O narrador-protagonista de O Quieto Animal da Esquina, de João Gilberto Noll, trata-se de um rapaz de dezenove anos, morador de Porto Alegre, que, depois de se envolver em problemas com a polícia, é salvo por um sujeito mais velho de nome Kurt. Temos nesta personagem o retrato do homem avulso, passivo, perdido entre a realidade e a fantasia, um andarilho perdido e sem rumo nas ruas de Porto Alegre.

            É válido observar que este narrador-protagonista não recebe ao menos um nome no decorrer da narrativa. Além disso, não há nenhum grande feito por parte do mesmo, já que não se trata de um herói como se tinha, principalmente nos romances românticos, onde o herói sempre era virtuoso e fazia boas e grandiosas ações. Segundo afirma Martins (1991, p. 5):

 

Na prosa de Noll a primeira pessoa que narra é despessoalizada, reduzida ao mínimo múltiplo comum dos desenraizados. Noll retrabalha o narrador andarilho sem qualquer imagem gloriosa de si mesmo ou de seu passado. Nos seus livros não há um eu-revestido-de-herói, que ocupa o tempo de leitor para se vangloriar de seus atos.

 

Encontra-se nesse narrador a figura do indivíduo isolado, alienado, do sujeito anônimo que perde totalmente os parâmetros. Trata-se de um indivíduo perdido na rapidez do mundo contemporâneo, sem nada que o prenda ou dê algum sentido a sua vida. Assim sendo, suas atitudes são impulsivas e impensadas. Conforme salienta Hall (2000, p. 25)

 

As transformações associadas à modernidade libertam o indivíduo de seus apoio estáveis nas tradições e nas estruturas.

 

Evidencia-se, através das atitudes do protagonista em questão, essa falta de estabilidade e estrutura familiar e social, como se pode notar claramente no momento em que ele estupra uma garota, chamada Mariana:

 

De repente me dei conta que estava tão perto da guria cantando que quase podia sentir o hálito dela, eu não dizia nada, ela parou de cantar, notei que havia um paredão cheio de pontas a nos tapar no prédio, fulminei um beijo, ela caiu comigo na terra úmida, a minha língua entrava por um rumor surdo na boca da guria, na certa um grito se eu retirasse a minha boca – e agora já era tarde demais, eu precisava sufocar aquele grito, quando meu pau entrou gozei, e o rumor surdo, o grito que eu sufocava esmagando a minha boca contra a dela cessou, e eu me levantei. (Noll: 1991, p. 11)

 

Nota-se que o narrador-protagonista não premeditou o estupro. Tal fato é narrado de forma simples e direta, como se o que estivesse sendo relatado fosse apenas mais um acontecimento comum.

Devido ao estupro, o narrador-protagonista é preso. Posteriormente, tem um surto e é internado em uma clínica e, tempos depois, retirado de lá por Kurt, velho descrito da seguinte maneira por Noll em entrevista a Mauad em O Globo (1991, p.5):

 

... penso que esse velho é Deus. Representa Deus quando dá proteção, abrigo, conhecimento... Ele dá tudo, mas não sacia o desejo mais profundo, aquele desejo que o rapaz nem sabe bem do que seja. A sensação de insuficiência com as coisas, com a realidade, permanece.

 

No entanto, mesmo protegido por Kurt, percebe-se que o protagonista não tem uma vivacidade. Ele está preso em si mesmo, o que causa uma predominância do que está internalizado, ou seja, dos seus sentimentos. Tanto isso é verdadeiro que sua introspecção se salienta no fato dele escrever poesias, o que se trata de algo bastante subjetivo. Verifica-se que ele nunca sai em busca de suas vontades, ao contrário, está sempre esperando algo:

 

É Amália, agora Otávio, estão voltando, pensei, não sabem mais viver fora da alçada de Kurt, tentam se extraviar mas retornam direitinho ao centro do qual nunca deveriam ter se afastado. (Noll: 1991, p. 60-61)

 

Nota-se claramente, no fragmento anterior, a passividade do protagonista, uma vez que ele é da opinião de que o afastamento de Otávio e Amália são erros, ou seja, eles, tanto quanto o próprio narrador, deveriam permanecer perto de Kurt, o qual lhes daria proteção e uma possível emancipação financeira, idéia que se fortifica na passagem abaixo:

