Resumo: Heisenberg elabora uma crítica à ontologia materialista – à qual ele associa principalmente o atomismo de Leucipo e Demócrito, e o dualismo cartesiano – contrapropondo uma ontologia formal, baseada no platonismo e mais de acordo com os princípios da física moderna. 

Palavras-chave: Heisenberg; materialismo; formalismo.

A crítica que Heisenberg faz ao materialismo tem uma dupla vertente: uma antiga, relacionada ao atomismo grego de Leucipo e Demócrito, e outra, moderna, caracterizada pelo dualismo cartesiano. A conjunção do atomismo antigo com o dualismo cartesiano serviu de base para o desenvolvimento da ciência moderna e da visão mecânica do mundo. Segundo Heisenberg, essa visão não dá conta da interpretação da nova realidade física apresentada pela mecânica quântica.

            O atomismo de Leucipo e Demócrito pode ser confrontado pelo idealismo platônico. O antagonismo entre essas concepções filosóficas mostra-se muito claramente quando se trata de investigar os princípios fundamentais da realidade. Nesse campo, de acordo com Heisenberg, a física moderna pende para o idealismo platônico. Mas por quê? Em que sentido o atomismo pode ser considerado ultrapassado pela física moderna? Antes de responder a essas questões, detenhamo-nos um pouco na interpretação que o físico alemão elabora sobre as diferenças entre o atomismo e o idealismo platônico.

            Antes de qualquer crítica, Heisenberg reconhece que o atomismo de Leucipo e Demócrito responde a um dilema que se instaurou na filosofia grega desde o início. Trata-se do dilema entre o uno e o múltiplo. O atomismo, de acordo com  Heisenberg, supõe que o átomo seja eterno e indestrutível, constituindo-se como princípio único de todas as coisas.  Alem do mais, Leucipo e Demócrito vulgarizam a antítese parmenidiana entre o Ser e o não-Ser ao proporem um novo par de contrários: o pleno e o vazio.

O Ser não é unico; ele pode ser repetido infinitamente. O Ser é indestrutível, assim como o átomo. O vazio, o espaço livre entre os átomos leva em conta a posição e o movimento, e portanto as propriedades do átomo, enquanto por definição, por assim dizer, o Ser puro não pode ter outra propriedade além da existência (HEISENBERG, 2001, p. 47, tradução nossa).

Na análise de Heisenberg, tanto a força quanto a fraqueza da hipótese atomista residem nessa confrontação entre o pleno e o vazio. A sua força consiste na capacidade de explicar os estados agregados da matéria, considerando a possibilidade de os átomos se unirem de diferentes maneiras, de acordo com os seus movimentos e os espaços entre eles. O ponto fraco da hipótese atomista revela-se no fato de os átomos serem tomados apenas como blocos construtores da matéria, cujas propriedades os afastam do conceito original do Ser.

Os átomos podem ter uma extensão finita, e aqui nós perdemos único argumento convincente para a sua indivisibilidade. Se o átomo tem propriedades espaciais, por que ele não deveria ser dividido? No mínimo a sua indivisibilidade se torna uma propriedade física e não uma propriedade fundamental. Podemos novamente fazer perguntas sobre a estrutura do átomo, e corremos o risco de perdermos toda a simplicidade que esperávamos encontrar entre as menores partes da matéria. Temos a impressão, portanto, que em sua forma original a hipótese atômica não foi suficientemente perspicaz para explicar o que os filósofos realmente desejavam entender: o elemento simples nos fenômenos e na estrutura da matéria (Ibid., p. 48, tradução nossa).

Apesar de não atender às expectativas dos filósofos quanto ao princípio simples que subjaz aos fenômenos e às coisas, Heisenberg concede ao atomismo alguns pontos positivos como o fato de a multiplicidade dos fenômenos e as muitas propriedades observadas da matéria estarem relacionadas ao movimento e à posição dos átomos. Embora os atomistas não tenham conseguido explicar o que os determina.

Para Heisenberg, “a intenção da hipótese atômica fora apontar o caminho do “múltiplo” para o “uno”, formular o princípio subjacente, a causa material, em virtude do qual todos os fenômenos podem ser entendidos” (Ibid, p. 48, tradução nossa). O físico alemão concede ao átomo o caráter de causa material, mas segundo ele, apenas uma lei geral que determinasse a posição e o movimento do átomo poderia ser considerada como tomando parte do princípio fundamental. Parece que Heisenberg julga os atomistas a partir de um critério moderno, baseado na física atômica do século XX. E, de fato, podemos constatar isso quando ele escreve:

A concepção moderna, na qual a posição e a velocidade do átomo em um dado momento só podem ser conectadas às suas posição e velocidade em um momento posterior por uma lei matemática, não se encaixa no padrão de pensamento daquela era, já que emprega o conceito de tempo de uma maneira que só surgiu para o pensamento de uma época muito posterior (Ibid, p. 49, tradução nossa).

