Costuma-se dizer que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que se tenha estado dentro de suas prisões uma                                                                                                                                                                                    nação não deve ser julgada pelo modo  como trata seus cidadãos mais elevados, mas sim como  trata seus cidadãos mais baixos.


                                                     NELSON MANDELA.
Long Walk to Freedon, Little Brown,    Londres: 1994.

    

 

Lanças  altivas ante o horizonte,a cegueira que invade os meus olhos numa claridade sem fim..melancolia,monotonia,tantos ias que perdido não sei como parar...ando pelo corredor ,apresso os meu passos ,agora pareço estar fugindo,fugido...de mim?Ou de mais um dia aqui[1]...estes versos traduzem de forma peculiar a história de inúmeros josés [2],na escuridão do vazio,sozinhos,sem nomes, vidas ceifadas  pelo pecado social de homens que  desconhecem a infâmia de uma vida marginal “na muralha em pé,mais um cidadão José”[3]. É publico e notório, a vilipendiação do Sistema Prisional Brasileiro, quanto à capacidade de ressocialização e de assistência ao apenado, pois se nota o total despreparo da máquina estatal em tratar do fruto da sua repressão, exprimida pelas desigualdades sociais.[4]Ao fazermos um raio-x da situação da população carcerária brasileira nos deparamos com o sempre e  inquestionável problema das  LEIS PUNITIVAS já que incapaz de devolver ao encarcerado a dignidade um dia perdida.

Vemos que pouco poderemos esperar desses que retornarão, pois o sistema é extremamente cruel, impingindo gravames muito superiores aos legais, facilitando a ilegalidade do tratamento degradante, aniquilando a essência da criatura humana que existe dentro de cada um de nós[5].Seria esta a lógica do sistema prisional?Perpetuar  a partir dos seus ditames, a crueldade ,formas de opressão e casualidades, em desfavor de  uma massa  sentenciada não apenas a  alguns anos de prisão mas a uma eternidade na contramão?Escrita pelo Mano Brown,integrante da grupo Racionais MC´S em parceria com um detento ,o rap  Diário de um detento ,foi  produzido a partir do poema-depoimento do,à época,presidiário ,Jocenir Prado, para descrever o massacre do Carandiru vivenciado pelo  mesmo em 1992 cujas lembranças sobrevivem ainda hoje na memória  e sobretudo na realidade de muitos  encarcerados.

O rap dos Racionais pretende, ao que parece, levar a lei da selva que domina a periferia ao interior da casa grande, aos ouvidos da elite, com a certeza brutal - com a agressividade que os afirma e protege  de que eles são demais para o quintal das classes dominantes. E, como afirmara Edy Rock antes, "me ver pobre, preso ou morto já é cultural". A denúncia do grupo não poderia ser mais grave: nós, pretos e pobres da periferia, vivemos segundo a lei da selva, lei esta que, apesar de absurda e violentadora, já foi incorporada à cultura brasileira, em que é normal ver os negros pobres, presos ou mortos[6].

 Cientistas sociais afirmam que a violência tem cor e é negra. A presença  de homens de pele negra  no sistema penitenciário brasileiro  é  cada dia mais crescente ,acrescido a isto ,a pobreza, que assola milhões de negros no país.Vítimas de um escravagismo sem precedência,a população negra carrega consigo  chagas como: do analfabetismo,desemprego,da miséria e da ausência de liberdade.Detestáveis aos olhos de um sistema que os enxergam tão somente como escravos,a população negra e pobre  está se transformando na população encarcerada.

A letra do rap Diário de um detento surgiu a partir do contato entre mano Brown e Jocenir...O líder dos Racionais visitava o presídio  regularmente quando soube da existência de um interno  que redigia poemas e letras de músicas .Ao conhecê-lo,Brown pediu para dar uma olhada nos seus escritos,ele então, saiu da Detenção com algumas páginas das anotações de Jocenir Prado,através das quais foi escrita a letra do rap :Diário de um detento,que por sua vez narra na voz de um presidiário o massacre do Carandiru em um discurso altamente figurativo,levantando temas preponderantes para análise da vida e  formas de pensar  ora da comunidade carcerária,ora de um dos aparelhos repressores do estado:a justiça representada  pelo policial e  juiz.Estes últimos ,trabalham para manutenção da ordem e da  suposta organização desta realidade invertida.[7]

Aqui estou mais um dia / sobre o olhar sanguinário do vigia/Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK ...servindo o estado um PM bom...

