O CASO WAGNER: UM PROBLEMA PARA MÚSICOS

1. Publicado em 1888, O Caso Wagner. Um Problema para Músicos ['Der Fall Wagner. Ein Musikanten-Problem'] figura entre os escritos do último ano de produção intelectual de Nietzsche, entre os quais estão Crepúsculo dos ÍdolosNietzsche contra Wagner, além de O Anticristo e Ecce Homo. Sendo, pois, imprescindível ter em vista todo o contexto imediato em que se inscreve o livro em tela, mostra-se igualmente necessário, ao lê-lo, evitar o equívoco de pensar que os temas ali tratados, inclusive o próprio ataque ao compositor, constituem novidades repentinas e absolutas em sua obra. 

Para fazer justiça a este trabalho, é preciso sobre do destino da música como de uma ferida aberta. -- 'De que' sofro quando sofro do destino da música? Do fato de que a música foi despojada de seu caráter afirmativo, transfigurador do mundo, de que é música de 'décadence' e não mais a flauta de Dionísio... Supondo, porém, que se sinta a causa da música de tal maneira como a sua 'própria' causa, como a história do 'próprio' sofrimento, então se verá esse escrito como pleno de deferências e sobremaneira suave. [...] (EH/EH - O caso Wagner: um problema para músicos, §1)

2. Se o título do livro explicita de partida que nele Wagner ocupa um papel central, cabe procurar sab que aspecto exatamente o maestro interessa a Nietzsche. A tal propósito destina-se já o prefácio. Suas primeiras palavras bem poderiam sugerir que a intenção fundamental das páginas subsequentes se reduziria a um mero ataque pessoal. Com tal escrito, diz o início do prefácio, seu autor quer proporcionar a si mesmo uma 'Erleichterung', isto é, um alívio, liberando-se de algo, nomeadamente de Wagner e do wagnerianismo. Mas, a bem dizer, dar as costas ao compositor e livrar-se, não sem alegria, do wagnerianismo, com o qual Nietzsche, segundo sua própria avaliação, estivera tão perigosamente vinculado e contra o qual se defenderia duramente, constituíram um longo processo, em que o livro em questão vem inscrever-se.

Vou me permitir um breve descanso. Não é pura malícia, se neste escrito faço o elogio de Bizet à custa de Wagner. Em meio a várias brincadeiras, apresento uma questão com que não se deve brincar. Voltar as costas a Wagner foi para mim um destino; gostar novamente de algo, uma vitória. Ninguém, talvez, cresceu tão perigosamente junto ao wagnerianismo, ninguém lhe resistiu mais duramente, ninguém se alegrou tanto por livrar-se dele. Uma longa história! -- Querem uma designação para ela? -- Se eu fosse um moralista, quem sabe como a chamaria? Talvez 'superação de si'. -- Mas o filósofo não ama os moralistas... E também não ama as palabras bonitas... (WA/CW, Prólogo)

3. A exemplo da ofensiva dirigida, entre outros, a Schopenhauer e à assim designada humanidade moderna, a invectiva contra Wagner faz parte de uma aspiração maior de Nietzsche, a saber, lutar contra tudo o que nele próprio se manifesta como doença. Alvejando Wagner, Nietzsche porta-se, ademais, em sintonia com a exigência de extemporaneidade colocada a todo filósofo, que deve combater e superar o que é, nele mesmo, filho do próprio tempo, isto é, o que representa uma filiação aos valores da época. Mesmo tendo, como admite em Ecce Homo, amado Wagner, Nietzsche terminou por reconhecer nele um filho do tempo e, assim, um decadente, de sorte que, enquanto filósofo, precisou defender-se contra ele.