Entretanto, não se pode falar o mesmo sobre o pensamento platônico. Pois Platão, mesmo tendo adotado uma concepção atomista, não seguiu o mesmo princípio do atomismo de Leucipo e Demócrito. Os átomos platônicos eram formas geométricas – os sólidos regulares da geometria[1], e não pontos materiais. Heisenberg destaca o fato de esses sólidos poderem ser decompostos em triângulos, o que tornava o elemento simples, constituinte de todas as coisas, uma forma matemática abstrata, bem de acordo com a Teoria das Ideias de Platão.

É justamente o caráter matemático do atomismo platônico que Heisenberg admira. De certa maneira, à causa material, que seriam os sólidos geométricos regulares, une-se uma causa formal, representada pelo triângulo que constitui o elemento simples que forma cada um dos sólidos ou átomos platônicos.  Eis o raciocínio de Heisenberg sobre a concepção de Platão:

[...] como superfícies bidimensionais os triângulos não eram mais corpos, nem matéria. Então a matéria não poderia mais ser dividida ad infinitum. Portanto, na extremidade inferior, isto é, no reino de dimensões espaciais mínimas, o conceito de matéria é resolvido na forma matemática. Esta forma determina, primeiro, o comportamento das menores partes da matéria, e então o comportamento da própria matéria. Num certo sentido, ela substitui a lei natural da física posterior; pois, sem fazer referências explícitas ao curso do tempo, ela caracteriza as tendências no comportamento da matéria (Ibid, p. 49, tradução nossa).

Podemos notar no fragmento acima que Heisenberg associa o caráter matemático-formal do elemento simples, formador dos átomos, à ideia de tendência do comportamento dos próprios átomos. Esse aspecto do atomismo platônico corresponde ao conceito heisenbergiano de “potentia”, ou seja, a tendência para ser algo, representada formalmente por uma função de onda. Por essa razão, a preferência do físico alemão recai sobre o platonismo, em detrimento do atomismo de Leucipo e Demócrito.

Toda essa descrição encaixa-se perfeitamente nas ideias centrais da filosofia idealista de Platão. A estrutura que subjaz aos fenômenos não é dada por objetos materiais como os átomos de Demócrito, mas pela forma que determina os objetos materiais. As Ideias são mais fundamentais do que os objetos. E já que as menores partes da matéria têm que ser os objetos pelos quais a simplicidade do mundo torna-se visível, por meio dos quais nos aproximamos do “uno” e da “unidade” do mundo, as Ideias podem ser descritas matematicamente – elas são simplesmente formas matemáticas (Ibid., p. 50).

Mas essa busca pela unidade em meio à diversidade dos seres e das coisas, tão cara à filosofia grega, sofreu, segundo Heisenberg, um retrocesso com o dualismo cartesiano. Em vez de buscar o princípio unificador por detrás dos fenômenos naturais, Descartes operou uma divisão entre o mundo e a mente. A matéria, res extensa, perdeu qualquer ligação com o espírito, tornou-se coisa, objeto material. “A influência da divisão cartesiana sobre o pensamento humano nos séculos seguintes dificilmente pode ser superestimada, mas é justamente essa divisão que temos que criticar mais tarde a partir do desenvolvimento da física do nosso tempo” ( 2007, p. 53, tradução nossa), escreve Heisenberg.

Apesar da crítica à divisão cartesiana, o físico alemão reconhece que o filósofo francês apenas sintetizou uma tendência que já vinha se desenvolvendo desde o Renascimento e da Reforma Protestante. Segundo ele, nesse período, houve um reavivamento do interesse em matemática que “[...] favoreceu um sistema filosófico que começava a partir do raciocínio lógico e tentava por esse método chegar a alguma verdade que fosse tão certa quanto uma conclusão matemática” ( Ibid., p. 53, tradução nossa).  Uma outra tendência apontada por Heisenberg, e também sintetizada por Descartes, foi a separação entre Deus e o homem, à qual o nosso físico chama de religião pessoal.

Esta última tendência do pensamento ocidental do começo da era moderna propiciou, de acordo com Heisenberg, a combinação do conhecimento empírico com o matemático, como podemos perceber na obra de Galileu. Este tipo de conhecimento poderia se manter à parte das disputas teológicas do momento.

