O CRIME DE ABORTO NOS CASOS DE GRAVIDEZ CAUSADA POR ESTUPRO: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DA MÃE OU DIREITO À VIDA DO FETO?¹

 

RESUMO

O presente trabalho visa fazer uma breve análise do aborto em caso de estupro. Para tal, analisa-se, fazendo uma abordagem histórica, os direitos inerentes aos sujeitos: gestante e feto, que são respectivamente a dignidade da pessoa humana e o direito à vida. Em seguida será feita uma diferenciação entre aborto e infanticídio, para que se definam bem cada delito para que não haja confusão. Apresentam-se também os casos de criminalização ou não do aborto de acordo com o Código Penal Brasileiro. E por fim, após ter sido dado principal destaque à comparação dos bens jurídicos tutelados, vida do feto e integridade física e psicológica da mãe, chega-se à conclusão que é inconstitucional aborto em caso de estupro, e ainda, que pela importância dos bens jurídicos tutelados, deveria prevalecer o direito à vida.

INTRODUÇÃO

No presente artigo científico, o tema abordado é de grande relevância social, pois trata de temas polêmicos como aborto, estupro e direitos fundamentais. Porém, o tema central é sobre se o aborto em caso de estupro pode ser ou não condenável, dependendo do direito fundamental que se sobressairá: Direito à Vida do feto, ou Direito da Dignidade da Pessoa Humana da gestante. É esse o dilema que irá nortear todo o trabalho, discorrendo-se sobre os crimes em questão e sobre todas as consequências que estes podem vir a causar.

 É uma problemática extremamente delicada, pois não se tem um consenso ou aceitação definitiva sobre tal assunto por parte da sociedade, existe ainda muitas divergências, pois de acordo com o artigo 128 do Código Penal Brasileiro a prática do aborto realizada por médicos é permitida em dois casos, e entre esses dois há o da permissão do aborto se a gravidez resulta de estupro e há consentimento da gestante (aborto sentimental), tal direito foi garantido desde 1940, quando entrou em vigência o Código Penal. Porém, esse artigo pode ser revogado, ainda que não expressamente, se aprovado o Projeto de Lei nº 478/07, proposto pelos deputados Luiz Bassuma e Miguel Martini, que dispõe sobre a proteção à vida do nascituro.

Portanto, fica claro que este estudo será de grande importância, pois além de englobar temas importantes e polêmicos como o estupro, o aborto, a proteção do princípio da dignidade humana, que se fixa, assim, na necessidade de preservar a mãe, seu psicológico e seu físico, a problemática da proteção ao direito à vida do feto, levando em consideração o contexto e a realidade vigente, este tema engloba também o grande dilema sobre se realmente existe um princípio, entre esses, que seja mais relevante para se sobressair sobre outro.      

1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: ABORDAGEM HISTÓRICA

A ideia de Dignidade da Pessoa Humana enquanto valor intrínseco a todo e qualquer ser humano é evidente desde o pensamento clássico, tendo suas raízes na ideologia cristã. Conforme Ingo Wolfgang Sarlet: “Ao pensamento cristão coube, fundados na fraternidade, provocar a mudança de mentalidade em direção à igualdade dos seres humanos” (SARLET, 2002, p. 24). Em acordo com Sarlet (2002) no período da Antiguidade, no pensamento filosófico político, a questão da dignidade estava ligada à posição social de cada um na sociedade, variando assim a dignidade de cada um de acordo com a posição que assim ocupava. Ingo (2002) ainda afirma que no pensamento estoico a ideia de dignidade estava ligada ao ideário de liberdade pessoal e era nesse ponto que os seres humanos se distinguiam dos demais seres. Durante a Idade Média esses dois pensamentos, estoico e cristão, perduram.

Nos séculos XVII e XVIII, período em que predominava o pensamento jusnaturalista, a dignidade era direito natural e aqui neste contexto, Ingo (2002) salienta que o pensamento de Kant merece destaque, visto que, para o mesmo, a dignidade humana é uma qualidade que jamais podia ser substituída, rejeitando este autor qualquer teoria ou ideologia que reduzisse o ser humano à coisa ou objeto. Conforme Kant, “quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade” (1986, p. 77).

Em 1984 a Declaração de Direitos Humanos da ONU traz a dignidade como valor inerente a todo ser humano. Ingo (2002) afirma que é na Carta Constitucional da República Alemã de 1949 que vemos a dignidade da pessoa humana pela primeira vez enquanto princípio constitucional, em seu artigo 1ª, ao afirmar que a dignidade da pessoa humana é inviolável e deve ser respeita e protegida pelas autoridades públicas. 

