ZÉLIA GATTAI E O CENTENÁRIO DE JORGE AMADO

Com quatorze ou quinze anos comecei a ler os livros do Jorge Amado, graças a uma nova biblioteca que foi inaugurada em meu bairro em São Caetano do Sul. Lá estava a coleção completa, na época, com os volumes em capa vermelha e letras brancas. Comecei a minha aventura literária com Terras do Sem fim, depois Cacau e Suor, Capitães da Areia, Jubiabá, Seara Vermelha, Os velhos marinheiros, com o inesquecível Quincas Berro D’água ou o Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso. Depois li os Subterrâneos da Liberdade, ABC de Castro Alves. Gabriela e Dona Flor, li bem depois, pois ainda não fazia parte da coleção da biblioteca.

Nunca mais li Jorge Amado. Por falta de tempo e também por ter mudado de foco em relação aos interesses literários. Mas foi durante as últimas férias de julho que resolvi aproveitar uma parte do ócio para ler os livros de memórias da sua mulher, Zélia Gattai. Comecei com “Anarquistas graças a Deus”, onde me deliciei com as histórias de sua infância na velha São Paulo, habitada por muitos imigrantes, principalmente, italianos. As histórias do seu Ernesto Gattai, um anarquista, mecânico e piloto de automóveis de corrida nos tempos em que dirigir era uma aventura, são deliciosas. Ele foi o primeiro motorista a fazer a viagem de ida e volta até a baixada santista.  Depois li Um chapéu para viagem em que a autora conta como conheceu o escritor Jorge Amado durante a campanha política quando se elegeu deputado federal por São Paulo pelo Partido Comunista Brasileiro. Zélia já era separada do seu primeiro marido, o militante político Luiz Carlos Vieira. Neste livro ela narra as suas aventuras como paquera, namorada e depois mulher do escritor. O episódio da paquera é saboroso, quando Jorge Amado usa seus amigos Pablo Neruda, poeta chileno, prêmio Nobel de Literatura e o compositor baiano Dorival Caymmi para fazer suas declarações de amor a jovem paulistana. O livro termina com a partida para a Europa para se encontrar com Jorge Amado, já refugiado na França por conta das perseguições e ameaças que estava recebendo no país. Pouco antes da viagem de Zélia para a Europa, a residência do casal foi invadida por policiais truculentos que se apossaram de documentos, fotografias e cartas do escritor que nunca mais foram devolvidos.

Zélia partiu num navio em direção à Itália com seu primeiro filho com o escritor, João Jorge Amado, com apenas três meses de idade. Isso é narrado no volume “Senhora dona do baile”, onde as peripécias do casal em Paris são narradas de forma bastante saborosa, incluindo bons vinhos, queijos, pães franceses e a insubstituível feijoada. De Paris, morando no Grand Hôtel Saint-Michel da Madame Salvage, o casal fez várias viagens pelos países do leste europeu, como Checoslováquia, Polônia, Romênia, União Soviética, Bulgária, participando de congressos pela paz, do qual Jorge Amado era um dos palestrantes. Depois de quase dois anos morando em Paris, cidade que Jorge Amado amava, eles recebem um ultimato para saírem da França em quinze dias. As razões estavam ligadas à Guerra Fria, pois o escritor era filiado ao partido comunista. Sem possibilidades de retornar para o Brasil, foram para a Checoslováquia onde ficaram hospedados na “Casa do Escritor da Checoslováquia”, um antigo palácio que foi expropriado pela revolução socialista. Neste palácio nasceu Paloma, segunda filha do casal.

Na Checoslováquia o casal começa a conhecer de perto a realidade dos regimes comunistas, com a perseguição de velhos amigos do casal. Da noite para o dia pessoas com prestígio no país são colocadas no ostracismo ou mesmo presas como o intelectual marxista romeno George Lukacz. O sonho socialista libertário que ainda dominava o imaginário de Zélia começa a perder os seus alicerces.  Zélia não pertencia aos quadros do PCB, como Jorge Amado, pois sua visão libertária estava ligada ao anarquismo do seu pai, o italiano Ernesto Gattai, que nunca conviveu de forma pacífica com o comunismo liderado pela União Soviética.

Estava concluída mais uma aventura através das memórias de Zélia Gattai, que começou no Brasil, passando pela França, Checoslováquia, União Soviética, China e outros países do leste europeu, quando foi possível estabelecer contato, pelos olhos de uma paulistana ítalo-baiana, com a cultura de vários países, a luta pela reconstrução de cidades destruídas pelo nazismo, a falta de sabão, frutas e outras coisas essenciais.  Zélia continuava viva em minhas lembranças, comentando coisas simples do cotidiano, a saudade dos filhos durante as viagens, às vezes que passaram por dificuldades, as despedidas dos amigos que nunca mais encontraram, dos amigos que permaneceram, como o poeta Pablo Neruda, padrinho dos filhos.

De volta ao Brasil, Jorge Amado passa a se dedicar exclusivamente à literatura, desligando-se do Partido Comunista. Com mais tempo para escrever, surge um Jorge Amado mais suave e sensual, voltado para a crítica de costumes ironizando o moralismo tacanho das velhas elites. Menos radical, aceita uma cadeira na velha e carcomida Academia Brasileira de Letras. Depois de um período no Rio de Janeiro, retorna à sua terra, onde vive o restante de sua produtiva vida ao lado da sua companheira inseparável, dos filhos e netos.

Depois da leitura das memórias da Zélia, surgiu a pergunta inevitável: o que estarão fazendo os filhos do casal? Em tempos de sociedade em rede, sabe-se de tudo. O carioca João Jorge Amado, hoje advogado e responsável pela Fundação Jorge Amado, está lá mesmo em Salvador, onde a família passou a residir depois de um período no Rio de Janeiro. A psicóloga Paloma Jorge Amado, nascida na Checoslováquia, mora no Rio de Janeiro e dedica-se a literatura infantil. E já que estamos numa sociedade globalmente conectada, resolvi convidá-los para integrar a minha lista de amigos e conhecidos. E hoje compartilho as postagens dos filhos do grande escritor, que segundo a Zélia não ganhou o Prêmio Nobel por questiúnculas político-ideológicas que contaminaram o júri do mais importante prêmio literário e científico do mundo.

Talvez seja, também, o momento de reler a obra do Jorge Amado para sentir se o Brasil mudou no século XXI em relação à realidade dos anos 1930 tão bem retratada pelo escritor em seus primeiros livros. A luta pela terra na zona cacaueira em que os poderosos sempre venciam, expulsando os pequenos posseiros e proprietários. Campeando pelos jornais, parece que o Brasil continua o mesmo, com o problema da terra ainda ganhando destaque nos noticiários, com conflitos armados em que os despossuídos sempre levam a pior. Aqueles que ousam defender os mais fracos, como a Irmã Dorothy Stang, são também eliminados por jagunços em tocaias, tal qual acontecia nas Terras do Sem Fim do cacau.

Enfim, penso que seria de bom senso os gestores do prêmio pensarem num prêmio póstumo para resgatar as injustiças que cometeram, principalmente para com os brasileiros. Quem sabe Jorge Amado, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade poderiam estar nesta seleta lista.