 

... a aeromoça passou e me sorriu, como estávamos numa trepidação devolvi com um sorriso amarelo. Quando ela passasse de novo talvez eu lhe revelasse que eu escrevia poesias, o início de uma conversa em que ela pudesse se interessar por mim, pois eu deveria ter em mente que já deixara de ser um guri, que eu já era um homem na plenitude das minhas funções, tinha que encontrar uma mulher para a minha companhia, Kurt precisava abençoar essa união, de preferência uma mulher loira como parecia ter sido Gerda, mais satisfeito ele ficaria e me daria talvez metade de seus tesouros, me abrindo não só a Alemanha mas aí quem sabe que outros quadrantes, eu já divorciado da loira chata, uma mulher em cada cama de hotel. (Noll: 1991, p. 54-55)

 

Vemos, pois, a grande preocupação em agradar o velho Kurt, para que, então, este lhe dê condições financeiras para uma possível emancipação. Observa-se que o protagonista cria um vínculo com Kurt, tendo este como único meio de emancipação e, por conseqüência, um dos fatores de sua passividade.

Outro exemplo da passividade do narrador seria o seguinte excerto:

 

Recomecei a andar, frouxo, sem vontade, como se Porto Alegre já não me interessasse. Se tivesse um jeito de eu permanecer no Rio, ou mesmo na Alemanha, na Europa, sem perder a situação que Kurt me proporcionava. (Noll: 1991, p. 35)

 

Verifica-se que a preocupação do protagonista de Noll é não perder a situação proporcionada pelo velho Kurt. Não há nele nenhum traço de alguém que queira lutar por si próprio, sua vida ou suas vontades. Noll, em entrevista a Mauad (1991, p. 5), explica sua personagem da seguinte forma:

 

Ele está muito identificado com a passividade do povo brasileiro neste momento, com milhares de desempregados do país. O tempo todo ele espera um milagre, aguarda que o velho Kurt lhe apresente um tesouro.

 

Essa passividade pode ser explicada pelo fato de que o protagonista acredita que conhecerá uma fase emancipatória. Porém essa fase seria proporcionada por Kurt, o velho que o tirou das ruas, assim sendo, ele fica ao lado do velho, aguardando passivamente sua emancipação.

Com isso, torna-se nítido que o protagonista opta por se despir de sua identidade para entregar-se à loucura do outro, como salienta Castello (1991, p. 4) sobre o narrador de Noll:

 

Um homem que se despe daquilo que lhe restava como flapo de identidade, se entregando à loucura do outro, porque a pior companhia, ao contrário do que ensinavam as velhas mãe, ainda lhe parece melhor que a solidão.

 

Observa-se que o narrador de Noll tinha alguma identidade e abre mão dela para permanecer ao lado de Kurt. Nas teorias pós-modernas, como a de Hall, o que salienta é um protagonista sem identidade, fragmentário justamente porque busca tal identidade. Assim, pode-se afirmar que o protagonista em questão se diferencia neste sentido. A fragmentação da obra se dá em seu ritmo febril, nas mudanças rápidas de acontecimentos, mas não na personagem central em si.

Ainda é pertinente destacar a questão das relações afetivas encontradas na obra. Constata-se que não são relações realmente sentimentais, mas sim reviradas. As relações são mais carnais ( como no estupro de Mariana, com a mulata Naíra, com Amália, com Gerda) do que realmente sentimentais. Até mesmo no relacionamento entre o protagonista e Kurt vemos patentemente essa relação carnal:

 

