Não é novidade prá ninguém, que o brasileiro, em sua significativa maioria, é pobre. Existe uma parcela dessa maioria, infelizmente ainda muito pequena, se confrontada com o todo, que tem consciência da sua condição de pobreza e sabe que sua classificação, em termos de posição social, avança bastante no alfabeto. Essa parcela, de um modo geral, apesar de não ter auferido apropriar-se da cultura hegemônica, por não ter podido freqüentar escolas de jeito nenhum ou muito pouco, mesmo assim procura compreender a realidade em que está mergulhada. Procura entender os porques das coisas, as engrenagens das relações sociais e econômicas, o seu ser no mundo, o seu estado de desprestígio, abandono e exclusão.
São aquelas pessoas que, mesmo não dispondo, muitas vezes, do chamado saber escolar, dispõem de outro saber, o saber da vida, e desconfiam do poder do destino, do determinismo místico, de uma falsa normalidade, imposta sub-reptícia e veladamente por forças invisíveis. São pessoas que começam a sair de um estado de torpor e arriscam um mergulho além das aparências. Descobrem, estarrecidas, que a humanidade, ao contrário do lógico, do sensato, do humano mesmo, não está toda ela do mesmo lado. Descobre que ela, a humanidade, está dividida, existindo um lado bom, confortável e "decente", para algumas pessoas, e um lado mau, sofrido, perverso, desumano, para outras.
Aí se perguntam, após constatarem mui decepcionadamente. "Por que estou do lado ruim?" Êta perguntinha danada, cuja resposta desencadeia uma infinidade de fatores entrelaçados, formando uma teia de alta complexidade! "Eis a questão: há dois lados básicos, e eu fui parar no pior deles, sem escolher nem consentir."
Na seqüência desse labirinto de interrogações, vem uma outra questão. "Pois bem, se agora tenho consciência de que na sociedade da qual faço parte existem dois lados, um bom e outro ruim, claro está que tenho agora, até por uma questão de lógica, de fazer alguma coisa para mudar de lado. Quero dar adeus a este lado ruim, no qual já vivi por tanto tempo, e passar agora para o lado bom, pelo menos para gozar o resto de vida que tenho." Pois é, boa e inteligente reflexão.
Mas a coisa não para por aí. Foi mexer com perguntas desmedidas, com abstrações insólitas, agora aguente a inquietude do pensamento. "E agora, mudar de lado depende só de mim ou há obstáculos que devo transpor? Se existem, esses obstáculos são apenas de ordem operacional ou são também, de ordem política?". Traduzindo o pensamento do nosso herói, a sua preocupação reside em saber se, tendo ele decidido a mudar de lado (entenda-se de classe, estritamente), isso vai depender tão-somente de seu esforço pessoal ou se alguém ou alguma coisa vai impedi-lo de fazer isso.
O nosso personagem chegou ao ponto crucial. Já desconfiou de que mudar de lado, no sentido de passar do ruim para o bem bom, isto é, de evoluir de uma classe social menos favorecida para outra melhor, não é só fazer a opção. Acertou em cheio. Tanto é que bilhões de pessoas, em todo o mundo, já descobriram essa melancólica realidade. Sair da situação de pobreza e miséria para uma condição mais confortável de vida, implica em tomada de consciência da realidade de cada um, primeiro, e de lutas, persistência, teimosia e ideal firme, na seqüência. Em síntese, é a apropriação do âmbito político, da necessidade de organização social.
Mas aqui se impõe uma outra reflexão. Quando se fala em organização social está-se falando em coletivo, está-se pensando num contingente de pessoas que compartilham as mesmas condições de vida, de uma perspectiva econômica e cultural. São as conhecidas classes sociais que existem em países cujo sistema econômico responde pelo nome de capitalismo.
Não está em nossos planos, nesta oportunidade, enveredarmos pela questão das lutas de classes. Esta é uma velha história que, no entanto, sempre está em evidência, mas foge ao objeto de nossa reflexão, neste momento.