Portanto, com Descartes, a separação entre homem e natureza, entre sujeito e objeto, propiciou o surgimento de um universo mecânico, no qual a matéria se encontrava completamente destituída de qualquer relação com o espiritual. Heisenberg chega a chamar a atenção para o fato de Descartes ter considerado os animais apenas como máquinas, desconsiderando a tese tomista da alma animal. Por sua vez, o próprio ser humano também poderia ser tomado como uma máquina, visto que se encontrava cindido em res extensa  e res cogitans.

Escrevendo sobre a maneira que Heisenberg interpretava o cartesianismo, Leite e Simon afirmam: “Nesse momento da história, a escolha estabelecida, ou seja, a mistura entre o atomismo antigo e a metafísica cartesiana, determinou o desenvolvimento das ciências nos séculos posteriores” (2010, p. 218).

Em Física e Filosofia, Heisenberg afirma:

A mecânica newtoniana e todas as outras partes da física clássica construídas após o seu modelo começaram a partir da suposição de que se pode descrever o mundo sem falar sobre Deus ou nós mesmos. Esta possibilidade logo pareceu quase uma condição necessária para a ciência natural em geral ( 2007, p. 54-55, tradução nossa).

Eis o ponto crucial da crítica que Heisenberg faz ao materialismo que, segundo ele, caracteriza a física clássica: o homem se exclui da natureza que ele mesmo descreve. Leite e Simon (2010, p. 219), reportando-se a um artigo escrito por Heisenberg[2], notam que o físico alemão ressalta uma progressiva substituição do termo Naturerklärung (interpretação da natureza) por Naturbeschreibung (descrição da natureza).

A crítica de Heisenberg ao materialismo incutido na física clássica, também pode ser compreendida como uma crítica ao que o físico alemão chama de realismo metafísico. Este se encontra ligado à crença na existência de uma realidade objetiva, independente da mente humana que a percebe. Do ponto de vista de Heisenberg, a física clássica, construída, em parte, sobre os alicerces da divisão cartesiana entre res cogitans e res extensa, ao privilegiar apenas o exame das coisas extensas, abdicando, assim, de incluir o sujeito consciente neste exame, contribuiu para a difusão do realismo metafísico.

A posição à qual a divisão cartesiana conduziu, no que concerne à res extensa, foi ao que se pode chamar de realismo metafísico. O mundo, isto é, as coisas extensas, “existem”. Isto deve ser distinguido do realismo prático, e as diferentes formas de realismo podem ser descritas da seguinte maneira: nós objetivamos uma afirmação se declaramos que o seu conteúdo não depende das condições sob as quais ela pode ser verificada (HEISENBERG, 2007, p. 57-56, tradução nossa).

Heisenberg faz então uma distinção entre o que ele chama de realismo prático e realismo dogmático. O primeiro admite que existam afirmações que podem ser objetivadas, e que essas afirmações correspondem às experiências da vida cotidiana. Por outro lado, o realismo dogmático considera que todas as afirmações sobre o mundo material podem ser objetivadas. Segundo o físico alemão, o realismo dogmático não é uma condição necessária para a ciência natural.

Não obstante, Heisenberg concorda que o realismo dogmático tenha exercido um papel muito importante no desenvolvimento da física clássica. Acreditamos que esse papel de destaque do realismo dogmático na ciência moderna esteja vinculado à crença metafísica da época, segundo a qual a substância material passou a ser considerada como objeto para a substância mental. Este cenário científico, no qual predominavam o realismo dogmático e o materialismo, só se alteraria com o advento da mecânica quântica. Neste ponto cabe uma ressalva: Heisenberg, ao falar da mecânica quântica, está se referindo especificamente ao que se convencionou chamar de Interpretação de Copenhague. Por isso ele é capaz de afirmar que “a Interpretação de Copenhague levou os físicos para longe dos pontos de vista materialistas que prevaleceram na ciência natural do século dezenove” (Ibid., p. 102, tradução nossa).

Ao comentar sobre os críticos da Interpretação de Copenhague, o físico alemão os reúne a todos sob um mesmo desiderato, o retorno à ontologia do materialismo. Segundo Heisenberg, “eles prefeririam voltar à ideia de um mundo real objetivo, cujas as menores partes existem objetivamente no mesmo sentido em que pedras ou árvores existem, independentemente de se ou não as observamos” (Ibid., p. 103, tradução nossa).