Que exige um filósofo de si, em primeiro e em último lugar? Superar em si seu tempo, tornar-se "atemporal". Logo, contra o que deve travar seu mais duro combate? Contra aquilo que o faz um filho de seu tempo. Muito bem! Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um 'décadent': mas eu compreendi isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu. (WA/CW, Prólogo)

4. Necessariamente extemporâneo, um autêntico filósofo tem de ser a má consciência de seu tempo, o que requer, antes de tudo, um profundo conhecimento da época. É aí que reside, de fato, o interesse de Nietzsche por Wagner: na medida em que este resume a modernidade, a qual por meio dele fala a sua linguagem mais íntima, então compreender o compositor se revela uma tarefa indispensável a todo e qualquer filósofo, que assim alcançará o exigido saber a respeito de seu tempo. Não se trata, portanto, nem de interesse nem de invectiva simplesmente pessoais, conforme o próprio autor se preocupa em esclarecer. Com efeito, ao expor, em Ecce Homo, o terceiro dos quatro princípios de sua prática guerreira, Nietzsche afirma que não ataca pessoas, mas antes se serve delas como uma lente de aumento que oferece a possibilidade de evidenciar um estado de necessidade global, embora pouco perceptível. Ao ocupar-se do caso Wagner em particular, o filósofo pretendia, bem entendido, obter um diagnóstico da modernidade e tornar manifesta a falsidade de sua contemporânea "cultura". 

Retiremo-nos enfim pro um instante, para respirar, do estreito mundo a que toda questão sobre o valor de 'pessoas condena o espírito. Um filósofo sente necessidade de lavar as mãos, após haver se ocupado tão longamente com o "caso Wagner". -- [...] (WA/CW - Epílogo)

5. A modernidade se define, segundo o epílogo de O Caso Wagner, por uma falsidade -- o mesmo é dizer, por uma ausência de probidade -- que se caracteriza por um não querer perceber os antagonismos enquanto antagonismos. Para Nietzsche, a medida de força de cada época determina quais virtudes lhe são permitidas e quais, proibidas: uma época ou possui as virtudes de uma vida ascendente e resiste às virtudes de uma vida declinante ou vice-versa. Os mesmos antagonismos se fazem nota no domínio estético, trantando-se sempre ou de uma estética decadente ou de uma estética clássica, dá entre a moral dos senhores e a moral cristã: a primeira, sinal de vida ascedente, equivale à afirmação e ao embelezamento do mundo, ao passo que a segunda, proveniente de um solo mórbido, traduz a negação do mundo. Tais antagonismos, que se exprimem na ótica dos valores, são, de resto, necessários, não se deixando dirimir por razões e refutações: assim como não se refuta uma doença dos olhos, de igual modo não se refutam o cristianismo e o pessimismo. 

[...] -- Darei minha concepção do que é 'moderno'. -- Toda época tem, na sua medida de força, também uma medida de quais virtudes lhe são permitidas, quais proibidas. Ou tem as virtudes da vida 'ascendente': então resiste profundamente às virtudes da vida declinante. Ou é ela mesma uma vida declinante -- então necessita também das virtudes do declínio, então odeia tudo o que se justifica apenas a partir da abundância, da sobre-riqueza de forças. A estética se acha indissoluvelmente ligada a esses pressupostos biológicos: há uma estética da 'décadence', há uma estética 'clássica' -- algo "belo em si" é uma quimera, como todo o idealismo. -- [...] (WA/CW - Epílogo)

6. É preciso, entretanto, perceber os antagonismos como antagonismos, justamente o que o homem moderno não faz: trazendo em si valores de proveniências opostas, ele é, fisiologicamente falando, uma falsidade. Em especial os alemães -- insiste Nietzsche em suas considerações sobre O Caso Wagner em Ecce Homo -- não se decidem diante dos antagonismos, admitindo, simultaneamente e com toda a naturalidade, "a fé" e a cientificidade, o "amor cristão" e o antissemitismo, entre outras oposições. Em semelhantes falsidades, assevera Nietzsche no epílogo de O Caso Wagner, o compositor se revela um verdadeiro mestre, pois aspira à moral nobre ao mesmo tempo em que dá voz à doutrina oposta, cedendo à necessidade de salvação, pretensão cristã por excelência, um lugar central em sua obra, como procura evidenciar o terceiro parágrafo do livro em questão.

