O CÃO FILÓSOFO

Diariamente, pela manhã, quando saía, passava junto a um simpático cão peludo. A primeira vez que o vi, ia distraído e quando percebi estava ao seu lado e pensei que iria atacar-me. Mas, para minha surpresa, ele olhou-me de uma maneira tristonha e começou a sacudir o rabo. Foi assim que começou nossa amizade.
Como naquele dia havia saído com certa pressa, levava um dos bolsos da japona cheio de bolachinhas. O primeiro que fiz foi oferecer-lhe algumas, as quais ele comeu com avidez. Quando já ia seguir meu caminho, fiquei surpreso ao ouvir que ele me chamava dizendo:
-- Por favor, amigo, deixe mais algumas, pois não comi nada hoje!
Fiz o que me pedia e segui, pensando que aquele seria um cão especial, pois falava corretamente o português. No dia seguinte, lá estava ele novamente. Quando me viu, veio faceiro ao meu encontro, e logo foi perguntando:
-- Trouxe bolachinhas hoje?
Naturalmente que as tinha, e como não estava com pressa, resolvi conversar um pouco para saber algo sobre esse simpático e inteligente personagem. Perguntei se morava por ali e se costumava levantar-se cedo.
Sim, mas passo a noite aqui na porta. Durmo algumas poucas horas durante o dia. Meu dono não me deixa entrar, pois diz que lugar de cachorro é na rua.
-- Sujeito desalmado, lamento muito. Que posso fazer por você?
-- Basta que fale comigo e me convide sempre com bolachinhas. E você o que faz, que sempre anda com esses livros e papéis por todo o lado?
-- Bem, tenho a estranha mania de ler e escrever.
-- Ótimo, assim poderemos conversar, pois eu também leio muito.
Ao ver meu olhar de incredulidade, pareceu ofendido.
-- Vocês os humanos, pensam que sabem tudo. Eu também estou bem informado, pois leio os jornais expostos na banca aqui ao lado. Além disso, quando meu dono cochila durante a tarde, eu freqüento a sua biblioteca, a qual é muito diversificada.
Cada vez ficava mais impressionado com o sujeito. Tratava-se de um cão filósofo.
Ele me olhou com altivez e esboçou um sorriso aparentemente irônico.
-- Vocês são muito presunçosos. Para seu conhecimento saiba que eu sou de estirpe nobre. Pois um dos meus antepassados foi o famoso cão de Schopenhauer.
-- Puxa, eu não sabia! Conte-me algo mais sobre você.
-- Minha existência é muito dura. Perdi a fé em vocês os humanos. Jogam-me pedras, recebo insultos, nunca estão conforme. Você é o primeiro com quem faço amizade. Espero que não me decepcione.
Ficamos alguns momentos em silêncio. Notei que olhava fixo para meu bolso, enquanto algumas gotas de saliva escorriam de sua língua.
-- Que acontece com você, está se sentindo mal?
-- Você não entende. É o processo de salivação. Por acaso nunca ouviu falar de Pavlov, aquele camarada russo que estudou os nossos reflexos condicionados? É que estou desejando mais bolachinhas.
Comeu algumas e após alguns instantes voltou a falar.
-- Sabe, estou pensando em lançar minha candidatura ...

-- Você?! Ora, vejam só, isso já é atrevimento demais para um cão.
-- É o que pensa. Estive estudando o assunto e verifiquei que já houve precedentes no mundo que os humanos chamam de animal.
-- Como assim, não estou entendendo?
-- Nem parece que você lê. Por acaso não ouviu falar no macaco Tião lá do Rio de Janeiro? Foi escolhido por grande maioria, na época. Agora que ele se foi, estou pensando em ocupar o seu espaço nas próximas eleições.
-- Por que você faria isso?
-- Veja bem. Muitos de vocês os humanos estão cada dia ocupando mais nossos espaços, e isso está causando um desequilíbrio na natureza, pois onde vamos colocar tantos animais? Não está vendo o que acontece todos os dias neste país, onde tudo vira farra de larápios; onde se pagam verdadeiras fortunas para multinacionais se instalarem com isenção de impostos, em detrimento de milhões de brasileiros que se encontram em situação de miséria; em que políticos corruptos aplicam calotes na população; em que se permite a devastação da Amazônia pelas madeireiras, isso entre uma infinidade de coisas mais? Alguém tem que lutar contra tudo isso!
Fiquei impressionado com tamanha eloqüência, mas admiti que estava diante de alguém que tinha uma filosofia de vida. Já não me animava mais a chamá-lo de animal. Tentei saber algo mais sobre suas idéias.
-- Que pensa usar como lema em sua campanha eleitoral?
-- Algo significativo: "Vote em um candidato que não tem rabo."
-- Mas como, se estou vendo que tem rabo sim?
-- Não contavas com minha astúcia. Vou esconder o rabo entre as pernas.
Realmente, era muito astuto o sujeito. Sua filosofia de vida era admirável. Se fosse eleito, ao menos sua situação melhoraria radicalmente, pois mesmo sendo honesto, lá em Brasília ele se aposentaria em poucos anos.
E se meu amigo, ao chegar lá mudasse de idéia e resolvesse meter a mão na "massa", digo, no bolso do povo? Bem, ele não seria o único, coitado. Se o pegassem, instalariam uma CPI, e o resultado seria uma grande ?pizza?, a qual no final não resultaria em nada, como sempre acontece. Além do mais, meu amigo filósofo comeria a ?pizza?, resolvendo assim o seu problema total.
Como se lesse meus pensamentos, subitamente perguntou:
-- Que livros leva aí, embaixo do braço?
Olhou os títulos e, de repente, ficando sério, falou:
-- Ah! Este aqui eu já li, e este aqui também. Você sabe, eu leio muito. Conheço autores de todo o mundo. Fazendo uma pausa, leu o título do terceiro livro e exclamou:
-- Epa! Este aqui eu não conhecia. Quem é esse autor?
Fiquei satisfeito, pois finalmente havia pego aquele cão presunçoso em algo que ele não sabia.
-- Ele já escreveu vários livros. Além disso, é um escritor santanense. Saiba disso.
Ele olhou-me por um instante, e sacudindo as orelhas comentou:
-- Bem, você sabe, tem um ditado popular que diz: "Santo de casa não faz milagre", não é? Na biblioteca do meu dono só tem autores estrangeiros. Não que eu tenha algo contra eles, pois a literatura é universal, mas ...
Fiquei olhando para ele pensativo.
Não estaria aí a razão em grande parte pela qual aconteciam essas coisas em nosso país? Estaria aí a razão pela qual muitas obras importantes são deixadas de lado, enquanto são campeões de venda os "Best-sellers" que contam a vida de artistas famosas, as quais narram a maneira inescrupulosa como viveram; dos amantes e vários maridos que tiveram e enfeitaram com belos pares de cornos; de biografias e mexericos de toda espécie; de livros que contam a vida de pessoas consideradas famosas, e que deixam os tolos com água na boca de tanta inveja, etc.
Agora entendia por que aquele cão era realmente um filósofo.

Geraldo Mastella
Escritor santanense

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