A CEIA COMO O CORPO DE CRISTO DA TEOLOGIA PAULINA

Werner Schrör Leber

I - O CORPO DE CRISTO

É interessante que a nós cristãos soa muito familiar a expressão “corpo de Cristo”, como se ela fosse recorrente na teologia paulina e em todo NT. Todavia, como mostra o comentador, isso constitui engano. Nas cartas que a exegese considerou autenticamente paulinas, a expressão “corpo de Cristo” surge apenas três vezes. Duas na Carta Primeira aos Coríntios e uma vez mais na Carta aos Romanos. Porém, o fato de afigurar-nos que ela é muito familiar advém da importância do tema que ali é abordado. Trata-se da oração eucarística, um tema muito central para a tradição cristã. Primeiramente Paulo esforça-se para tirar da celebração eucarística o caráter individualista, que os primeiros cristãos trazem do paganismo difundido pelo helenismo, em parte, a doutrina do logos que vem dos estóicos. O caráter da Ceia é múltiplo. A salvação que ali é oferecida não depende de méritos individuais. Deus não escolhe indivíduos apenas pela piedade individual. O projeto de Deus, conforme a teologia paulina do Corpo de Cristo, quer tratar de duas coisas. A Eucaristia e a participação dos que “agora crêem”, nela. É preciso ver que o cristianismo se formou em solo grego, isto é, em solo de cultura helênica. A teologia cristã, a rigor, nada tem a ver com o logos grego, como os estóicos hedonistas dele falaram. O texto de Roloff não o diz abertamente, mas sabemos que a tradição cristã não teve como evitar a cultura grega. Paulo sabe disso e está em luta contra o objetivismo das “logia” com as quais os primeiros cristãos estavam acostumados. Paulo não formula uma teoria soteriológica e ontológica. Antes, sua noção de Corpo de Cristo é uma pregação, uma proclamação radical do evento da Cruz e a salvação. O evento da Cruz leva os cristãos a serem um corpo, ou, todos os que agora creem são parte deste Corpo é o Cristo. É preciso destacar também da seguinte questão: os primeiros cristãos viviam na esperança de que o retorno de Cristo se desse logo. Acreditavam que estivessem vivendo os “últimos dias na terra”. O próprio Paulo, não tanto nas cartas aos coríntios, mas em outras, como, por exemplo, Gálatas, parece estar convencido disso. Em Gálatas Paulo assume uma postura mais radical. A percepção da comunidade cristã como Corpo de Cristo surge me Paulo como um organismo. Como sabemos, um organismo é formado por diferentes partes, e cada uma das diferentes partes executa também funções diferentes. Conforme o comentador, o que Paulo busca com a sua teologia do “Corpo de Cristo” não é a unificação, a homogeneização da comunidade, mas bem o contrário, Paulo quer encontrar formas de mostrar que as diferenças entre as pessoas são como as diferentes partes de um organismo. É preciso ser assim. Cada um como suas diferenças, com suas diferentes visões compõe o Corpo de Cristo. O corpo de Cristo necessita de diferentes dons e habilidades.  Paulo, evidentemente, sabe das diferenças culturais e cultuais do contexto em que está proclamando. Sabe o quanto Cristo é diferente de tudo que até surgiu. Não pode dele falar sob a moldura dos desuses de Estado grego-romanos. Mas bem ao contrário, o Cristo não é uma continuidade da história, mas uma ruptura com ela. Não se trata mais de uma cronologia e sim de kairologia. O Kairós, como diz Tillich, não é apenas a entrada do novo na história, mas o próprio entendimento de história é modificado. O sentido muda. O eterno entrou no mundano. O Eterno assumiu a forma humana, chorou e se alegrou. Ao final da jornada foi posto à cruz. Como tratar de cristologia como um povo que está acostumado ou com a tradição judaica ou com a tradição gentílica grega? Eis a questão! O Corpo de Cristo é a pedagogia paulina para tratar de um assunto em campo minado.  Como falar de salvação para alguém que a vê como resultado de ato voluntarioso, como meta individual? A Ceia não é salvação própria, mas participação no Corpo do Cristo que se entregou à morte por todos.

KOINONÍA

Conforme se pode depreender das considerações do comentador, há variadas interpretações dos especialistas sobre as intenções de Paulo. Para muitos deles, Paulo já tinha clareza de a comunidade cristã seria no futuro a eclesia (a Igreja). Para outros, Paulo não podia ainda ter essa percepção. Sua intenção era apenas reunir diferentes pessoas, com ideais e perspectivas variadas sob uma única celebração, a Ceia como o centro da celebração daquele que se entregou por todos. Mas aqui surgiam os problemas mais sérios também. Para os gentios, a Ceia, assim parece, foi entendida como uma forma individualista de fazer banquetes. Disso se seguia que as pessoas mais abastadas levavam manjares finos, comidas sofisticadas, ao passo que aos mais pobres cabia apenas a observação daquilo que os ricos faziam. Essa visão errada da eucaristia Paulo ataca. No Corpo de Cristo não há mais lugar para a exclusão e o individualismo. Se o Cristo se entrega por todos, é também dever dos mais abastados compartilhar suas posses com os mais fracos.  A divisão social não pode fazer parte da eucaristia. Mas Paulo sabia que muitos ricos faziam suas refeições antes dos menos possuídos chegarem. Aí encontra-se a crítica de Paulo. Se a eucaristia não servir para a comunhão, a partilha, o Corpo de Cristo está doente, a mensagem da salvação não foi entendida.   O que Paulo procura sinalizar é que a prática comunitária da Ceia precisa também estender para além dela, ou seja, ao cristão, ao membro do Corpo de Cristo cabe a aplicação da regra da partilha, da mudança de atitude. O Corpo de Cristo nos foi entregue do mesmo modo como os membros desse corpo agora também precisam praticar a caridade, a consideração com os mais fracos, a koinonía.

FINALIZANDO

Paulo recorre à analogia Corpo de Cristo para apontar que os dons individuais, isto é, a pneumatologia comum no mundo gentílico não dá a ninguém o direito de supor que por isso estão mais agraciados pelo espírito de Deus que outros. Paulo, não quer o individualismo nem a prática da Ceia como uma continuação das divisões sociais já existentes. Para alguns exegetas, a noção Corpo de Cristo é um aprofundamento da noção Estar em Cristo, apresentado na carta aos Gálatas. Os dons espirituais (pneumatologia) não são questões individuais, mas apenas habilidades daqueles que contribuem para a edificação do Corpo de Cristo. Há um só Espírito que deve ser partilhado na Ceia.  Os carismas, os dons, são dádivas de Deus que, por intermédio de seu único Espírito capacita cada membro diferente da comunidade para os diferentes afazeres da vida comunitária.

HEBECHE. Luiz Alberto. O escândalo de Cristo: ensaio sobre Heidegger e São Paulo.  Ijuí, SC:  Editora Unijuí, 2005, p. 86. Chama a atenção como não apenas teólogos, mas sobretudo filósofos preocuparam-se com essa questão. Heidegger, no início do século XX, quando se encontrava em Marburgo juntamente com Rudolf Bultmann, procurou mostrar o erro que sempre se cometeu ao confundir a metafísica com Deus. Do texto citado, por exemplo, p. 63. O problema de Deus e dos seres humanos não é uma questão de conceitos corretos, mas de faticidade fidedigna, de temporalidade existencial que só a fé, incondicional e última, pode apresentar.