Já percebem como essa música me torna melhor? -- 'Il faut méditerraniser la musique [É preciso mediterranizar a música]: tenho razões para esta fórmula (Além do bem e do mal, §255). O retorno à natureza, a saúde, alegria, juventude, virtude! -- E no entanto eu fui um dos mais corruptos wagnerianos... Eu fui capaz de levar Wagner a sério... Ah, esse velho feiticeiro! Como nos iludiu! A primeira coisa que a sua arte nos oferece é uma lente de aumento: olhando por ela, não se acredita nos próprios olhos -- tudo fica grande, 'até Wagner fica grande'... Que astuta cascavel! Toda a vida ela nos falou ruidosamente em "dedicação", "fidelidade", "pureza", com um elogio à castidade retirou-se do mundo 'depravado'! -- E nós acreditamos...  [...] (WA/CW, §3)

7. O exame do caso Wagner, funcionando como uma lente de aumento, permite a Nietzsche ver e fazer ver uma situação de caráter mais geral, a decadência europeia, que logo no prefácio se apresenta como um problema fundamental. Já o fato de a Europa não ter percebido o compositor como decadente, defenderá Nietzsche no quinto parágrafo, é um sinal da própria decadência europeia, pois não observar o nocivo enquanto nocivo constitui, por si só, um indício de decadência, assim como deixar-se atrair pelo prejudicial, um signo de esgotamento. O próprio sucesso da arte wagneriana é, portanto, revelador. Aqueles sobre os quais Wagner, que Nietzsche não hesita em denominar uma doença nociva e corrupta, exerce atração não podem pertencer senão, pelo simples motivo de sentirem-se atraídos, a uma espécie de homens esgotada e fraca. 

'O artista da décadence' -- eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade. Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse 'décadente' nos estraga a saúde -- e a música, além disso! Wagner é realmente um ser humano? Não seria antes uma doença? Ele torna doente aquilo em que toca -- 'ele tornou a música doente' -- Um típico 'décadente', que se sente necessário com seu gosto corrompido, que o reivindica como um gosto superior, que sabe pôr em relevo sua corrupção, como lei, cmo progresso, como realização. E não lhe opõem resistência. Seu poder de sedução cresce desmesuradamente, nuvens de incenso o rodeiam, o mal-entendido a seu respeito chama-se "Evangelho" -- ele não se limitou a convencer somente os 'pobres de espírito'! Sinto o desejo de abrir um pouco a janela. Ar! Mais ar! [...] (WA/CW, §5)

8. Ao expor a ideia de que Wagner tornou doentes a arte e a música, Nietzsche recorre, como ilustra de modo marcante, entre outros, o quinto parágrafo, a um léxico fisiológico e médico -- o que indica, aliás, uma das conotações possíveis do termo "caso" presente no título do escrito. Nas obras do compositor, o que se vê são problemas de histéricos, afetos convulsivos e sensibilidade superexcitada; considerados como tipos fisiológicos, seus heróis e heroínas compõem uma galeria de doentes, e Wagner, ele mesmo, é uma neurose. O artista e sua arte não constituem, em suma, mais do que expressão de degenerescência fisiológica. 

[...] Eis o ponto de vista que destaco: a arte de Wagner é doente. Os problemas que ele põe no palco - todos problemas de histéricos --, a natureza convulsiva dos seus afetos, sua sensibilidade exacerbada, seu gosto, que exigia temperos sempre mais picantes, sua instabilidade, que ele travestiu em princípios, e, não menos importante, a escolha de sues heróis e heroínas, considerados como tipos psicológicos (-- uma galeria de doentes!): tudo isso representa um quadro clínico que não deixa dúvidas. 'Wagner est une névrose' [Wagner é uma neurose]. Talvez nada exista de tão conhecido hoje, ao menos nada foi tão bem estudado, quanto o caráter protéico da degenerescência, que aqui se fez crisálida de arte e artista. Nossos médicos e fisiólogos têm em Wagner seu caso mais interessante, ou no mínimo um caso muito completo. Precisamente porque nada é mais moderno do que esse adoecimento geral, essa tardeza e superexcitação do mecanismo nervoso, Wagner é o 'artista moderno par excellence', o Cagliostro da modernidade. Em sua arte se encontra, misturado da maneira mais sedutora, aquilo de que o mundo hoje tem mais necessidade -- os três grandes estimulantes dos exaustos: o elemento 'brutal', o 'artificial' e o 'inocente' (idiota). [...] (WA/CW, §5)

