O Direito, entendido como o conjunto de normas que visam regulamentar as relações sociais, protegendo os bens da vida juridicamente relevantes, deve estar sempre em consonância com a evolução do tempo, de modo que possa se reinventar e se adequar às realidades advindas e aos costumes, que, como a vida, estão em constante transformação.

            No Direito Penal Brasileiro, o estupro de vulnerável configura um crime constante no artigo 217-A, localizado no Capítulo II – Dos Crimes Sexuais Contra Vulnerável, do Código Penal, que foi criado pela Lei Nº 12.015 de agosto de 2009 em substituição ao antigo artigo 224 da lei penal, que trazia a ideia de presunção de violência.

             Com a atual redação, houve a supressão do verbo “presumir” no dispositivo que trata do estupro de vulnerável, de modo que a presunção de violência passou a ser, em tese, absoluta em relação aos menores de 14 (catorze) anos de idade, e não mais relativa, o que tem gerado discussões e confrontos entre julgados e a letra da lei.

1.1  Considerações Iniciais

            Em 1940, surgiram os tipos penais relacionados à dignidade sexual, que eram definidos no Título VI do Código Penal Brasileiro como Dos Crimes Contra os Costumes, no sentido de serem esses baseados em hábitos sexuais disciplinados pela sociedade.

            Tal titulação gerou críticas, que, em sua maioria, versaram no sentido de que o legislador deveria buscar a proteção da dignidade sexual, e não dos costumes, ou seja, não dos hábitos internalizados pela sociedade, de uma forma geral.

            No dia 07 de agosto de 2009, com o advento da Lei nº 12.015, houve uma mudança significativa na nomenclatura do Título VI do Código Penal, que passou de “Dos Crimes Contra os Costumes” para “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”, alterando alguns artigos preexistentes.

No contexto normativo em que foi utilizado, o termo “dignidade” deve ser compreendido em conformidade com o sentido que lhe empresta a Constituição Federal, que prevê a “dignidade da pessoa humana” como conceito unificador de todos os direitos fundamentais do homem que se encontram na base de estruturação da ordem jurídica. (MIRABETE, 2010, p. 384) 

            A dignidade da pessoa humana constitui um dos princípios fundamentais previsto expressamente no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

            A Lei n° 12.015/2009 inclui, no Código Penal, o capítulo II, que dispõe sobre os crimes sexuais contra o vulnerável. O referido capítulo se inicia com a tipificação do estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A: 

Art. 217-ATer conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com

menor de 14 (catorze) anos: 

  • 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput

com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o

necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer

outra causa, não pode oferecer resistência.

  • 2º (VETADO)
  • 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: (...)
  • 4º Se da conduta resulta morte: (...)

Em relação aos valores tutelados pelo tipo penal do estupro de vulnerável, a dignidade da pessoa humana se constitui como o bem jurídico protegido mediato, enquanto que a dignidade sexual se apresenta com o bem jurídico protegido imediato, entendendo-se que aquela é mais ampla e engloba essa última.

     A alteração legislativa mostra que o dispositivo oferta uma maior relevância não apenas à moral, à ética e aos bons costumes implantados na sociedade, mas à dignidade individual da pessoa ofendida.

     Ao se falar em dignidade individual, percebe-se que essa pode ser ofendida das mais diversas formas e que sua violação também pode ocorrer de forma diferente de pessoa para pessoa: o que para um indivíduo representa uma ofensa, para outro pode não o ser, considerando-se, ainda, o maior ou menor grau em que se dá uma violação.

No tocante à dignidade sexual, aplica-se o citado no parágrafo anterior, de maneira que sua violação deve ser aferida levando-se em consideração circunstâncias intrínsecas e questões subjetivas do indivíduo, que vão muito além dos danos físicos, sendo estes mais facilmente verificados. Nesse sentido, Capez (2010, p. 42) afirma, 

A dignidade sexual liga-se à sexualidade humana, ou seja, o conjunto de fatos, ocorrências e aparências da vida sexual de cada um. Associa-se a respeitabilidade e a autoestima à intimidade e à vida privada, permitindo-se deduzir que o ser humano pode realizar-se, sexualmente, satisfazendo a lascívia e a sensualidade como bem lhe aprouver, sem que haja qualquer interferência estatal ou da sociedade.           

A alteração legislativa configurou uma forma de adequação social na medida em que buscou acompanhar a evolução da sociedade e a mudança dos costumes. Cumprindo com seu real intuito, o legislador adequou a norma ao valor que ela se propõe a tutelar, no caso, a dignidade sexual.

