e saneantes não é proporcional e nem razoável considerando a necessidade da existência de um tipo penal para coibir tal crime. Como afirma Seadi (2002, p.91-92):

A desproporcionalidade entre a possibilidade do dano ocasionado por uma dessas condutas tipificadas no parágrafo 1° e a penalização correspondente é tamanha que a punição mínima cominada no delito do artigo 273 do Código Penal é mais elevada que a do homicídio simples.

           

3 A INCLUSÃO DO ARTIGO 273 ENTRE O ROL DE CRIMES HEDIONDOS

 

 

Os crimes hediondos são tratados inicialmente na Constituição Federal, 1988, art°5, inciso XLII, bem como são identificados como aqueles crimes repugnantes que geram indignação por parte da sociedade. Posterior à Constituição Federal, foi criada uma legislação única com a tarefa de definir alguns crimes como sendo hediondos e estabelecendo as regras que devem ser aplicadas a tais condutas praticadas.A Lei nº 9.695/98 incluiu o art. 273 do Código Penal no rol dos crimes hediondos, dando o mesmo tratamento ao agente que comete essas condutas com o que é dado aos homicidas, traficantes, estupradores dentre outros encontrados no rol taxativo da Lei n° 8.072/1990. Sem contar o aumento desproporcional da pena, incluindo os § 1º-A e o §1º-B ao artigo, § 1o (quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado).

O legislador de 1998 considerou a conduta tipificada no art. 273 tão lesiva que ponderou que a mesma deveria ser encaixada no rol dos crimes hediondos, regulado pela Lei no 8.072/90, sendo encaixado em um crime que tenha alto grau de reprovabilidade por parte da sociedade uma vez que tais condutas possuem um elevado potencial ofensivo sendo aplicados a eles uma punição mais severa por parte do Estado. A pena inicial para os crimes hediondos é de dez a quinze anos de reclusão e multa, ou seja, aquele que adulterar, por exemplo, um bronzeador, utilizando de uma marca famosa para vender um produto cosmético de sua fabricação não causando nenhum dano imediato à saúde, vai cumprir a pena equiparando-se a um crime de estupro de vulnerável.

 Questionamentos como esse têm sido alvo de debates já que tornar hedionda essa fraude em cosméticos seria uma maneira de desviar a atenção daquilo que é essencial, banalizando assim o conceito de crime hediondo. Fere ainda princípios norteadores do Direito Penal, os assegurados na Constituição Federal, bem como os direitos fundamentais que devem garantir aos cidadãos formas de punição que devem ser proporcionais ao bem atingido, o que se percebe que não ocorre com a legislação em tela (SEADI, 2002, p.48). Sendo assim, ao inserir o art. 273 CP no rol de crimes hediondos apenas é levada em conta a importância do bem jurídico que é tutelado, ou seja, a saúde publica, mas, equiparar cosméticos e saneantes a medicamentos é impróprio ainda quando são incorridas as mesmas penas, sob o ponto de vista de tais condutas não possuírem a mesma gravidade das que são inclusas na Lei de Crimes Hediondos.

CONCLUSÃO

 

 

            Diante do exposto, considerando-se a redação atual do art. 273 CP e de sua posterior inclusão no rol de crimes hediondos, percebe-se que a equiparação entre medicamentos, cosméticos e saneantes afronta os Princípios da Ofensividade, Proporcionalidade e Razoabilidade, pois há uma inadequação entre a conduta em si com a dosimetria da pena cominada. 

            Além disso, a classificação como crime hediondo é errônea, pois – ao se valorar apenas o bem jurídico do resguardo à saúde pública – desconsidera-se a conduta em um plano fático, que – na prática – é menos gravosa que as demais também consideradas hediondas.

           

 

REFERÊNCIAS

 

 

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 2007.

BITENCOURT, Cezar. Tratado de direito penal: dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2011a.

BITENCOURT, Cezar. Tratado de direito penal: parte geral. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2011b.

MIRABETE, Julio; FABBRINI, Renato. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 2011.

MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes Hediondos. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte especial. vol. 3. 5 ed. rev.ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

SAUDI, Jorge Abdala. Crimes hediondos e a falsificação de medicamentos. Edipucrs: Porto Alegre, 2002.