9. Semelhante degenerescência se manifesta ainda, aos olhos de Nietzsche, na transformação do músico em ator, que ocorre de modo inaugural em Wagner, e no predomínio do teatro sobre as artes em geral. A instituição de um "estilo dramático" na música se deve, sustenta o filósofo no sétimo parágrafo, à incapacidade do compositor para o estilo propriamente dito, mais exatamente para a construção de formas orgânicas. Em tal inaptidão se revelaria a decadência estilística de Wagner. Para chegar a essa conclusão, Nietzsche, inspirando-se em Paul Bourget, parte da definição de decadência literária, que se caracteriza pela soberania da palavra em relação à oração, da oração em relação à página e, por fim, da página em relação ao livro, de tal sorte que, destacando-se as partes, o todo não existe mais enquanto um todo organizado. E o mesmo se verifica, no entender de Nietzsche, em todo e qualquer estilo da decadência. Pois bem, se já no primeiro parágrafo o autor considerara antagônicas a música de Bizet, organizada e acabada, e a de Wagner, com sua "melodia infinita", ele encontrará ocasião, agora no sétimo parágrafo, para retornar o tema, só que desta vez à luz de suas observações sobre o estilo da decadência. Miniaturista da música, Wagner faz sobressair os mais ínfimos detalhes em detremento de um todo orgânico, mostrando-se assim um típico decadente, cuja arte, ao menor contato, corrompe o gosto. 

Basta! Basta! Receio que terão claramente reconhecido, sob esses traços alegres, a sinistra realidade -- o quadro de um declínio da arte, um declínio também do artista. Este último, um declínio de caráter, poderia talvez ser expresso provisoriamente com esta fórmula: o músico agora se faz ator, sua arte se transforma cada vez mais num talento para 'mentir'. Terei oportunidade (num capítulo da minha obra principal levará o título de "Fisiologia da estética") de mostrar mais detalhadamente como essa metamorfose geral da arte em histrionismo é uma expressão de degenerescência fisiológica (mais precisamente, uma forma de histerismo), tanto quanto cada corrupção e fraqueza da arte inaugurada por Wagner: por exemplo, a instabilidade da sua ótica, que obriga (a todo instante) a mudar de posição diante dela. Nada se compreende de Wagne, ao distinguir nele apenas um arbitrário jogo da natureza, um capricho e um acaso. Ele não era um gênio "incompleto", "desafortunado", "contraditório", como já foi dito. Wagner era algo 'perfeito', um típico 'décadent', no qual não há "livre-arbítrio", e cada feição tem sua necessidade. Se algo é interessante em Wagner, é a lógica com que um defeito fisiológico progride passo a passo, de conclusão em conclusão, como prática e procedimento, como invasão nos princípios, como crise do gosto. [...] (WA/CW, §7)

10. Lançando mão sobretudo da linguagem e da literatura, da representação cênica e da gestualidade, a música wagneriana encontra, é verdade, o entusiasmo das massas. Mas, segundo a apreciação de Nietzsche, uma música assim só pode atrair um determinado público, notadamente pessoas fracas e esgotadas. Sobre elas, o compositor atua qual um hipnotizador, cuja música estimula e convence, porém, tão somente nervos cansados. Para Nietzsche, portanto, o sucesso de Wagner permite dizer algo acerca do próprio público junto ao qual sua obra se vê acolhida. 

 

Referências:

MARTON, Scarlett. Modernidade e 'Décadence': Wagner e a cultura filisteia. In: MARTON, Scarlett; BRANCO, Maria João Mayer; CONSTÂNCIO, João (orgs.). Sujeito, 'Décadence' e Arte: Nietzsche e a Modernidade. Lisboa: Tinta da China, 2014, p.199-225.

MARTON, Scarlett [ed. resp.] Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.

NIETZSCHE, Friedrich W. O Caso Wagner. Um Problema para Músicos. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SALANSKI, Emmanuel. La médicalisation nietzschéene du "cas Wagner". In: DENAT, Céline; WOTLING, Patrick (orgs.). Nietzsche. Les textes sur Wagner. Reims: Épure, 2015, p.117-134.
 

STEIN, Jacob e CAMPOS, Marcelo de Deus