            A inovação advinda em 2009 acompanhou uma evolução legislativa criminal que, com a lei Nº 11. 106 de 2005, já restaram revogados tipos penais que não encontravam mais adequação na realidade atual nem representavam valores tutelados pelo Direito Penal, como é o caso dos crimes de sedução e rapto. Em suma, foram revogados tipos penais que se mostravam anacrônicos e cheios de resquícios da cultura patriarcal predominante nos anos de 1940, época em que foi publicado o texto original do Código Penal.

            Dentre as mudanças trazidas pela lei nº 12. 015 destaca-se, ainda, a alteração do termo “mulher” para “alguém” na descrição dos tipos penais. Até a referida lei ser criada, apenas a mulher figurava como sujeito passivo dos crimes sexuais. Com a mudança, o polo passivo pode ser ocupado por ambos os sexos, assim como o ativo também o pode.

            Outra observação importante era a presença, em três tipos penais revogados, do termo “mulher honesta”:

Posse sexual mediante fraude

Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude

(Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009); 

Atentado ao pudor mediante fraude

Art. 216. Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009); 

Rapto violento ou mediante fraude

Art. 219. Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005). 

 O legislador brasileiro empregou a expressão “mulher honesta” desde as Ordenações Filipinas. No início da sua colonização, o Brasil teve como primeiro ordenamento imposto por Portugal as Ordenações Afonsinas, depois as Manuelinas, e, por fim, as Filipinas. No Livro V, advindo de D. Afonso IV, no qual se descrevia os delitos e se cominava as penas, podem ser encontradas expressões como “mulher honesta” e viúva honesta”. 

O termo “mulher honesta” traz em si toda a gama discriminatória como a mulher era tratada. A mulher tida como “honesta” poderia ser vítima de violência sexual, e seu agressor seria penalmente responsabilizado, mas não sendo “honesta”, a mulher não seria merecedora da tutela do Estado.  

O crime de sedução, constante no já revogado artigo 217 do Código Penal, possuía a seguinte redação: “Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança” e culminava em pena de reclusão de dois a quatro anos. 

Como se denota, a preocupação do legislador se concentrava mais na defesa e na proteção de um “modelo” de sexualidade, que era definido de acordo com os costumes predominantes na sociedade e eleitos por esta como os “certos”, como as condutas “honestas” a ser adotadas, principalmente, pelas mulheres. A mulher, para ser “honesta”, tinha que se enquadrar em um padrão de comportamento sexual pré-determinado pela sociedade. 

Importante ressaltar a importância da mudança da nomenclatura dos crimes sexuais advinda com a lei que criou a tipificação do estupro de vulnerável, pois a titulação sob a forma “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual” possui extrema relevância na delimitação do bem jurídico que, de fato, se pretende proteger. 

Em consonância com esse entendimento, o próprio projeto de lei 253/04 do Senado Federal, que posteriormente veio a ser convertido na lei 12.015, já alertava em sua justificativa: 

Para a ciência penal, os nomes e os títulos são fundamentais, pois delineiam o bem jurídico a ser tutelado. Assim, a concepção atual brasileira não se dispõe a proteger a liberdade ou dignidade sexual. Tampouco o desenvolvimento benfazejo da sexualidade, mas hábitos, moralismos e eventuais avaliações da sociedade sobre estes. Dessa forma, a construção legislativa deve começar por alterar o foco da proteção, o que o presente projeto de lei fez ao nomear o Título VI da Parte Especial do Código Penal como Dos crimes Contra a Liberdade e o Desenvolvimento Sexual. (SENADO FEDERAL, PLS nº 253, 2004)           

            Com a evolução dos tempos, os hábitos e os costumes enraizados pela sociedade se modificam. Desta feita, o ordenamento jurídico também precisa evoluir e se adequar aos novos hábitos e costumes, de modo que continue sendo eficaz na proteção das relações sociais do povo.          

            Em relação à presunção de violência, esta já constava na antiga sistemática do Título VI da parte especial do Código Penal Brasileiro, que trazia disposições em seu art. 224, in verbis: 

Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:

  1. a) não é maior de catorze anos;
  2. b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;
  3. c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência. (revogado pela lei 12.015 de 2009)           

Esse artigo se encontrava na parte das disposições gerais do referido Título VI do Código Penal, e, por muito tempo, os doutrinadores divergiram quanto à natureza da presunção disposta pelo legislador na norma. Nesse contexto, surgiram quatro correntes: teoria absoluta, teoria relativa, teoria mista e teoria constitucionalista. 

