Notas e reflexões de uma Enfermeira

Tente mover o mundo. O primeiro passo será mover a si mesmo.”

(PLATÃO)

Rosa Gomes dos Santos Ferreira

Doutoranda em Enfermagem EEAN-UFRJ

É gratificante poder apresentar um pouco do que vivi e alcançar tantos corações que se reconhecerão e revigorarão a alma, na busca pelo fortalecimento profissional, certificando-se da nossa importância dentro do contexto multidisciplinar em saúde.

De acordo com Borelli (1992):

A memória, a experiência e o tempo, são fundamentais para a recuperação do vivido, conforme concebido por quem viveu. Memória, no sentido de fonte do passado no presente, como busca daquele tempo no agora, transcendendo a mera cronologia. O movimento de mergulhar em busca da experiência perdida, de saltar para trás, em direção ao passado, poderá permitir a erupção de algo novo.

Que as memórias que trago aqui sejam apreciadas por vocês, no objetivo de que reflitam em prol de seu desenvolvimento profissional, pois nossa enfermagem necessita disto.

Entramos nas casas mais pobres, nos lares abastados...

Estamos nos ambulatórios, nas escolas, nas empresas, nas universidades...

Estamos nos hospitais, na reabilitação, nos dispositivos da saúde mental, nos presídios, nos manicômios judiciários, nas igrejas, na direção de hospitais, nos comitês de ética em pesquisa, nas ouvidorias, nos centros de pesquisa...

Mas, em minha opinião, ainda não sabemos da nossa força e do nosso potencial, em tamanho e em qualificação.

Linhas escritas, como estas, é a dose de autoestima de que necessitamos, para termos certeza do que está posto!

A enfermagem (obviamente eu não sabia que era a enfermagem) me acompanhou desde a infância... Tenho a certeza de que eu não faria outra coisa, a não ser oferecer algo que eu tivesse a outra pessoa.

Desde menina me sentia feliz, dentro daquelas “roupinhas de enfermeira”, brincando de cuidar das minhas poucas bonecas, dos vizinhos, da minha mãe que sempre foi “doentinha”.

Há coisas que nunca se explicarão...

Sei que a minha escolha profissional é uma delas e nunca senti arrependimento por ter trilhado este caminho, mas ainda me sinto inquieta.

Inquieta, não só por mim... Sei que falta alguma coisa para que a minha profissão esteja no rol do imprescindível, do que é reconhecido e que não se substitui e que tem voz e participação.

Desejo fortemente ser cada vez melhor e oferecer o melhor, pois, dezenove anos depois, ainda sinto que muito me falta.

Acho que isso não é de todo o ruim.

Isto me encaminha na vida e não me faz acalmar...

Meu primeiro encontro de amor com as ciências da saúde aconteceu ainda no Colégio Pedro II. Lá, entendi que seria amor para a vida inteira. (CAVALCANTI, 2015).

Sai do Colégio Pedro II em 1994 e com dezessete anos, ingressei na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), Escola de Enfermagem Alfredo Pinto.

A vida universitária é muito diferente e apesar de muito feliz, era muito jovem e me impactava as aulas tão difíceis de anatomia, a relação com as outras profissões da saúde.

No entanto, já conseguia avistar que a enfermagem, diferentemente as outras profissões da saúde, trazia a aproximação àqueles que sofrem e uma linha muito tênue faz do enfermeiro, o profissional da permanência e não da visita como expõe Loyola (2000).

Somos capazes de, mesmo exauridos por horas de pesados plantões, sorrir ou tocar aquele que necessita de nós, nomeando este ato humano... Cuidado de Enfermagem.

Aproximamo-nos da nossa missão aqui na terra, sendo enfermeiros.

Eu acredito nisso e verifico o quanto pude melhorar enquanto pessoa, através da minha escolha profissional.

A enfermagem é meu ofício e ao mesmo tempo, a minha lição de vida, pois ela é capaz de colocar aquele que cuida, frente aos grandes dilemas e tabus sociais.

Somos capazes daquilo que é “legal e do que é considerado à margem da lei...”

Cuidar do criminoso, do adicto, cuidar do louco, tratar das feridas, do que é feio, dos mutilados, da dor, do que está sujo e fétido, a fase terminal, o nascimento, enxergar, além de tudo isto, o ético propósito de cuidar de uma vida.

Assistir ao ser humano em suas crenças, respeitando seus limites e valores, enfrentarmos a nós mesmos, todos os dias. Encararmos as nossas potencialidades, entendendo que somos limitados e não temos o “mágico poder” de soprar a vida em seu nascimento, mas podemos ajudar alguém a nascer.