Nesse mesmo sentido, em acordo com Oliveira (2004):

É a partir da Revolução Francesa (1789) e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no mesmo ano, que os direitos humanos, entendidos como o mínimo ético necessário para a realização do homem, na sua dignidade humana, reassumem  posição de destaque nos estados ocidentais, passando também a ocupar o preâmbulo de diversas ordens constitucionais, como é o caso, por exemplo, das Constituições da Alemanha (Arts. 1º e 19), da Áustria (Arts. 9º, que recebe as disposições do Direito Internacional), da Espanha (Art. 1º, e arts. 15 ao 29), da de Portugal (Art. 2º), sem falar na Constituição da França, que incorpora a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. (OLIVEIRA, 2004, p. 12).

Mister se faz salientar que, ainda que a dignidade não seja concedida nos ordenamentos jurídico-normativos da contemporaneidade, este é tido como princípio fundamental que deve orientar todo o ordenamento. É nesse contexto que a caracterização de Ingo (2002) sobre a Dignidade da Pessoa Humana faz-se necessária:

Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2002, p. 62).

1.1 O CRIME DE ESTUPRO: CARACTERIZAÇÃO

O crime de estupro atenta contra a liberdade que tem todo e qualquer indivíduo de dispor sobre o seu corpo, é configurado no artigo 213 do Código Penal Brasileiro, e ocorre quando, mediante violência ou grave ameaça, constrange-se a mulher à conjunção carnal. Sendo assim, em conformidade com André Studart (2000) temos como elementos objetivos do tipo o verbo constranger, que significa tolher, coagir física ou moralmente e a mulher, independente de qualquer status ou questão social, enquanto sujeito passivo. 

Studart (2000) afirma como elementos normativos do tipo a conjunção carnal, caracterizada pelo relacionamento sexual entre homem e mulher, com a penetração completa ou incompleta do órgão sexual masculino no órgão sexual feminino, não importando outras questões e a violência ou grave ameaça, sendo que esta violência pode ser física ou moral e a ameaça independe do fato de ser justa ou não.

Com relação ao sujeito ativo, conforme Mirabete (2000):

“Somente o homem pode praticar o delito, uma vez que só ele pode manter conjunção carnal com a mulher. A expressão refere-se ao coito denominado normal, que é a penetração do membro viril no órgão sexual da mulher. Nada, entretanto, impede a co-autoria ou participação criminosa; assim, mulher pode responder pelo ilícito na forma do art. 29 do CP. É possível a co-autoria até por omissão daquele que devia e podia agir para evitar o resultado típico.” (MIRABETE, 2000, pág. 1244).

Studart (2000) defende que em relação aos elementos subjetivos do tipo, não há referenciação ao objetivo almejado pelo agente, portanto, pode-se compreender que a questão subjetiva desse crime está intimamente ligada à ideia do constrangimento, mediante uso de violência ou grave ameaça para manter conjunção carnal com a vítima.

1.2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O CRIME DE ABORTO EM GRAVIDEZ PROVENIENTE DE ESTUPRO

É sabido que o aborto é considerado um dos “crimes contra a vida” dentro de nossa esfera jurídica, sendo apenas este permitido pelo artigo 128 do Código Penal em casos de estupro, chamado de aborto sentimental, em casos de risco de vida para a mulher, caracterizado por estado de necessidade e, por decisão do STF pela ADPF 54, votada em 2012, se o feto for anencefálico. Sobre essa permissão, muitos são os questionamentos a respeito e muitos doutrinadores divergem, aqui, no entanto, tratar-se-á sobre a validade e legitimidade dessa permissão e de que forma ela protege o direito de escolha da mulher e, consequentemente, a sua dignidade.

Conforme Manzini (1930), o aborto sentimental é também questão de estado de necessidade, vez que as consequências lesivas de tal ato “constituem a permanência da causa criadora do perigo atual de um grave dano à pessoa” (MANZINI, 1930, p. 512.). Da mesma forma, Magalhães (1975), salienta que esta é uma questão de exercício regular do direito da mulher. Alexandre de Moraes (2005) também defende que deve haver despenalização do aborto quanto este for causado por não liberdade de escolha sexual da mulher, para que assim sua dignidade não seja ferida e seja respeitada.

O estupro é uma das mais graves dentre as diferentes formas de violência que uma mulher pode sofrer. É um evento traumático que provoca grandes consequências na vida da vítima. Carregar um feto que seja resultante desse ato violento tão repugnado pela legislação brasileira, seria como carregar essas lembranças pelo resto de sua vida, além de que nenhum ser humano é obrigado a gerar um ser que não foi fruto de sua escolha, tendo pleno direitos de dispor sobre o próprio corpo, sendo essas questões fundamentais para que se respeite a Dignidade da Pessoa Humana da mulher, princípio norteador de todo o ordenamento jurídico brasileiro. 

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