Observando a dinâmica do cotidiano das pessoas, me vem à mente uma coisa um tanto curiosa. Veja se estou certo ou não. Por uma coerência que se assenta no âmbito social, econômico e cultural, é de se imaginar que um indivíduo, que vem do seio de uma família pobre, almeje melhorar de vida. Aí aparece um entre dois caminhos a seguir: se ele é um daqueles mencionados acima, que procura apreender o significado de sua realidade, que se faz consciente do seu mundo fenomênico, em que há pessoas abastadas, acumuladoras de bens, cada vez em maior quantidade, em que há injustiças, desigualdades de oportunidades e um forte sistema opressor, ele, de posse dessas informações, vai procurar aliar-se e organizar-se junto com seus pares, à procura de formar uma força política que tenha condição mínima efetiva de fazer frente aos seus algozes, porque entende que sozinho não pode levar à frente nenhuma transformação social que seja, mesmo porque, como se sabe, transformação mesmo que interessa a uma nação despossuída é transformação social e não transfomação individual.
Entretanto, se ele é daqueles alienados, que nunca sentou para refletir a realidade de sua vida, se nunca se deu conta de que existe uma ordem estabelecida que alimenta este status quo opressor, que discrimina, exclui e determina que muitos devem ser e permanecer pobres, enquanto outros, muito poucos, se comparados aos primeiros, devem ser e continuar ricos, então o que ele vai fazer é validar a ordem vigente, mesmo sem o saber (mas nem sempre), e travar uma luta solitária, individual, na grande maioria das vezes inglória. Isto porque é de se esperar, salvo as exceções de praxe, que na esteira de sua pobreza venha a carência de escolaridade, de habilidade, de recursos e destrezas para "vencer".
Não queremos enfatizar que as pessoas agora estejam proibidas de procurarem crescer. Em absoluto. Pensar em crescer como pessoa e economicamente é sempre necessário. Muita gente se engana ao pensar que ser pobre é aspiração de socialista preguiçoso. A realidade não passa por aí. O que o socialista em verdade não quer é que um mundo de gente tenha de nascer e permanecer pobre pro resto da vida, enquanto uma minoria (mínima mesmo, confiram-se as estatísticas) tenha direito a nascer e permanecer rica pelo resto da vida. Pensar que os socialistas almejam que todos fiquem pobres é no mínimo ingênuo. O que eles querem e lutam por isso, é que, senão ricos, mas que, pelo menos, todos tenham casa confortável, educação com alto padrão, transporte de boa qualidade (coletivo ou particular), acesso à cultura socialmente produzida e historicamente acumulada, saúde e lazer.
E por acaso não é isto que o rico tem? Sim e muito mais. Ele o tem numa quantidade tão exagerada, de um modo geral, que continuaria tendo, mesmo que vivesse juntamente com seus familiares (no sentido lato), durante muitos e muitos séculos. Reside neste ponto, senão todos (há outras questões de natureza diversa), mas grande parte dos problemas que levam às lutas de classes.
Mas fechemos o nosso raciocínio. Aquele cidadão da segunda hipótese, que deseja mudar-se para a classe privilegiada, mas escolhe lutar sozinho, distanciado da luta política da classe a que pertence, é sim membro da classe pobre porque amarga a condição de pobre, mas não se reconhece da classe pobre, não comunga com o ideal de luta da classe pobre, não o aceita, não o valida. Na realidade ele é mesmo um "burguês não-acontecido", um pobre que está com os pés na pobreza e o espírito nas benesses burguesas, só que com todas as implicações sociais, políticas e ideológicas do que é ser burguês. É o Para-sí de Sartre (1997), o "ser que não é o que é e é o que não é". Um ser nadificado, nulo do ponto de vista das questões sociais.


Nilton Rodrigues Souza

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