WERNER SCHROR LEBER Notas pessoais sobre filosofia, deus e metafísica Conforme meu precário entendimento, estudar filosofia, o que de algum modo sempre fiz por linhas tortas e de modo amador, significa interrogar-se sobre a grandeza da vida que, em si mesma, não pode ser emoldurada por conceito algum. Ela é o ponto basilar de onde tudo o mais emerge para o homem. Essa minha visão, moldada a chicotadas, devo a Nietzsche, para mim o mais ingênuo filósofo do século XIX. Suas bravias palavras são só bravatas de alguém que sabia que nasceu condenado. A vida é uma ontologia que antecede em grau todas as ciências e todos os saberes. Não sabemos quem somos e nem porque estamos aqui, mas teimamos em querer responder essa intrigante pergunta. Foi o Husserl, com o seu Lebenswelt, que me ensinou essas coisas. Aprendi? Não sei. Certamente não, afinal filosofia não é lição que se responde para ganhar notas. Mas gostei. Afinal, Husserl, a exemplo de Hegel, escreveu para poucos ou até mesmo para ninguém entender. Nós é que achamos, justamente por não entender com que demônios esse cara lutavam, que eles responderam melhor aquilo que os outros filósofos não responderam. E o Heidegger, sem o confessar abertamente sempre, mas sempre só à boca miúda, jura que entendeu o mestre Husserl e fez disso o interesse de sua filosofia inteira. Apanhou o Sitz im Leben da filosofia de Husserl e construiu a partir dela uma ontologia fenomênico-fundamental. E não só ele, também o Sartre, o Max Scheler o fizeram. Maurice Merleau-Ponty então quis ser a sombra do moraviano. Para muitos, conforme o Sartre, foi mesmo. Para Heidegger, a presença do mundo como fenômeno é gratuitude, a única luz que brilha em nossa miserável e precária existência. Um salto para o divino. O homem miserável, jogado no ser, na existência mortal, aspira a infinitude e declara desesperadamente, mesmo sem certeza de como o faz, que a vida com tantas expectativas não pode ser tão pouco como de fato é: "o homem é um misto de bioprovisoriedade-mortis com transcendentalidade": alguém que sabe de sua morte, de sua condição finita, mas se recusa a aceitá-la; como sabe “de” afigura-se a ele que a vida continua Sabe que vai morrer, mas não se conforma. E porque não se conforma, pensa. Ou porque pensa, é também inconformado? A resposta é o que buscamos. Nada é tão central como essa resposta. Esse "por que?" é o porquê" de tudo. Estaria certo Luc Ferry quando diz que também a filosofia aspira ser uma doutrina de salvação? Escândalo para a filosofia!!! Não deveria. Heidegger o disse antes, lá em 1919-20, com aqueles muito mal compreendidos seminários sobre a fenomenologia religiosa. Mas muito antes dele, Platão também o disse, quando inventou a "alma", que os estoicos, os mais sérios concorrentes dos cristãos no Mundo Antigo, conforme nos informa Paul Tillich, adotaram como critério para o logos universal. A alma é o que sobre depois que toda a vivência se mostra precária, escura, pobre e sem permanência. E o cristianismo cristianizou o Platão inteiro tomando por base toda a intelectualidade estoica. Santo Agostinho adaptou a doutrina cristã à salvação que Platão já presumia existir do lado de "fora da precária caverna". Sair do buraco e encontrar a luz é o que Platão achava que todo ser racional deveria fazer. Ser sábio, não é saber tudo, mas ser inteligente o suficiente para fazer da racionalidade o equilíbrio diante uma existência sempre ameaçada por toda sorte de intempéries. As religiões, notadamente em nosso caso, a tradição cristã, preconiza que encontrou a saída: Deus, a última palavra que mundo vai ouvir antes de sucumbir e depois resplandecer, o Logos Encarnado como diz Tillich, que depois ter perambulado entre a precariedade da existência, foi julgado por pessoas sombrias, sem qualquer luz e inteligência e padeceu no madeiro ante pessoas incrédulas. Para os cristãos, Deus entrega-se em carne e assim mostra que a humanidade não pode se salvar. Não sabe distinguir o verdadeiro do falso; quando pode, engana-se, toma por luz a trevas e suicida