E Kurt veio por cima do meu braço, e pensei que raio de coisa eu faria com o meu braço já dormente debaixo do corpo dele, e ele veio por cima do meu peito, e o seu peso de início quase me sufocou, mas respirei fundo, me acomodei melhor, abri os braços, as mãos que estavam crispadas eu abri também, e então vi a cara de Kurt de muito, muito perto, quase colada à minha cara, e a cara de Kurt voltava a chorar, em silêncio agora, um redemoinho de rugas, em pranto mudo mas enorme, descomunal, e eu não saberia, mesmo ele assim velho, fraco, eu nada poderia fazer para eliminar aquele choro paquidérmico me esmagando contra o colchão, onde estavam os meus razoáveis músculos?, agora tinha caído na rede, no alçapão, aquele peso não me deixava outra possibilidade para que dizer que não um esmaecido tá bem, tá bem, e Kurt começou como arquejar, a trazer lá do fundo o que eu não sabia conter, o bafo do samba-em-berlim entrava direto na minha boca e eu repetia tá bem, tá bem, nem via o atroz ridículo nem nada, apenas um atordoamento que me levava a repetir e a repetir, tá bem, tá bem. (Noll: 1991, p. 76-77)

 

Constata-se que embora o narrador-protagonista não goste do que está acontecendo ele se cala, sujeita-se à loucura e ao desespero de Kurt, isso se dá pelo fato de que tal narrador vê no velho o único meio de melhorar sua vida, já que temos nesse narrador uma personagem passiva, que não luta por seus ideais, ou ainda que nem tem algum ideal.

Observa-se que a contradição se fortifica em um narrador contraditório, que quer emancipação mas não a busca, em relações afetivas contraditórias, comprovando que:

 

A ficção de Noll  se alimenta da contradição entre o infinitesimal humano (marca no corpo de tempo e do acaso) e o infinitamente superior (a ilusão da onipotência metafísica) (Martins: 1991, p. 5)

 

O próprio eu do protagonista é muitas vezes transcendental, o que pode ser notado pelo próprio discurso entrecortado, com um ritmo febril que faz com que a realidade perca seu peso e emagreça no compasso hipnótico de uma vivência errante.

Por outro lado, como já citado, as marcas da vida real são pungentes na obra de Noll. Um andarilho, passando ao léu pelas ruas de Porto Alegre, que comete um estupro, é preso, depois internado em uma clínica, posteriormente protegido por um velho misterioso, e, por fim, que tem relações com uma mulher quase morta e que morre no momento do ato sexual, marcas intransponíveis. 

Pode-se ainda afirmar que são essas marcas da vida, narradas de forma tão fragmentária, que fazem desse sujeito um ser complexo, onde fantasia e realidade se fundem e se confundem, o que se pode observar no seguinte fragmento:

 

Sonhei que fazia um poema onde dois cavalos relinchavam. Quando acordei lá estavam eles, ainda a relinchar, só que agora fora do poema, a poucos passos de mim, e eu poderia montar neles se quisesse.

Dei algumas boas palmadas no traseiro dos animais, e os encaminhei com largos movimentos dos braços para um cercado onde havia o pasto.

A uns cem metros, no alto de uma colina mansa, uma casa de madeira, amarela, soltando fumaça pela chaminé. Entrei na casa e vi Mariana. Os seios já não são da adolescente, avaliei baixinho.

Sentamos para tomar café, um de cada lado da mesa. Mariana passava geléia de uva no pão, me deu a fatia.

Peguei na perna de Mariana por baixo da mesa. Ela levemente estremeceu. Me ajoelhei no chão, fui de quatro para debaixo da mesa e comecei a lamber as suas coxas. (Noll: 1991, p. 18-19)

 

Verifica-se nitidamente a confusão entre fantasia e realidade, pois embora o narrador comece retratando um sonho, depois diz acordar. Porém, a relação com Mariana, a menina que ele estuprou anteriormente, é bastante inverossímil, uma vez que foi justamente pelo estupro que ocorreu a prisão. O fato do protagonista se encontrar em uma clínica para tratamento deixa os fatos ainda mais obscuros, pois não se pode ter certeza absoluta que se trata de um fato real ou imaginário.

Nota-se que na prosa de Noll os fatos e o que a própria vida causam às personagens é o que os tornam importantes, como pode-se perceber na afirmação de Castello (1991, p. 4) ao abordar as personagens de Noll:

 

Seus personagens se tornam importantes não pelo que fazem, mas pelo que a vida faz com eles; não pelo que dizem, mas pelo que se acham obrigados a dizer; nem mesmo pelo que lhes sucede, mas pelo modo como tremem e se afogam no que lhes sucedem.