Saber que não temos em nossas mãos, o direito de findarmos a vida, mas temos o dever de dignamente, assistir àquele que cumpriu a sua história.

Ao enfermeiro, à enfermagem, não cabe julgar o que o portador daquela vida tem feito com ela e sim, o que eu devo fazer por esta vida, sem julgamentos ou impedimentos.

Ouvia professores me alertando para a necessidade de ser completa holística1... Por muitos anos persegui esta completude.

Hoje eu posso dizer que não sou completa, nunca serei.

Não me sinto menos capaz, menos enfermeira por isso.

Estou em formação, continuamente... Sou livre!

Pensar em enfermagem para mim é ainda pensar em cuidado, não ao corpo, mas aos indivíduos e de modo singular.

Para os “meninos” que lêem estas linhas, acalmem-se, pois o cuidado está para muito além da execução de um procedimento de enfermagem. Técnica ou procedimento de enfermagem é parte do cuidado e a técnica tende a ser aprimorada, com seu uso, no passar dos anos.

Os atos técnicos induzem a ação repetida, porém, os profissionais que as realizam, são seres diferentes, com talentos diferentes, sentimentos e conhecimentos. Agem com regularidade e produzem, nem sempre, com meios exatamente iguais, em razão dos contextos de trabalho, resultados próximos e que também satisfazem pessoas diferentes. (SCHRAIBER ET AL, 1999)

Compreendi que posso desenvolver uma irreparável técnica, um belo procedimento, amparado por normas e protocolos operacionais, mas o cuidado, este sim, é o que deve mobilizar e diferenciar o profissional, distanciando-o do “mero cumpridor de tarefas”.

Para cuidar é preciso ir além do que é procedimental e compreender a sua missão social, pois se isso não acontecer, certamente você não terá exercido seu papel.

Posso cuidar de vidas, na terapia intensiva, nas emergências, na unidade coronariana (o que faço há 20 anos). Também posso fazer isso, num treinamento, enquanto enfermeiro da Educação Continuada, pois sei que, através da qualificação do profissional, o cuidado será melhor executado.

Posso estar ativamente no cuidado ao meu cliente, paciente (como você preferir), sendo Ouvidora de uma instituição, pois através dos encaminhamentos das demandas que chegam a mim, discuto com os gestores, sugiro, solicito intervenções, para que o cuidado aos indivíduos seja ofertado de modo ético, permeado pela cidadania.

Posso ainda, como coordenadora de um Comitê de Ética em Pesquisa (sim, sou enfermeira e lá estou...) posso avaliar um protocolo de pesquisa, acatando ou não a sua execução, no sentido da proteção ao participante da mesma, não meramente “cobaias”.

Posso cuidar dos meus pacientes, preocupando-me em ministrar uma aula rica de experiências e troca de conhecimentos, pois acredito que é a missão do professor, participar da formação do profissional-cidadão, despertando-lhe o desejo de capacitar-se para servir melhor a quem necessita do cuidado.

Hoje sei que posso cuidar de diversas maneiras e em infinitos espaços, onde aprendo a vivenciá-los e valorá-los, pois o tal cuidado está em toda a parte, para o profissional que deseja executá-lo cada vez melhor.

E que a frequência nestes espaços nos empodera! Digo não ao conflito antiético que visualizei certas vezes, onde médicos, enfermeiros e demais categorias se engalfinhavam em busca do poder vazio no hospital, onde todo o poder está com o mais vulnerável. . . O paciente.

Devemos acreditar que somente através do conhecimento, encontraremos nosso reconhecimento profissional, nas mais diferentes necessidades: participação referente aos projetos terapêuticos dos pacientes, reconhecimento de nosso saber e reflexão pautada em conceitos científicos, ocupação de espaços assistenciais e gerenciais, reconhecimento salarial.

“O problema não está com os outros, está conosco.” Talvez esta minha afirmativa, se deva a contextualização sócio-histórica que permeia minha compreensão acerca dos fatos, trazendo-os como resultados do passado no presente.

É bem verdade que nossa história foi construída de elementos e símbolos atrelados ao que é missionário, para servir ao próximo, sob fundamentação religiosa, em humildade e doação a Deus.

Esta posição, subserviente e devotada, tem sido substituída, por exigência dos próprios fundamentos de enfermagem enquanto ciência, por execução e entendimento do trabalho, de modo consciente e ativo no contexto multidisciplinar em saúde, conservando sua especificidade.

O corpo cuidado é o nosso primeiro encontro, primeira realidade que vivenciamos. É o momento de reconhecer sua maravilha e ao mesmo tempo perceber e admitir a impossibilidade de qualquer coisa sem ele. (GEBARA, 1994, p.90). É o ponto de partida e de chegada e lá está o sofrimento, a dor, a morte, o movimento.