a verdade, a fonte tênue que caminhou em carne e osso em meio à precariedade deste mundo. Para a teologia, a prova definitiva de que a salvação, a superação das contradições existenciais não estão só na razão humana, mas estão na capacidade que a razão tem “ouvir”a luz, e assim iluminar a alma com a sabedoria do que está no texto sagrado “o que nenhum homem viu isso tem Deus tem preparado para aqueles que o amam de verdade”. Muito disso os estoicos ensinam aos cristãos. Santo Agostinho percebeu bem isso, embora nunca atribua aos estoicos as grandezas de sua teologia. Nietzsche, crítico da tradição cristã, "inimigo" de Agostinho e toda teologia cristã, certa vez disse: "a vida é o único valor que não pode ser avaliado". Fui um leitor apaixonado de Nietzsche. Hoje já não o admiro como antes. Mas preservo dele a mais tenra e lúcida esperança: "há muitas auroras que não brilharam ainda!". E é o brilho que quero, já que Nietzsche, como eu, era só um desesperado. Queria, como eu, também a salvação, a superação de todas as contradições que marcam o viver. Acreditou que apelar à moral no sentido de construir uma “extramoral” seria o suficiente. Desconfiava de que a humanidade pudesse conhecer alguma coisa além de metáforas e esquecimentos. “Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma verdade [...]”, diz ele no texto de 1873 (NIETZSCHE, 1983, p. 47). Acreditou ter mostrado que Verdade e Mentira tem a mesma origem à medida que se originaram no homem intuitivo, depois negligenciado pelos conceitos racionais, apolíneos, de Sócrates, estoicos, judeus e cristãos, ficaria definitivamente esclarecido que a intuição e o instinto são o que há de mais verdadeiro. A verdade é uma metáfora esquecida. “[...] moedas que perderam a efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas” (NIETZSCHE, op. Cit., p. 48). Nietzsche queria, por assim dizer, uma gramática nova para entender os valores de seu tempo. A razão de Aristóteles, o equilíbrio racional – a mediania – nada mais era que a disciplinarização dos instintos e intuições, enfim a castração do que há de mais nobre no homem, destruição de sua voluptuosidade pela vida, a inauguração do ressentimento, da covardia, do espírito de rebanho. Assim, Nietzsche até preconizou o “anticristo”, crendo que ali estava todo mal da humanidade, desgraça que, extirpada, instauraria a plenitude terrena de Zaratustra, “o sem-deus”, aquele que já não precisa buscar atrás das estrelas uma razão para viver. Isso, para ele, seria a nobreza, a vitalidade dos fortes, dos destemidos, dos intuitivos, enfim o “Übermensch”. Será mesmo que Nietzsche creu nisso? Seja como for, seu engano, a meu ver, aqui é letal. Nietzsche, sem saber quem era o demônio que lhe atormentava, inventou um inimigo para ter como desaguar suas palavras poeticamente sempre bem construídas. Esse jogo “palavresco” faz de Nietzsche, grosso modo, um sofista. No fundo nada defende; só faz jogo e pouco se compromete com o que instaura. Atira e escreve por aforismos; sabedoria ou esperteza? André-Comte Sponville e Olavo de Carvalho o consideram o nosso mais genial sofista moderno. Seria ele o Górgias ou o Protágoras do século XIX? E quem teria sido então o nosso “Platão” moderno, Hegel? Schopenhauer? Quem sabe, Kierkegaard. Como quer Tillich, vou buscá-lo outra vez, o anticristo de Nietzsche é dependente do Cristo, ao qual se volta. Esse círculo de ferro, nem Nietzsche e nem qualquer ateu podem vencer. Aqui Sartre também fracassou, pois queria que a existência precedesse as essências, mas teve de reconhecer que no ser humano a essencialidade se antepõe à existência pelo menos em um certo sentido: a percepção qualitativa que o ser humano estabelece entre ele e o mundo. Mesmo que não exista essência anterior ao homem, pois, na conhecida formulação de Sartre, segundo a qual o homem “[...] surge no mundo e só posteriormente se se define” (SARTRE, 1987, p. 06), os filósofos de Platão a Kant defenderam a supremacia da essência humana, com o que, evidentemente, Sartre está em desacordo.1 Mesmo 1 