 

Assim, suas personagens se movimentam pelo signo do desespero e da alucinação, o que causa um pânico difuso no leitor, uma vez que este, como o próprio narrador, caminham de olhos vendados, sem realmente saber o que os espera., na medida em que:

 

Quanto mais a narrativa avança, menos podemos dizer sobre o seu destino e mais confusos estamos diante do protagonista com sua aventura. (Castello: 1991, p. 4)

 

Um fator que aumenta essa confusão e esse pânico do leitor é justamente o forma como os fatos são expostos. Em toda obra passa-se de um acontecimento para o outro de maneira muito rápida. Tem-se, então, não um narrador-protagonista fragmentado como avultam a maioria das teorias sobre o sujeito pós-moderno, fato já comentado anteriormente, mas sim uma narrativa fragmentada que acaba por confundir o leitor. Um emaranhado de informações que nem sempre, ou quase nunca, tem uma explicação lógica e muito menos linear. É justamente por isso que Couto (1991, p. 6) afirma:

 

O Quieto Animal da Esquina parece começar no meio e terminar antes do fim. O leitor entra nele como quem sobe num carrossel em movimento, e sai da experiência no mínimo atordoado. Durante a leitura, experimenta-se uma espécie de estado alucinatório análogo àquele em que vive o protagonista-narrador, um rapaz sem casa e sem emprego que escreve versos esparsos e erra pelas ruas de Porto Alegre...

 

Toda essa fragmentação da obra pode ser notada por ela se tratar de uma prosa fluída, com um ritmo febril, onde se tem frases curtas e sincopadas por vírgulas, ou pelo conectivo e. As imagens se sucedem em profusão, como se fosse, segundo Martins (1991, p.5) :

 

Um thriller cinematográfico recortado por uma lente embriagada.

 

Então evidencia-se que o intuito de Noll é uma literatura que privilegie o detalhe em detrimento à grande obra. É a literatura de câmara , com obras polimórficas que escolhem a pluralidade. Castello (1988, p. 6-7), ao comentar a literatura dos anos 80 afirma que:

 

É uma literatura que não se quer grande arte. Ela perdeu a esperança de servir de moldura ao país, e deseja ser apenas um diminuto, mas penetrante, foco de luz sobre a tela.

 

E é assim a O Quieto Animal da Esquina de Noll, mostrando fragmentos da vida de um jovem errante e passivo, que não luta, apenas espera algo que nem mesmo ele compreende totalmente.

Enfim, há a opção pelo cotidiano, por fragmentos de vida, por acontecimentos imutáveis que mudam e tumultuam toda a existência da personagem:

 

A viagem para o narrador de Noll é o aprendizado dos próprios limites. Em O Quieto Animal da Esquina, a viagem e a andança cotidiana, reduzida ao perambular meio sem rumo pelas ruas de Porto Alegre. Por onde passa o narrador recolhe livros de poesia, anota fragmentos de poema, costura uma poética do cotidiano. Até que o redemoinho dos acontecimentos o engolfa, o obriga a um exílio doméstico e este narrador passa a se dedicar aos fragmentos de seus passado, à medida que mapeia suas contradições, seus becos sem saída. Há um desencantamento paulatino, irreversível. A única possibilidade de continuar vivendo é exercitar pulmões existencialmente amplos, vir à tona para tomar fôlego de vez em quando, e sossegar, até que tudo volte, outra vez, ao torvelinho tumultuado que arrasta a todos. (Martins: 1991, p. 5)

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

CASTELLO, José. Esquinas do Beco sem saída. O Estado de São Paulo – Cultura, 26 de outubro de 1991. p. 4

_______________. Os anos 80 deram romance. Jornal do Brasil. 20 de fevereiro de 1988

COUTO, José Aderaldo. Meu tema é o homem avulso, diz Noll. Folha de São Paulo – Letras. 16 de novembro de 1991.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 49 ª ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de janeiro: DP&A, 2000.

MARTINS, Marília. Vivendo ao léu. Noll narra a vertigem de desesperados andarilhos. Jornal do Brasil. 23 de novembro de 1991

MAUAD, Isabel Cristina. As ilusões perdidas de Noll. O Globo. 10 de novembro de 1991.

NOLL, João Gilberto. O quieto animal da esquina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991