Em artigo que trata do antirealismo de Heisenberg, Vinicius Carvalho da Silva indica uma inusitada comunhão de pensamento entre o físico alemão e Erwin Schrödinger, a quem o próprio Heisenberg denuncia como um dos físicos nostálgicos em relação à ontologia do materialismo. Vejamos como ele desenvolve o seu raciocínio:

Por mais que possam divergir em outros pontos, de caráter técnico e filosófico, Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger, o criador da mecânica ondulatória, e Werner Karl Heisenberg, o criador da mecânica matricial, concordam neste ponto de suma importância: a desconstrução da ontologia materialista e o nascimento de uma ontologia do formalismo puro como fundamento da Physis na física contemporânea. Assim como as mecânicas ondulatória e matricial são elaboradas em bases diferentes, mas equivalem-se matematicamente, a ontologia do formal de ambos, embora desenvolvida de modo original por cada qual, são, no fundo, filosoficamente equivalentes. Não estão sozinhos, entretanto. A queda de status do conceito de matéria na física contemporânea parece ser inevitável, qualquer que seja o terreno pelo qual a nova física avança. Se Schrödinger e Heisenberg desqualificaram o materialismo a partir da visão da natureza que lhes proporcionara a mecânica quântica, outros foram obrigados a seguir o mesmo caminho quando defrontados com os resultados da física relativística. É o caso do próprio Einstein. Também para Einstein, dado o desenvolvimento da ciência de sua época, já não havia espaço para que a matéria fosse considerada o fundamento da realidade, concordando que tal conceito desempenhou papel fundamental na mecânica clássica (SILVA, 2011, p. 117).

Do ponto de vista do articulista, embora sendo contrário ao antirealismo, Schrödinger opunha-se ao materialismo, da mesma maneira que Heisenberg. Este argumento é interessante porque desvincula, de certa forma, o materialismo do realismo. Por outro lado, o antimaterialismo, ainda segundo a perspectiva de Vinicius Carvalho da Silva, resolve-se, tanto em Schrödinger como em Heisenberg por uma inclinação a uma ontologia formal.

Para Schrödinger, a matéria perde o status ontológico de fundamento do real, passando a ser considerada como mais uma consequência das leis da natureza. Essa visão aproxima-se imensamente das visões de Heisenberg e Einstein. Seria, portanto, o elo filosófico que uniria estes autores em uma interpretação comum da natureza da matéria: já não se pode dizer que todas as coisas são feitas de matéria, como aventavam os materialistas radicais, uma vez que a própria matéria revela-se como o produto de um nível de realidade mais profundo, puramente formal (Ibid., p. 115).

            E continua afirmando:

Neste ponto a Filosofia da Física de Schrödinger parece fundir-se ao idealismo matemático, ou “idealismo formal” de Heisenberg. A ideia básica é que a matéria é apenas um modo transitório e contingente da realidade. O fundamento do real é pura forma, e não pura substância (Ibid., p. 15).

Dessa comparação entre as concepções filosóficas de Heisenberg e Schrödinger, interessa-nos haurir um único aspecto: a física do século XX tende a abandonar a ontologia materialista e a buscar uma ontologia formal que possibilite pensar a matéria dentro do novo quadro científico introduzido pela mecânica quântica.

Referências:

 

HEISENBERG, W. On the history of physical interpretation of nature. In: HEISENBERG, W. Philosophic problems of nuclear science. New York/London: Pantheon/Faber and Faber, 1952. p. 27-40.

HEISENBERG, W. Physics and Philosophy: The revolution in modern science. New York: HapperCollins Publishers, 2007.

_____. The Debate Between Plato and Democritus. In: WILBER, K. Quantum Questions: Mystical Writings of the World's Great Physicists. Boston: Shambala Publications, 2001. p. 46-55.

LEITE, A.; SIMON, S. Werner Heisenberg e a Interpretação de Copenhague: a filosofia platônica e a consolidação da teoria quântica. Scientiae Studia, São Pulo, v. 8, p. 213-241, 2010.

SILVA, V. C. D. O anti-realismo na filosofia da física de Werner Heisenberg: da potentia aristotélica ao formalismo puro. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa -BA, v. 3, n.1, p. 109-120, junho 2011.



[1] No Timeu, Platão associa quatro sólidos geométricos regulares aos elementos naturais. Assim, o tetraedro liga-se ao elemento fogo, o cubo à terra, o octaedro ao fogo e o icosaedro à  água.

[2] On the history of physical interpretation of nature. In Philosophic problems of nuclear science. New York/London : Pantheon/Faber and Faber, 1952, p. 27-40.