Segundo a teoria absoluta, a presunção de violência deveria ser absoluta, ou seja, haveria violência presumida em qualquer relação sexual mantida com menor de 14 anos de idade. Para a teoria relativa, a presunção deveria ser relativizada, de modo que, durante a instrução deveriam ser analisados aspectos tais como se a vítima menos de 14 anos consentiu com o ato e se tinha experiência sexual anterior. Os defensores da teoria mista pregavam a relativização da presunção quando a vítima tivesse idade entre os 12 e 14 anos de idade e consentisse com o ato, sendo, nos demais casos, absoluta tal presunção. Já para a teoria constitucional, a tipificação da conduta como criminosa dependeria do pressuposto da culpa, de modo que a subjetividade do agente não deveria ser desprezada.   

Ainda em relação às novidades advindas com a Lei n.º 12. 0150/09, o artigo 4º desta alterou a redação dos incisos V e VI, do artigo 1º, da lei 8.072/90 – Lei de Crimes Hediondos. Neste último inciso, que antes era reservado à classificação do atentado violento ao pudor, agora classifica como crime hediondo o novo crime de estupro de vulnerável, seja em sua forma simples ou nas formas típicas qualificadas. 

1.2 Bem jurídico protegido  

Tradicionalmente, entende-se que o Direito Penal visa proteger os bens jurídicos fundamentais, que representam todo e qualquer valor reconhecido e protegido pelo Direito.

            No que tange o estupro de vulnerável, o bem jurídico penalmente tutelado é a dignidade sexual da vítima, que é considerada, nesse caso, como o indivíduo acarretado por vulnerabilidade.

            Segundo Sales (2005, p.108),

dentre outros dogmas que têm sido objeto de reconstrução dogmática com função crítica, com vistas a legitimar o sistema, encontra-se o bem jurídico, objeto da tutela penal, em sua função político-criminal enquanto legítimo critério de individualização da matéria a ser criminalizada e, correlativamente, procurando impor limites à atuação do legislador na atividade de criminalização

É nítida a importância de uma delimitação do bem jurídico que se pretende penalmente proteger como forma de limitar a atuação do legislador ao criminalizar determinada conduta. Corrobora-se a isso o fato de o Direito Penal ser considerado a “ultima ratio”, à luz do Princípio da Intervenção Mínima.

No tocante ao sistema de proteção dos bens jurídicos, a intervenção a que se propõe o Direito Penal somente está legitimada quando os demais ramos do Direito se mostrem incapazes ou ineficientes, o que evidencia o caráter fragmentário do Direito Penal, bem como sua natureza subsidiária, que o torna legitimado a intervir somente quando fracassar os outros meios de proteção aos bens jurídicos tutelados.           

 Antes da alteração advinda com a lei nº 12.015, como já foi mencionado, o texto da lei buscava tutelar não a dignidade sexual do ofendido, mas os costumes, ou seja, um parâmetro de comportamento internalizado pela sociedade. Esse fato evidenciava uma política proibicionista, com imposição de culturas. A moral que o Estado ditava estava sobre à moral baseada na dignidade de cada indivíduo em si.

No entanto, mesmo com a evolução legislativa que trouxe expressamente definido o bem ao qual se pretende prestar tutela ao implantar o título sob a denominação de “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”, continua sendo difícil delimitar o que vem a ser a dignidade sexual.

Pela redação do tipo penal “Estupro de Vulnerável”, verifica-se que se busca proibir a conjunção carnal ou a prática de qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos de idade, sem admitir exceções.

Em uma primeira análise, denota-se que o tipo penal tutela a intangibilidade sexual da pessoa vulnerável, assim entendidas como aquela menor de quatorze anos ou a que, por enfermidade ou deficiência mentalnão tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. Entende-se que menor de catorze anos não possui maturidade para consentir em matéria sexual e, se o faz, falta validade nesse consentimento.

Fayet (2011, p. 87) afirma que o artigo em análise “tutela a dignidade sexual dos vulneráveis”. Tal entendimento é seguido pela maioria dos doutrinadores. Já Fuhrer (2009, p. 135), entende que o bem tutelado “é a dignidade da pessoa humana”.

A dignidade sexual, porém, não é um conceito objetivo, mas impreciso e vago. Uma vez que o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal não é determinado e preciso, corre-se o sério risco de serem criados tipos penais que tutelem expressões idiomáticas, condutas amplas que estejam ligadas apenas a aspectos morais e ideológicos, o que vai de encontro a real função do Direito Penal.

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