Conflito de interesses, idéias sendo postas e a justiça se tornando  uma arma  discursiva e ideológica na mão da burguesia ,à qual descreve em longas  linhas de sangue cada sentença,tirando-nos a essência e nos transportando ao nível da aparência[8]. os Versos do rap Diário de um detento ,denunciam  algumas da diversas formações ideológicas e discursivas próprias deste sistema.,cuja  função primordial é a de fortalecer o status quo das camadas privilegiadas.Destaca-se na letra da música a capacidade de organizar a experiência pessoal,haja visto a frieza e objetividade  com que se trata  várias temáticas,além das mesmas se realizarem num espaço físico onde a dor é um dos principais componentes desta realidade.

É o que constatamos nos seguintes trechos da música:

Era a brecha que o sistema queria / Avisa o IML chegou o grande dia [...]

Cachorros assassinos, gás lacrimogênio / Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio [...]
O ser humano é descartável no Brasil, como modess usado ou bombril [...]
Cadeia apaga o que o sistema não quis / Esconde o que a novela não diz [...]
Cadáveres no poço, no pátio interno / Adolf Hitler sorri no inferno [...]
Ratatatá / Fleury e sua gangue vão nadar numa piscina de sangue [...] [9]

Por trás das grades,espelhos de aço,uma imagem alterada , esquadrinhando o espaço...produzido por você,construído por mim,renegados à um legado que parece não ter fim...[10] O tempo cronológico __descrito no texto__ é uma das matérias mais complexas  na vida de um detento,porque imutável em seus desígnios ,de forma que é impossível ao homem,detê-lo,retardá-lo ou acelerá-lo e é dentro e por meio dele que se processa e sofre-se toda e qualquer mudança social,psíquica e emocional no ser humano.De acordo com José Vidigal tudo passa e vai passando ...como observamos nos versos a seguir é no tempo e através do mesmo que se produz um novo detento:

Cada sentença um motivo,uma história de lágrima/

Sangue,vidas e glórias abandono,miséria /                           ódio,sofrimento,desprezo,  desilusão,ação do tempo/

Misture bem essa química.Pronto:eis um novo              detento(...)

Tic,tac,ainda é 9:40./

O relógio da cadeia anda em câmera lenta(...)

 

Todavia,apesar de saber que tudo vai passando ,o tempo vivido num cárcere jamais  elimina a dor ,humilhação e abandono  daqueles que o viveram...de modo que  até mesmo esta forma de pagamento :A SEGREGAÇÃO torna -se insolúvel já que incapaz de  assegurar  princípios  e noção de valores ao aprisionado.Assim discursos como:bandido tem que pagar ou ,matou tem que morrer,sustentam  inúmeras formações ideológicas presentes em nossos discursos,que revelam não a minha visão de mundo da coletividade ,mas sobretudo ,a de uma classe em especial,em virtude do estabelecimento de um ciclo,por meio  do qual até  a justiça se torna lenta e é congelada.

 

                             Meu processo ta aí / Eu quero mudar / Eu quero sair(...)

 

 Brown encerra os seus versos com  a ironia e descrença com que o começou:

 

 

   

                         Mas quem é que vai acreditar no meu depoimento?                  Dia 3 de outubro, diário de um detento(...)[11]

As frases finais da música, declamada por Mano Brown, deixavam no ar uma pergunta incômoda sobre a capacidade de convencimento daquele que depõe e diz que houve ali uma matança. Ou melhor, o rap questiona o silenciamento a que são submetidos historicamente no país os presidiários, mas também os pretos, os pobres e todas as vítimas da opressão. A contundência da letra é sensível, e a maneira com que a música acaba, com uma pergunta que não quer calar - "Quem é que vai acreditar no meu depoimento?" - estabelece um desafio, ecoando a lembrança de que a ferida do Massacre continuava então aberta.

 

 



[1] TIGRE,Maiane Pires.Universidade do Estado da Bahia

[2] ANDRADE,Carlos Drummond de .E agora José?

[3] .Diário de um detento

[4]FREITAS,José Aleix Moreira de.Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

[5] Luiz Flávio Borges D’Urso é Advogado Criminalista; Presidente do Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária/SP

[6]  ZENI,Bruno.O negro drama do rap:entre a lei do cão e a lei da selva. ://www.scielo.br/scielo.php

[7] FIORIN,1988 p.27

[8] FIORIN,1988p.29

 

[9] PRADO,Jocenir;BROWN,Mano.Diário de um detento.1992

[10] PIRES,Maiane.Universidade do Estado da Bahia.2007

[11] PRADO,Jocenir;BROWN,Mano.Diário de um detento.1992