Isto me acolheu como idéia por anos... Ate me reconhecer muda e surda, pensando que o corpo do paciente me daria todas as respostas... Não o sentia, não o ouvia mais.

Daí veio à busca pela saúde mental, onde através de minha inserção nesta área de atuação, senti preenchida esta necessidade, podendo também aplicar este conhecimento acerca do sofrimento de alma, a outra realidade que me acompanha há vinte anos, a terapia intensiva.

Através do meu trabalho numa instituição psiquiátrica, percebi que o sofrimento e que meu cuidado deve ser para além da dor física.

A dor física é lancinante e deve ser assistida de modo qualificado e primoroso, mas o que não se pode minimizar é que a dor da alma, a procura de respostas, as percepções que algumas pessoas têm a sensibilidade, a tristeza, o delírio, a euforia, o isolamento, o que não se ameniza com analgésicos, curativos e cirurgias.

Na saúde mental aprendi a tocar e a ouvir, a respeitar diferenças e a aguçar minha percepção para que minha escuta seja capaz de auxiliar a quem sofre mentalmente.

Trabalhar concomitantemente, na saúde mental e na UTI é o que venho fazendo há onze anos e me realiza esta “dobradinha”.

Não posso e não devo dizer que modifiquei minha área de atuação como enfermeira. O que na verdade ocorre é uma procura incansável de servir melhor aos meus pacientes.

A terapia intensiva e os conhecimentos adquiridos nas áreas afins (a nefrologia, a emergência, o cardiointensivismo) subsidiaram e embasaram a execução de um cuidado qualificado, reflexivo e desafiador no cotidiano de quem tem de enfrentar as mazelas do corpo.

Mas, a procura pela atuação na saúde mental, foi um divisor de águas, onde reencontrei-me com que sofre e não com o sofrimento.

O transtorno metal está para qualquer um de nós, a partir dos nossos traumas, tristezas e conflitos. A doença orgânica pode deflagrar uma crise em psiquiatria.

É neste viés que hoje, na terapia intensiva, que cuido de meus pacientes e quem vive cm eles, este momento.

Estes elementos, eu não os aplico somente aos usuários da saúde mental; direciono-os aos meus pacientes na UTI, aos familiares que sofrem com a perda de seus entes queridos... E é tão pouco...

Mas é mais um presente que a enfermagem me deu nesta vida.

Minha formação é também a minha eterna procura em ser melhor, para ofertar a quem precisa, o melhor de mim. Esta procura me fez caminhar em muitas especialidades.

Após concluir a graduação, simultaneamente ao meu primeiro emprego, busquei pela especialização.

Imagine onde você deseja chegar e que profissional você quer ser; desenhe seus sonhos: você será o responsável por isso!

Somos artesãos do nosso destino e esta obra, desenhada por você, será contemplada por seus pacientes.

Essa idéia fundamenta as minhas escolhas.

Em meu primeiro emprego, fui lotada como plantonista em CTI de adultos e percebi o que afirmei anteriormente.

Embora muito feliz por estar na minha área de escolha, o cuidado intensivo, sentia necessidade de conquistar subsídios para desenvolver melhor, as minhas atribuições.

A faculdade descortina a enfermagem, mas saiba você que é crucial em buscar por dominâncias na área que mais lhe satisfizer.

Cursei as residências em enfermagem em nefrologia e em cirurgia cardíaca no Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ) e a seguir, a pós-graduação em enfermagem em terapia intensiva, também na UERJ.

Por fim, há dois anos trás, conclui a pós-graduação em enfermagem em saúde mental, que me forneceu conhecimentos aplicáveis em todas as especialidades do cuidado.

O mestrado, concluído na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery, um sonho realizado em 2013, me retirou do espaço da critica vazia, trazendo-me conceitos que sustentam hoje, tudo o que digo, enquanto enfermeira.

Acredito nestes espaços potentes de construção especifica do saber em enfermagem e através destes conhecimentos, sinto-me cada vez mais habilitada em retornar um cuidado qualificado aos meus pacientes.

A partir do momento em que você se torna consciente de seu papel profissional, percebe que tem um compromisso, não só com você, mas com a sociedade.

Persigo este ideal e nele sustento as minhas buscas por conhecer, por aprender, mas não é fácil manter a fé...

Nem tudo foram flores na minha trajetória.

Nesses 44 anos de idade, 23 de trabalho na enfermagem, vivenciei realidades repletas de conflito, desarmonia e desrespeito, sofrimento humano, aniquilação dos direitos dos cidadãos, no que tange à saúde.

Encarei a dura realidade, a triste situação de hospitais sucateados em seus recursos humanos e materiais.