Assim escreve Sartre, Id. ibid., p. 05: No século XVIII, o ateísmo dos filósofos elimina a noção Deus, porém não suprime a ideia de que a essência precede a existência. Essa é uma ideia que encontramos assim, parece inegável a presença de uma ontologia, um ser cujo fundo permeia toda a nossa linguagem e pensamentos, uma espécie de estrutura que permite a razão organizar-se minimamente. Os ontólogos modernos, como o Heidegger, chamam a isso “clareira do ser”. Em linguagem antiga, chamaríamos a isso “metafísica”. Não quero aqui confundir Deus com metafísica, aliás, nó que Heidegger (2012) acreditou ter desfeito com sua ontologia fundamental. Dou crédito, mas Etienne Gilson não concordou. Nessa briga de gigantes, quem sou eu para palpitar? Seja como for, parece-me razoável aceitar que a teologia, quanto qualquer outra ciência e a filosofia não podem existir sem a metafísica. A mim, que sou ignorante e nunca li mais que “meia dúzia de livrinhos”, a filosofia é a nossa forma conceitual de lidar com essas questões postas pelas outras ciências, pela nossa curiosidade e pela atormentação que nosso cérebro nos causa. Saber que “não sabemos” nos inquieta demais; saber dessas dificuldades e continuar a insistir é o que a filosofia representa para mim. Não uma verdade dogmática; isso deixo às ciências e às religiões, à teologia. Aliás, esse é mesmo o “proprium” delas. Mas uma confissão de nossa mais absoluta falta de capacidade. O que o pensamento científico atual, considera ultrapassado, insolúvel ou insignificante, é o que reclamo como sendo o aspecto mais sublime de alguma coisa que chamamos genericamente “filosofia”. Nas questões esquecidas, considerados superadas ou insignificantes, o ser humano redescobre com quanta ignorância cobriu aquilo que julgara saber. Descobre que aquilo que diz saber, poderia ser dito ainda de muitos outros modos, ficando nem mais e nem menos problemático, apenas problemático como sempre foi. É aqui que Jesus e Sócrates se encontram: “a verdade está dentro de vós!”. Mas ela não pode ser dita e mensurada, apenas ouvida pela alma. Sabedoria não é saber de uma vez para sempre. Sabedoria é aprender que nada em nós é definitivo. E enquanto a eternidade não vem, os cientistas e pesquisadores fazem dogmas acusando os religiosos de dogmáticos, a teologia de ingênua e a filosofia de inútil. Mas os sábios não se abalam; sabem que as verdades sempre tão bem sedimentadas pelas ciências provisórias que a humanidade engendra para se manter em pé, desabam a cada nova descoberta, a cada novo terremoto, a cada nova guerra. É a que sabedoria é bem diferente de conhecimento. Sabedoria é entrega enquanto saber é domínio. Sabedoria é humildade ante o desconhecido, ao passo que o saber é arrogância de quem faz do que sabe uma arma. O primeiro modo, é filosofia. O segundo, tudo aquilo que a nega. O primeiro modo, para mim, é o que chamo estudar filosofia. E aqui não diferencio, como fazem sempre marxistas e outros “istas” entre ser religioso, crente ou não crente. Diante da existência, pouco isso importa. Todos, seja o que forem, não podem se situar para além do raciocínio, do pensamento e da fé. A filosofia é esse limiar, diria, uma aproximação amorosa das nossas precariedades e incertezas. Uma confissão perene de nossa ignorância. REFERÊNCIAS HEIDEGGER, Martin. Ontologia: hermenêutica da facticidade. Petrópolis (RJ): Vozes, 2012. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. 3ª edição. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 45-52. (Coleção: Os pensadores). com frequência: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e mesmo em Kant. O homem possui uma natureza humana; essa natureza humana, que é o conceito humano, pode ser encontrada em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal: o homem. [...] Assim, mais uma vez, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na Natureza”. SARTRE, O existencialismo é um humanismo. 3ª edição. Tradução de Rita Correia Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 03-32. (Coleção: Os Pensadores).