Lembro-me que num só plantão, dei 17 banhos no leito (eu e mais uma técnica de enfermagem) apenas, por não ter ninguém a mais na equipe, por falta de pessoal e na hora do nosso almoço, num fevereiro de quarenta graus, comer um prato de sopa.

Sofri e sofro ainda por não poder qualificar a assistência, honrando os ensinamentos recebidos, através dos nossos mestres, na universidade.

Com isto, emerge o momento da crise profissional e, caro amigo, eu sei que você viverá esta situação também.

Mesmo que, como eu, você trabalhe em magníficos hospitais, com outra realidade apresentada a você, equipes, tecnologias e recursos intermináveis, surgirão questionamentos:

Estou no lugar certo, fazendo o que é certo?

Estou sendo honesta comigo? Com meus pacientes? Com tudo o que passei para ser enfermeira?

Devo sair?

Eu digo a você que se estes questionamentos, ao longo dos anos, fizerem parte de seu cotidiano, como fez e ainda faz parte do meu... Você está no rumo certo!

Não se acomode, não deixe de questionar o sistema, pois você e este sistema só se modificam, a partir deste movimento.

Por onde passei ouvir esta frase de alguns técnicos, auxiliares e enfermeiros.

O impressionante é que a pergunta e a resposta sempre foi o que disse anteriormente... Não se canse e não deixe de questionar.

Nunca me permiti deixar de pensar, questionar e refletir, me emocionar... E a estas pessoas, com as quais encontrei, agradeço o empenho em me estimular a ser assim.

Meus desafios são estes e as minhas soluções estão no retorno ao meu passado, a escolha que fiz, ao meu juramento profissional.

Quando “perderem a fé”, imediatamente retorne ao seu passado e veja o trouxe você ate aqui e então, você encontrará as respostas, se você deve continuar ou não.

Se a resposta for negativa, deixe este lugar. Não será demérito... Será ético, com você e com quem depende de seu cuidado.

Siga em busca de sua felicidade profissional.

Se a resposta for positiva, permaneça e procure ser melhor, invista, tenha seus ídolos profissionais, simbolize e caminhe.

Precisamos de enfermeiros apaixonados. O amor sempre vence!

Hoje, com 44 anos, casada com a enfermagem há 23, sinto-me vivendo um relacionamento “estável”, que por vezes discorda, entra em crise e desalinho, deseja ser mais e receber mais desta relação. Mas, sei que muito depende de mim e do que faço para manter “viva a chama”...

Com isso, fortaleço o meu relacionamento profissional e assim, como num casamento, no outro dia, volto a acreditar no meu sonho de menina, que sempre foi o de cuidar, afagar e acolher pessoas em sofrimento.

E assim, sigo o caminho, sendo sempre presenteada com novas experiências e velhas certezas.

Eu espero continuar acreditando que o “problema não está nos outros, está em nós”.

Se o que fazemos por nós, surtirá êxito em nós mesmos, tenho convicção de que o meu futuro na enfermagem continuará sendo a busca pelo conhecimento, para desenvolver um produto assistencial qualificado a que precisa.

Que estas palavras alimentem seu coração, pois algum dia, alguém as disse para mim...

Por isso, continuo...

Sou enfermeira!


 


 

REFERENCIAS

  1. Borelli, S.H.S. Memória e temporalidade: dialogo entre Walter Benjamin e Henri Bérgson. São Paulo: Educ, 1992.

  2. Cavalcanti, M. S. Ferreira, R. G. S. Rabelo, A. Alves, A. Amador, A. Esteves, A. S. Galeno, et al.; Ao Pedro II, tudo ou nada? Memórias do cotidiano no CPII, de 1942 a 2014 - volume 04. Rio de janeiro: Semente Editorial, 2015 (Livro).

  3. Gebara, I. Teologia em ritmo de mulher.São Paulo,Ed.Paulinas.1994

  4. Loyola, C. M. O cuidado como inclusão do sujeito. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, vol. 4, núm. 1, abril, 2000, pp. 129-137 Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil.

  5. Schraiber, L.B; Peduzzi, M.; Sala, A.; Nemes, M.I.; Castanheira, E.R.L.; Kon,R. Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando problemas. Ciênc. Saúde Coletiva. V. 4, p.221-42, 1999.

  6. Portal Educação (11 de dezembro de 2012). «Holismo e Visão Sistêmica» (em inglês). Consultado em 02 de maio de 2016.


 

1A palavra foi criada por Jan Smuts, primeiro-ministro da África do Sul, no seu livro de 1926, Holism and Evolution, que a definiu assim: "A tendência da Natureza, através de evolução criativa, é a de formar qualquer "todo" como sendo maior do que a soma de suas partes"